Contra a forma-casal
Relações amorosas e sexuais não existem em algum domínio isolado, com segurança, do resto da sociedade
Introdução
O texto Contra a forma-casal (original em inglês aqui), que traduzimos abaixo, foi escrito em 2010 e publicado em 2012 na primeira edição da revista estadunidense LIES, organizada por um coletivo feminista e queer. Alguns anos antes, havia surgido em encontros anarquistas na Suécia o conceito de Anarquia Relacional.
Neste artigo, que tem tons de manifesto, Clémence X. Clementine e seu coletivo propõem o fim da organização social baseada em casais em favor de um viver livre e comunitário, explicitando sob uma ótica feminista como a prática cultural da forma-casal se entrelaça com uma estrutura social de base patriarcal e capitalista.
Alguns anos após sua publicação, em 2016, elas publicaram o adendo "Costurando a ruptura", em que refletem sobre o texto original a partir de questionamentos feitos por pessoas que o leram, e também a partir de novas leituras e vivências delas mesmas. O adendo é muito bem-vindo, já que, apesar da potência e provocação das colocações originais serem indiscutíveis, certas perspectivas que elas colocavam pareciam vir de visões estreitas, e ecoavam aspectos de feminismos problemáticos.
A forma-casal deve ser questionada e até mesmo repudiada, isso é inegociável. Ela é o núcleo da monogamia, do amor romântico e da família nuclear, que, concordamos com Cleménce X. Clementine, devem ser abolidos.
Boa leitura!
CLÉMENCE X. CLEMENTINE E ASSOCIADAS DA GANGUE DE GAROTAS VENENO INFINITO
“Chega de mães, mulheres e meninas, vamos destruir as famílias!” *foi um convite ao gesto de quebrar a cadeia de eventos esperada, a soltar as potencialidades comprimidas.
Foi um golpe contra os casos de amor fodidos, contra a prostituição comum.
Foi um apelo à superação do casal como unidade elementar na gestão da alienação.*
- Tiqqun, “Como?”
Fluxos libidinais cortam o mundo social. Relações amorosas e sexuais não existem em algum domínio isolado, com segurança, do resto da sociedade. Pelo contrário, são elementos constituintes de quase todos os aspectos da vida social. O desejo flui e circula por locais de trabalho, debates intelectuais, organizações políticas, círculos artísticos, parquinhos e cemitérios. O paciente idoso agarra o seio de uma enfermeira curvada sobre ele. Um oficial do governo despe sua estagiária recém-contratada até que ela fique só com sua calcinha estampada de oncinha, durante uma reunião importante em seu escritório. O homem encarcerado levanta sua mão ao vidro da cabine de visita, tentando tocar sua esposa após vinte anos de separação física. Esses fluxos de desejo libidinal operam entre e dentro de mecanismos sociais mais amplos, ajudando a animar as dinâmicas da vida econômica e política. Frequentemente um local político, o desejo permeia o chamado terreno “público”.
O patriarcado incessantemente sujeita esses fluxos de desejo a um sistema de organização, uma lógica que subverte os fluxos de desejo contra si próprios. Vou me referir a essa canalização e organização das relações amorosas e sexuais como a lógica do casal — aquela que afunila, simplifica, e reduz o desejo amoroso às necessidades do patriarcado dentro do modo de produção capitalista. Essa lógica parte do princípio que as mulheres têm somente um único lugar para a realização de seus desejos sexuais e sociais: a relação romântica com um homem. O casal funciona como o limiar, a taxa de admissão, a chave dourada que permite à mulher que participe do mundo social. O casal promete que, ao entrar em seu domínio, a pessoa não sofrerá mais de alienação, de isolamento, de tédio, de falta de raízes. O casal concede à mulher o estatuto de pessoa e visibilidade social. Ela obtém um título, uma temporalidade, um espaço através do casal. O casamento consagra essa lógica e sua perpetuação da forma específica assumida pelo patriarcado sob o capitalismo.
A ação e o discurso dentro das relações sociais patriarcais emergem de um grupo de homens interessados um no outro. Em círculos intelectuais, políticos, ou artísticos, um grupo de homens com frequência monopoliza a habilidade de participar da produção de eventos ou ideias, o que não quer dizer que façam algo particularmente interessante. O patriarcado excluiu sistematicamente as mulheres da ação e do discurso, limitam-nas como classe a executar o trabalho não remunerado da reprodução social. Em vez de um conceito essencialista, a categoria de mulher deriva de um modo de exploração generificado e relega certos tipos de trabalho a uma esfera privada e não paga. Enquanto as mulheres trabalham ativamente em empregos remunerados, além do trabalho doméstico, os homens criam a esfera da vida pública para se protegerem de aceitar sua banalidade e superficialidade.
Os homens concedem às mulheres acesso à ação e ao discurso por desenvolverem relações sexuais com os homens desse círculo. Mulheres fora de casais, esses cachorros soltos, ficam na periferia, sempre a uma distância do espaço onde debates, projetos e eventos se desenrolam. O casal atua como uma forma social que requer que as mulheres, para participar de qualquer prática ou domínio que desejem, se anexem a homens através do mecanismo do casal. A forma-casal com frequência constitui o único dispositivo que protege uma mulher da misoginia de um grupo de homens. "Quem é aquela? Ah, acho que é a namorada do Cláudio, ex do Júlio." As mulheres se tornam conhecidas por seus relacionamentos com os homens, não por suas contribuições à vida intelectual ou política. A vida das mulheres diminui seus papéis a esposa de R. ou amante de J., não poetas, teóricas, ou revolucionárias por direito próprio.
As mulheres optam por estratégias diferentes diante das relações sociais patriarcais e da lógica do casal. A mulher que vai atrás de um homem com poder em um determinado meio. A mulher que sempre precisa de um homem por perto e vai aceitar qualquer um que conseguir. A mulher que se deleita na confiança de ser a namorada de Fulano de Tal. A mulher que senta alegremente no “sofá da namorada” durante o ensaio da banda. A mulher que fica deprimida durante os intervalos entre namorados. A mulher que vê o homem com quem está como um espelho de sua própria proeza. A mulher que se guarda até que um homem impressionante o suficiente faça avanços sobre ela. A mulher cujo trabalho intelectual é monopolizado por ficar acordada até tarde escrevendo emails de desculpas ao namorado em vez de esboçar seus próprios poemas, teorias ou planos arquitetônicos.
A lógica do casal media a relação de uma mulher consigo mesma e suas relações com outras mulheres. Na produção de si mesma como mulher, ela permanece constantemente consciente da necessidade de se fazer desejável, de se fazer merecedora do desejo de um homem, de estar apta para o amor de um homem. A dimensão da subjetivação feminina contemporânea do “Vai, garota! Você vale a pena!” codificou a servitude individual das mulheres como sua autorrealização. As ondas feministas pós-1950 reconfiguraram a posição das mulheres no capitalismo e em relação aos homens sem necessariamente fazê-la menos opressiva de nenhuma maneira. O pseudo-empoderamento das mulheres para transar por aí, usar batom, e comprar chocolate para si mesmas se quiserem não equivale a nenhuma mudança significativa em sua exploração estrutural. A “mulher fatal”, a dançarina burlesca, a mulher executiva tem um homem, ou um homem a tem? A mulher pode internalizar completamente as demandas do casal, reproduzindo-se como atraente, desejável, e buscada — traços que devem ser produzidos — mesmo enquanto combatem o homem sexualmente predador. A lógica do casal fortaleceu a relação direta da mulher solteira com a mercadoria, o imperativo de se produzir como mercadoria. Assim como na esfera do comércio — onde, supostamente, compradores e vendedores trocam equivalentes — a mulher solteira troca horas de aprumação, tonificação e depenação pela capacidade de ser comprada por um homem no mercado da carne. O casal media as relações entre as mulheres na medida em que elas interagem não para aprofundar suas conexões uma com a outra, mas para fofocar sobre meninos, para processar suas relações com os homens, para trocar tecnologias de feminilidade através das quais possam melhorar seus status com os homens. Dessa maneira, a forma-casal assombra mulheres tanto sozinhas quanto com outras mulheres.
Não se deve desassociar o desejo por um relacionamento sexual com um homem do baralho empilhado do patriarcado. Quem são esses namorados? O que uma mulher acha que ter um vai render a ela? Em suma, tudo. O casal representa o próprio desejo, depois de consagrado, afunilado, e reduzido a um único objeto pelo patriarcado. Ao invés de germinar anseios de negação ou superação, meninas jovens planejam seus casamentos já no jardim de infância. Por que uma mulher se vende por uma punheta? Ela abre mão de si pelo casal na esperança de mitigar sua alienação e aumentar seu senso de “segurança”, da mesma forma que uma cidadã abre mão de si por um Estado repressivo em que confia que a mantenha segura. Embora talvez não visível de início, o casal irá aliená-la e isolá-la mais ainda. Ela terá que responder ao marido em adição a seu chefe, entrando em uma relação de hiper-exploração. A camarada Valerie Solanas atenta para a função atomizante do casal: “Nossa sociedade não é uma comunidade, é apenas um conjunto de unidades familiares isoladas. Desesperadamente inseguro, temendo que sua mulher o deixe se for exposta a outros homens ou a qualquer coisa que remotamente se pareça com vida, o homem busca isolá-la de outros homens e da pouca civilização que há, então ele a move para o subúrbio, uma coleção de casais absorvidos em si mesmos com seus filhos.”[¹] Quanto uma mulher pode perdoar? Quanto ela deixa passar? Por quanto tempo ela tolera que as coisas estejam defeituosas, podres, fodidas? Ela evita se separar a grandes custos porque desobedecer a lógica do casal irá bloquear seu acesso aos mecanismos precisos que supostamente a salvam dessa existência insultante. A aparência de cuidado e uma promessa de solidariedade futura a convencem a permanecer em circunstâncias insatisfatórias e patéticas.
O casal funciona como problema e como solução. Se não esse, ela só precisa de outro namorado, um que a trate melhor. A mulher pode sentir a náusea da ambivalência, de ser apanhada entre a obsessão pelo poder fálico e a repulsa por ele. Ela não sabe o que é maior, a melancolia do casal ou a melancolia de denunciá-lo como uma forma social. A maioria opta pela tristeza do casal no lugar da alienação de se libertar de suas amarras. O capital empresta um ombro em cada esquina, sugerindo que você assista uma comédia romântica com suas amigas quando estiver com o coração partido ou fornecendo maneiras infinitas de personalizar seu vestido de noiva. Similar à estrutura da política eleitoral que limita o escopo da crítica a pessoas erradas estarem no poder, a forma- casal atribui os problemas das mulheres a uma escolha errada de homem com o qual se relacionar, e não ao casal em si. Enquanto ela permanecer investida na ideia do amor romântico como salvação, como o princípio norteador contra o isolamento e em direção da realização, ela continuará presa à forma-casal.
Como outra faceta do casal como solução, os discursos em torno das medidas de austeridade e reestruturação neoliberal enquadram o casal como um remédio para a pobreza. Lê-se contos de jovens transitando entre a pobreza e a prisão como um resultado da parentalidade solo, especialmente pais ausentes, como se a restituição do casal pudesse remediar a pobreza e o racismo estrutural produzidos pelo capitalismo. Os burocratas do Estado dizem às mulheres que o casal e a família que ele ancora substituíram programas de assistência social: você não precisa de ajuda com creche ou cestas básicas; você precisa de um homem! A maneira mais certa de sair da pobreza é se casar! Enquanto muitas mulheres talvez nunca tenham acesso a empregos, as que trabalham por um salário sofrem uma discrepância de gênero nos ganhos, com grandes chances de as forçar a depender do salário de homens para sustentar seus filhos. Esses mecanismos econômicos preservam a veemência da forma-casal como uma cilada para as mulheres dentro do capitalismo, que mascara trabalho não remunerado como atos de amor e cuidado.
A lógica do casal substituiu a lógica de Deus. Ligue o rádio e ouça inúmeros relatos da posição absoluta do casal: você é a única coisa que importa, não posso continuar a viver sem você — ou mais evocativamente — Cada respiro que você der / E cada movimento que você fizer / Eu vou estar te observando. A maioria das canções de amor contém ou começa com “eu”, mas o “eu” é na verdade todo mundo ajoelhando perante a forma social generalizada do casal. O olhar masculino substituiu o olhar divino. Como Artaud nos pediu para “Pôr um fim ao julgamento de Deus” (Pour en finir avec le jugement de Dieu), vamos pôr um fim ao julgamento dos homens.[²]
Examinando essas dinâmicas, pode-se perguntar se as mulheres podem optar por sair do casal, talvez por meio de uma exploração de relações casuais. Essa opção pode não ir longe o suficiente. Não confunda poliamor com um paradigma pós-casal. Poliamor é uma multiplicação da lógica do casal, não sua destruição. Sexo casual, parceiros primários, disponibilidade física e emocional e outras distinções afins contém relações amorosas na negociação do casal. O poliamor abre formações parecidas com a do casal sem o compromisso formal deste, ampliando sua territorialidade e tentáculos como de polvo que sugam o desejo para dentro da lógica do casal. Relações poliamorosas ou casuais funcionam como estratégias para as mulheres navegarem relações sociais patriarcais em vez de romper com elas ou negá-las.
A lógica do casal penetra tanto nos relacionamentos homossexuais quanto nos heterossexuais. Homonormatividade e assimilação gay moldaram as relações queer na forma-casal heterossexual. Em vez de uma subversão das relações sociais heterossexuais, homossexuais liberais assimilacionistas lutaram pelo direito de se encaixar na lógica do casal — casar, usar vestido de noiva, criar núcleos familiares capazes de proteger as relações de propriedade. Os homossexuais perpetuam as normas heterossexuais e a falocracia através de categorizações e encenações, que codificam ainda mais os desejos e constituem o sexo dentro da lógica da centralidade e autoridade fálica. Casais do mesmo sexo não escapam nem da territorialidade imposta ao desejo, nem do reforço e da fidelidade do casal a relações sociais repressivas.
O desmantelamento da lógica do casal não indica desgosto pelo amor, mas sim uma crítica ao direcionamento do amor para um objeto específico. É preciso contextualizar a forma-casal no patriarcado, visto que o chamado “amor” chega a nós através do aparato de gênero. Denunciar o casal não significa fugir do encantamento, das cartas de amor escritas em letra cursiva minúscula com caneta de pena, ou da sensação da calçada ser um trampolim. Em vez disso, criticar o casal envolve uma análise da maneira como o patriarcado remolda o desejo da mulher por solidariedade, por intimidade, por excitação, por negação, pelo evento, em direção a uma consolidação do poder fálico e da acumulação de capital.
Quem não chegaria a esta conclusão: o patriarcado e o capitalismo frustram qualquer possibilidade de amar de uma forma em que se liberte da lógica do casal ou da opressão. Libertar o amor necessariamente envolve a abolição do patriarcado e do capitalismo. Não se pode optar por entrar ou sair dessas relações estruturais, e a luta contra elas será um projeto histórico coletivo.
Neste mundo patético e natimorto, nós temos, ainda, sentimentos. Às vezes olhamos para alguém e pensamos que estamos apaixonados por essa pessoa. Devemos destruir a ilusão de que romance é ou será um caminho para a libertação. Devemos nos despojar dos relacionamentos românticos como meios através dos quais podemos ter acesso a um mundo melhor que este. Ao perceber que as economias e convenções dos relacionamentos românticos são parte integrante do desastre suave e contínuo de nossas vidas, deixaremos para trás todos os casais até então existentes. Formas novas e talvez desconhecidas de organização feminista apresentam a única fronteira possível para o amor.
Para aqueles que aceitaram a forma-casal como uma farsa, como incapaz de permitir a circulação do desejo, da guerra e da brincadeira, fazemos as seguintes recomendações. Não se engane: não estamos defendendo uma resposta subcultural, individualista, de estilo de vida ou voluntarista à forma-casal, nem culpamos as mulheres que devem permanecer em casais para sua sobrevivência material. Estamos, no entanto, comprometidas com a práxis. Essas podem ser algumas das formas que a luta contra o casal vai assumir, coincidindo com um movimento mais amplo em direção à abolição de nós mesmas como mulheres.
- Despeje sangue menstrual em vestidos de noiva. Mande tigres para festas de noivado.
- Faça amor. Qualquer coisa pode ser sexo. O corpo é rico e variado em suas partes e sensações. Há, ainda, tantos êxtases a serem sentidos. Fuja da organização genital da “sexualidade”.
- Rompimento de casais, que Solanas descreve: “SCUM vai romper casais — intrometer-se em casais mistos (masculino-feminino), onde quer que estejam, e rompê-los.”[³]
- Liberte-se das garras do casal (isto é, a prisão do amor). Saia pela porta da frente e se perca em uma multidão. Passe um tempo com plantas e animais. Saia para espaços abertos. Substitua a díade, o par, as duas metades que fazem um inteiro por um terceiro, um quarto, em termos não-necessariamente humanos: Os três e aquela alcateia de lobos e aquele arbusto! A comuna! A neve! As xícaras de chá! As facas! As criaturas!
- Abra os conteúdos do amor: Eu não queria te beijar, apenas. Eu queria tudo para o qual você era uma entrada: o cheiro dos charutos, as portas da cidade se abrindo para mim, samosas, a casa da sua tia no interior, a sensação de que eu poderia andar por aí de olhos fechados e nada me feriria.
- Saia para caminhadas anti-sedutoras, um passeio desinteressado que vibra com tudo menos sexo. Ou como Guy Hocquenghem escreve, “se deixo minha casa toda noite para encontrar outra bicha andando pelos lugares onde outras bichas costumam ficar, não sou nada além de um proletário do meu desejo que não curte mais o ar ou a terra e cujo masoquismo é reduzido a uma linha de montagem. Em toda minha vida, só conheci realmente o que eu não estava tentando seduzir.”[4]
- Anime outros modos de organização social com amor e erotismo. Faça um seminário, um grupo de leitura, um partido político, uma gangue de rua, um jardim de pedras mais satisfatório do que duas pessoas numa cama jamais poderiam ser. Ame de forma a “aniquilar as categorias desgastadas, neuróticas, e egoístas de sujeito e objeto,” como sugere Mario Mieli.[5]
- Interrogue e desafie as maneiras pelas quais a lógica do casal constrói famílias. Reconsidere os limites da família e de quem você visita nos feriados. Repense os laços sociais para fora do laço do casal, do laço de sangue, do laço legal.
- Construa espaços feministas autônomos onde as mulheres produzam sua própria ação e discurso. Busque banir a mediação dos homens das relações entre mulheres. Impeça que uma única relação te aliene dos processos que contribuem para a libertação e a abolição do capitalismo e do patriarcado. Não deixe nenhum vínculo ficar no caminho da amizade, da organização e do avanço dos interesses de classe.
- Torne inteligível o movimento da história e da práxis revolucionária como a única história de amor possível.
Não lamentamos a decomposição da forma-casal. Gostamos de pensar nela como uma bênção, um presente do futuro. Consideramos a abolição do namorado e do marido parte de um movimento histórico de superação do capitalismo e do patriarcado. Como escreveu a camarada Dominique Karamazov, a constelação de relações sociais após o capitalismo assumirá um caráter drasticamente diferente: “À medida que o comunismo generaliza o livre acesso a bens, e, entre outras coisas, transforma e aumenta o espaço disponível para viver, ele destrói os alicerces e a função econômica da família. Além disso, como é a realização da comunidade humana, destrói a necessidade de um refúgio dentro da comunidade familiar.”[6]
Como relação historicamente limitada, as contradições internas da forma-casal um dia chegarão a seu fim, e o amor não conhecerá mais a territorialidade das promessas, de gênero ou de sujeito. Em complemento às nossas lutas nas ruas e nas gráficas, abrimos uma frente contra o casal. A luta feminista continua sendo o horizonte sempre atraente diante de nós.
Amarrei meu namorado com explosivos caseiros e o explodi. Sua carne se espalhou para todo lado. Meu afeto também. Estou farta da paixão. Vamos nos politizar.
Costurando a ruptura — Epílogo à Forma-Casal
25 de novembro de 2016
Escrevemos o texto “Contra a forma-casal” em 2010.
Depois de algumas revisões, ele apareceu em 2012.
Ele criticava todas as formas existentes de união romântica.
Que consideramos uma barreira para o triunfo de uma revolução feminista.
Desde então, várias coisas aconteceram.
Dentre nós, entre nós, no mundo.
Ficamos surpresas. movidas. instáveis.
Tivemos que repensar.
Uma virada psicanalítica em nosso pensamento, por volta de 2013.
Não tanto Freud ou Lacan, mas Klein.
A psicanálise da experiência de grupo que surge da teoria das relações de objeto de Klein.
Wilfred Bion. Relações de grupo.
Estivemos digerindo.
Fomos levadas em novas direções.
Estávamos pensando por meio de projeções e introjeções:
Não estávamos dispostas a tolerar certas influências dentro de nós mesmas, então as atribuímos a outros.
Não estando dispostas a tolerar nossas próprias influências, assumimos os sentimentos dos outros.
O que nos levou ao vale das sensações.
A denúncia do casal, do namorado, do companheiro, do parceiro
pode ser uma forma de projeção.
Uma forma de banir aquelas coisas que temos medo de ver em nós mesmas,
tornando-as propriedades do casal.
A negação da própria agressividade, exteriorizada como homem.
As feministas devem ser cautelosas
Cautelosas em projetar agressividade em homens como uma categoria
o que por sua vez alivia as mulheres e homens-não-cis de ter que reconhecer
as formas de agressão que habitam dentro de nós
As formas de violência que podemos e efetivamente desencadeamos
Achamos que é importante para mulheres brancas, mulheres cis, mulheres com recursos,
mulheres que vivem nos centros do império, mulheres de muitas posições diferentes
Que consigam reconhecer a própria agressividade.
Canalizada tanto internamente quanto contra este mundo.
As feministas não devem se idealizar.
Aprendendo a nos permitir sentir ambivalência.
Aprendendo a nos permitir reconhecer a ambivalência.
Em relação a nós mesmas. aos nossos projetos políticos. aos nossos camaradas.
Em nossos experimentos de abstinência do casal,
também encontramos as dificuldades do parentesco não-casal.
A maneira como falhamos um com outro e nos amamos e falhamos em amar umas às outras.
Pessoas, grupos, nunca são uma coisa só
Nunca é um puro “foda isso” ou “ame aquilo”
Deixando a tristeza fluir.
Você tem que se animar com as decepções
ou morrerá antes de estar realmente morta.
Mesmo no comunismo ou o que quer que isso signifique
teremos momentos de desaceleração, de incerteza.
Estamos aprendendo a ser flexíveis com sentimentos
Para engajá-los com o mesmo tipo de reflexão e cuidado que usamos para os três volumes de O Capital.
Em sermos tão rigorosas com a compreensão do que estamos sentindo quanto com a análise de categorias políticas e econômicas.
Também percebemos como a forma de denunciar o casal é uma defesa
Uma muleta, um álibi, um meio de nos escondermos
Dos desafios, dos perigos, das vulnerabilidades de estar perto
De dizer o que pensamos e sentimos
De estarmos dispostas a pedir o que queremos
Relacionalmente, sexualmente, interpessoalmente.
Ainda estamos fartas de casais e pessoas casaisísticas.
Achamos vocês chatos e patéticos
Cada vez que abrem mão da oportunidade de apoiar seus amigos e camaradas
Na rua, na festa, no enfrentamento à polícia.
Nos momentos turbulentos, sensuais e assustadores. Em toda a suculência da totalidade social.
Para que possam se isolar como um casal por detrás das portas trancadas do mundo.
Reviramos os olhos infinitamente.
Temos um coquetel de veneno pronto para você.
Sabemos que essa reclusão emerge do mal-estar que este mundo gera em nós
O medo de ficarmos indefesas, sozinhas, sem ajuda
Sem a sensação simples e calmante de se enterrar no corpo da outra pessoa
E também o cansaço, a tensão de ser incompreendida, invisível, sem testemunhas
Isso nos leva à pseudo-apólice de seguro do casal
E não é apenas o casal
Nós inventamos tantas maneiras de nos escondermos dos horrores deste mundo
E das formas como os habitamos diariamente, de hora em hora.
O casal é uma forma de se esconder entre muitas.
Esse é o tom e o modo de (não) nos envolvermos com o social que nos dá nojo.
Sentimos a atração de estarmos em um casal porque todo mundo está.
E esta é a mesma atração que nos convence que
temos que pagar aluguel porque todo mundo o faz
Ou trabalhar por dinheiro porque todo mundo o faz
Claro, a história pode mudar abruptamente
De tal maneira que nós não mais saibamos o que são proprietários, patrões ou maridos.
Nós gostamos disso. Queremos que esse momento chegue e goze.
Certos modos de relacionamento podem nos abrir.
Eu não sabia que queria subir no telhado até você me perguntar.
Eu não sabia que queria ser fodida em público até você me perguntar.
Eu não sabia que queria incendiar um milhão de dólares até você me perguntar.
O que descobrimos em nossas interações com os amantes
A prática de prestar atenção ao que acelera nossa respiração
De perceber o que nos desperta
Nomeando, cultivando, perseguindo
Achamos que esta prática está ligada ao
que nos permitirá parar de trabalhar, e pegar o que precisamos.
Estamos aprendendo a liberar nossos desejos a ponto deles romperem com o capital.
Queremos usá-los como cata-ventos que apontam apenas
para o comunismo.
E pensamos que uma reflexividade emocional, inteligência e ternura — o que estou sentindo? como posso descrever isso? como meus sentimentos afetam minhas interações com as pessoas ao redor? —
Será necessária para confiarmos umas nas outras
Construindo os tipos de vínculos que podem nos tirar deste mundo.
Vínculos longos o suficiente para sustentar o cultivo de cenouras e a expropriação de armamentos.
Recebemos algumas perguntas sobre o papel do sexo na luta contra o casal.
Gostaríamos de esclarecer nossa posição:
Queremos levar um tapa na cara quando gozamos
Ser penetradas em vários orifícios simultaneamente
E ser fodidas também pela prosa embriagadora das mulheres
Pelas cores do sol se pondo nesta cidade.
Gostaríamos de passar anos tocando todas as outras partes do seu corpo, além dos órgãos genitais.
Para passar anos nos tornando íntimos de nossa própria destreza física
Preparando-nos para o amor, para os tumultos que chegam sem aviso prévio.
Você pode nos ouvir cantarolando baixinho:
sem deus
sem lei
sem marido
livres belas e loucas
❤,
Clémence x. Clémentine / infinite venom association
Textos originais:
Tradução: “Contra a forma-casal”: Raysa Muller, “Costurando a ruptura”: Anita Bertelli e André Vasconcelos
Introdução: Raysa Muller e Anita Bertelli
Curadoria de imagens: Raysa Muller
Notas de rodapé:
[1] Valerie Solanas, “Manifesto ESCÓRIA” (SCUM Manifesto) (New York: Verso Books, 2004) 48.
[2] Antonin Artaud, “Pôr um fim ao julgamento de Deus” (Pour en finir avec le jugement de dieu)” em Selected Writings, ed. Susan Sontag (Berkeley: University of California Press, 1988).
[3] Solanas, SCUM, 72.
[4] Guy Hocquenghem, “Os Cus Energúmenos” (The Screwball Asses) (New York: Semiotext(e), 2010) 51.
[5] Mario Mieli, “Homossexualidade e Libertação: Elementos de uma Crítica Gay” (Homosexuality and Liberation: Elements of a Gay Critique) (London: Gay Men’s Press, 1980) 56.
[6] Dominique Karamazov, “A Miséria do Feminismo” (“Misère du Féminisme”) em La Guerre Sociale, №2 (Paris, 1978) trans. Jean Weir (as The Poverty of Feminism) (London: Elephant Editions, 1998).