Contra deus, pátria e família: Construindo uma Não-Monogamia Radical e Antifascista

André Luiz
Afetos Insurgentes
Published in
11 min readAug 22, 2022

O projeto de poder ultra-direitista é uma ameaça a todos aqueles que não compactuam com seus ideais e precisamos fazer frente a isso!

A Família Bolsonaro (Davi Nascimento/Divulgação / Estadão Conteúdo)

Aqui na Afetos nós temos uma conta no Twitter (por sinal, clica aqui e entra lá), e sou eu que mexo nela, posto as paradas, respondo as pessoas e etc… E, todos os dias, postando ou não, sempre surgem comentários de algum “merdinh* incel” ou fascista já “crescidinho” xingando a gente e falando para gente morrer. Nossa conta é pequenininha, nunca nem teve um tweet que viralizou decentemente e, mesmo assim, o incomodo com o nosso discurso é tamanho que a galera sai do bueiro para “denunciar nossas profanidades”.

É engraçado como o conservadorismo é algo sensível. A normatividade é reacionária por natureza, ela não pode permitir pontas soltas, dissidências. Um mero verbalizar de novos caminhos já é punido com rigor. Alias, é aqui que todo o discurso cristão de amor ao próximo e perdão cai por terra facilmente. Para quem escapa a norma, não há perdão.

Mas, olhando por uma perspectiva política, porque nosso discurso não-mono (revolucionário) incomoda tanto a direita, e em especial, a ultra-direita conservadora, que tem no bolsonarismo sua face mais exposta no Brasil?

A Regra e a Exceção

Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E Arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoiévski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. (Je vous salue Sarajevo — Jean Luc Godard)

O curta acima lançado em 1993 por Godard é uma reflexão sobre os nacionalismos europeus a partir de uma foto tirada por Ron Haviv durante a Guerra da Bósnia, ocorrida entre 1992 e 1995. Para além disso, o filme também entra fortemente na dicotomia entre a cultura de massa, e o papel da arte como questionadora (e por vezes transformadora) dessa cultura.

O ano é 2022 e estamos a beira de um possível golpe militar. Bolsonaro incita em seus seguidores um nacionalismo enviesado, com um discurso pautado em alguns dos valores mais “fundamentais” da identidade brasileira e ocidental: A proteção da moralidade cristã, a defesa da família tradicional, da liberdade (no sentido mais neoliberal possível), a exaltação do “cidadão de bem”, do capitalismo e da propriedade privada.

Para justificar sua fala paranóica acerca dos perigos que cercam tais valores, ele cria espantalhos, transformando falácias em assombrações. Diz que vivemos em tempos de “cristofobia”*[1], que a “ideologia de gênero” está botando em risco as nossas crianças e famílias, que o comunismo pode voltar ao Brasil e tomar nossa liberdade e nossos pertences como fez em tantos outros lugares do mundo.

O Fascismo trabalha assim. Cria absolutos, projetando inimigos nas sombras para nos desviar dos reais problemas. Invoca um passado heróico que nunca existiu, um nacionalismo torto e heterogéneo. O que ele quer é isolar dissidências que fujam ao seu controle, que não compactuem com seus valores vis, que não possam ser normatizadas.

Nas falas do próprio presidente:

“Maioria é uma coisa, minoria é outra. Minoria tem que se calar, se curvar a maioria, cabo!”*[2]

E aqui voltamos a Godard: Bolsonaro representa a regra, a norma, o que há de pior na nossa identidade cultural.

“Então você tá dizendo que vivemos numa cultura fascista, André?!?!”

Sim, estou.

Claro que não toda, tem muita coisa boa na nossa cultura popular, na nossa miscigenação, naquilo que é ser brasileiro. Mas quem está a margem sabe o país que tem. O país que desrespeita e extermina seus povos originários, que descrimina e encarcera sua população negra, que obriga mulheres estupradas a darem a luz, com a polícia que mais mata no mundo, que está em vias de destruir o ecossistema mais valioso do planeta, no topo da lista de assassinatos de pessoas trans…….

Bolsonaro não criou nada disso, o que ele fez foi se aproveitar desse fascismo que já fazia parte da nossa sociedade para chegar ao poder, tirando do armário a ultra-direita, o que intensificou ainda mais essa perseguição aquilo que não faz parte da regra.

Regra essa que é patriarcal, capitalista, neoliberal, anti-pobre, heteronormativa, capacitista, cristã, branca, monossexista…

A estrutura monogâmica e o discurso conservador

Fonte: Revista Miga

O que chamamos de monogamia é o sistema invisível no qual o jogo do amor é jogado, o tabuleiro. Tanto é assim que não é nomeado: é dado sem questionamentos. Que elementos contém esse tabuleiro no qual os casais jogam? Como espinha dorsal estão a romantização do vínculo, o compromisso sexual, a exclusividade e o futuro reprodutivo, que assombra como um fantasma os amores e os casais. Para fixá-los em uma rota específica, instalou-se uma série de práticas de convivência e dependência, também econômica, que dão substância material à construção amorosa. (Desafio Poliamoro — Brigitte Vasallo)

Instituída desde a Grécia antiga, a monogamia foi criada com o intuito de garantir a consanguinidade dos herdeiros do patriarca da família. Para isso, foi imposta para a mulher a exclusividade sexual, e também, o papel de governanta do lar, afastando-a da vida pública.

Sabemos que ao longo de milênios a estrutura evoluiu, incorporando em seu repertório novidades como, por exemplo, o “amor romântico” ou a possibilidade de se ter múltiplos parceiros em sequência ao longo da vida. Contudo, suas bases sempre serão patriarcais, ligadas a manutenção da propriedade privada e da mulher como cidadã de segunda classe, relegada as tarefas domésticas e submissa ao homem.

Ao “defender” a família, o casamento, a inocência das crianças, a heteronormatividade…enfim, toda essa ladainha, Bolsonaro busca (na realidade) a manutenção dessas bases. Todo esse movimento pela aceitação de famílias LGBTQIA+, por uma maior participação do homem nas tarefas do lar e na criação dos filhos, pelo fim da obrigação reprodutiva e também da imposição de gênero nas crianças, bate de frente com o propósito principal dessas instituições: garantir privilégios para uma parcela da sociedade.

Não é a toa que a esmagadora maioria dos seus eleitores são homens, entre 45 e 59 anos, com renda média maior que 5 salários mínimos *[3]. É uma parcela da população de mente conservadora, iludidos ao se acharem parte da burguesia e que sentem seus privilégios como chefes de família ameaçados por essa onda “identitária” progressista.

Todavia, o problema realmente começa quando temos uma esquerda que quer disputar essa pauta moral a partir do “repaginamento” de valores conservadores.

Uma luta perdida

- Casamento é entre homem e mulher.

- Gostar de Homossexual ninguém gosta, a gente tolera.

- O senhor se considera homofóbico?
- Se para defender a família, tem que ter esse comportamento, sim!

- O que nós queremos é que o Joãozinho seja Joãozinho a vida toda. A Mariazinha seja Maria a vida toda, que constituam família, que seu caráter não seja deturpado em sala de aula.

- Quem quiser vir aqui [ao Brasil] fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. O Brasil não pode ser um país de turismo gay. Temos famílias.

(Todas as falas são de Bolsonaro)

Quando falamos de conceitos como NM política, Anarquia Relacional ou Amor Camarada, estamos propondo a criação de uma visão não-monogâmica das relações que vai além do número de parceiros sexuais que queremos ter nas nossas vidas.

Ao problematizarmos a monogamia como uma estrutura de opressão, estamos declarando que também não vamos aceitar as outras tantas estruturas (racismo, capacitismo, homofobia…) que se conectam com ela. É uma visão sistêmica de questões sociais importantes, questões essas que perpassam nossas relações pessoais e moldam a maneira como nos organizamos enquanto seres políticos.

A monogamia é a ferramenta usada pelos conservadores para garantir seus ideais. Um mundo formado por relações coletivas e por redes de afetos vai de encontro com a nossa sociedade capitalista, divida em casais e famílias nucleares que competem entre si. Não é a toa que a monogamia é uma imposição cultural, econômica e legal. Todos os caminhos levam a ela, pois sua manutenção é imperativa para preservação do status quo.

No entanto, quando se trata dessa pauta moral, temos uma esquerda que joga com a Regra e abomina a Exceção.

Movimento Integralista (Plínio Salgado, terceiro da esquerda pra direita)

“Deus, pátria e família”*[4]

Esse é o lema do movimento integralista, o fascismo a brasileira, fundado por Plínio Salgado na Década de 30 após sua viagem “inspiradora” a Itália de Mussolini. Não é a primeira vez que temos alguém astiando essa bandeira em nome dos bons costumes. Movimentos assim são recorrentes na ultra-direita, e sabe porque?

Porque o cristianismo, o nacionalismo (com raras ressalvas) e a família são valores criados e controlados por eles.

Precisamos entender que, ao ser exportado para o resto do mundo (incluindo o Brasil), o modelo de família colonial europeu (junto com a imposição da monogamia e do cristianismo), foi uma das principais armas na subjugação dos povos originários e na ocidentalização da sociedade Global. Não bastava o domínio material e econômico, para qualquer iniciativa colonizadora funcionar, era preciso dominar as crenças, os desejos, a cultura.

E querer repaginar isso é um tiro no pé.

Lembro de Dilma e Lula se virando do avesso para ganhar o voto dos evangélicos (e conservadores em geral). Fazendo comícios nos cultos de Edi Macedo e outros fundamentalistas, pedindo que a benção de Deus recaísse sob as famílias Brasileiras. Na época todos elogiavam, diziam como era bonito ver as esquerdas fazendo as pazes com a fé popular, com valores universais que estavam acima de desavenças políticas.

Alguns anos depois, bastou o chicote da austeridade cantar, a fonte secar, a coleira do fascismo ser aberta, e toda essa união ruiu em segundos. Não sobrou um pastor para contar a história. A frente cristã veio com força no apoio ao Golpe e rapidamente, o PT, tão exaltado por compartilhar dos tais “valores universais” passou a ser o inimigo dos povos e enviado do cramunhão.

E eis que veio Bolsonaro, dizendo tudo que eles queriam dizer mas sentiam que não podiam. O verdadeiro retentor dos seus valores.

E os nossos valores?

Alexandra Kollontai (créditos: esquerdadiario)

Ao invés do matrimônio indissolúvel, baseado na servidão da mulher, veremos nascer a união livre fortalecida pelo amor e o respeito mútuo dos membros do Estado Operário, iguais em seus direitos e em suas obrigações. Ao invés da família de tipo individual e egoísta, se levantará uma grande família universal de trabalhadores, na qual todos, homens e mulheres, serão antes de tudo trabalhadores e camaradas. Essas serão as relações entre homens e mulheres na Sociedade Comunista de amanhã. Estas novas relações assegurarão à humanidade todos os gozos do chamado amor livre […] (Alexandra Kollontai ~ A Revolução Sexual e a Revolução Socialista).

Nessa realidade Capitalista em que vivemos, “valores” de esquerda não são muito populares. Entre o consumismo crônico e o individualismo narcisístico fomentados pelo neoliberalismo, fica difícil articular ideias que vão contra essa maré.

Ironicamente, apesar de não ser reconhecida popularmente como uma pauta de esquerda, a não-monogamia quando pensada politicamente traz em si muitos desses valores:

  • Somos contra hierarquias nas relações humanas;
  • Somos contra controlar o corpo de outros seres humanos;
  • Somos a favor da construção de relações em redes, dando poder ao coletivo;
  • Somos um movimento feito por e pensado para pessoas históricamente marginalizadas pela sociedade capitalista (mulheres, negros, LGBTs…)
  • O que nos faz objetivamente contra o patriarcado, o racismo, a LGBTfobia, o capacitismo…;

Num mundo dominado pela Regra de uma direita opressiva, o direcionamento ético da NM política se tranforma na Exceção de Godard. Não estamos na cultura popular, nosso jeito de ver as relações não está nos cinemas, não é cantada nos bares nem retratada nos grandes romances. Mas é vivida e escrita por alguns poucos que buscam ir contra a Regra, se transformando em arte, ou, como cunhou Geni Nunez, em artesania dos afetos.

Por fim, vamos elucidar algumas coisas…

Em primeiro lugar acho muito importante deixar claro que nossas críticas a família monogâmica, a entidade casal e ao casamento, são críticas estruturais. Ninguém está falando do seu casamento ou da sua família especificamente. É óbvio (e me dói ter que escrever isso) que ninguém ta aqui te chamando de fascista por ser casado ou monogâmico.

No entanto, precisamos debater essas instituições, cortando a névoa de romantismo e determinismo que as cerca, expondo suas raízes e real propósito na nossa sociedade. Não há nada de natural na forma como nos organizamos materialmente, nem na forma como a nossa subjetividade encara questões afetivas. Fomos ensinados a pensar e sentir dessa forma, e todos os dias recebemos estímulos que reforçam tal formatação.

Se você, por exemplo, está super feliz com sua família, com sua cerca branca, su filhe e companheire, parabéns, a vida é curta, aproveite a felicidade que te encontra. Mas peço que você não sabote essa discussão por causa da sua experiência pessoal.

Por exemplo: quando uma mulher afirma que dentro do regime patriarcal, todo o homem é um estuprador em potencial, não sou eu que vou virar e dizer “mentira, só homens maus fazem isso, eu nunca fiz isso”.

Sim, eu que vos escrevo nunca estuprei nem nunca irei estuprar ninguém, mas a crítica é valida, pois esse regime patriarcal que vivemos empodera homenscis para que possam se apropriar do corpo feminino sem remorsos e grandes consequências. Somos ensinados que isso é um direito nosso.

Em segundo lugar eu entendo que ainda não estamos prontos para que um debate sério sobre fascismo, religião, família e não-monogamia seja realizado em canais mainstream. Um texto como esse ainda não tem possibilidade nenhuma de ser pauta dentro da política institucional, e tá tudo bem, eu não espero ver o Lula falando sobre Não-monogamia na Televisão, mesmo porque ele perderia se fizesse isso (risos e lágrimas).

Porém, eu espero pelo menos que o assunto deixe de ser tabu dentre aqueles que se dizem mais progressistas dentro da esquerda organizada.

Exemplo 2: Infelizmente eu sou uma pessoa que ainda não conseguiu deixar de comer carne. Contudo, eu entendo que qualquer discussão séria sobre um futuro ecossocialista envolve pautas veganas. Não é porque eu não faço parte do movimento que eu não possa reconhecer sua importância.

É muito fácil dispensar uma linha de pensamento politico se ele não tem capilaridade popular.

“Isso é utópico, radical demais, nenhum trabalhador vai entender isso…”

Mas isso é esquecer de onde viemos também.

Foi Marx quem escreveu “A religião é o Ópio do povo”, assim como foi Bakunin quem disse “Não se pode amar verdadeiramente a não ser uma pessoa perfeitamente livre”.

Nossas propostas nunca foram simples, coisas que foram escritas a centenas de anos por alguns dos nossos principais pensadores continuam extremamente radicais até hoje. Uma esquerda cooptada que reivindica para si pautas de direita, que abraça lideranças evangélicas enquanto se omite quando o assunto é direito ao aborto, nunca fará revolução. Enquanto alguns lutam pelo que é urgente, outros precisam articular futuros melhores, e é isso que estamos tentado fazer aqui.

Quer nos ajudar?

*[1]: 50% dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos e 10% não têm religião, diz Datafolha

*[2]: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/07/15/bolsonaro-defende-falas-transfobicas-minorias-tem-que-se-adequar.htm?cmpid=copiaecola

*[3]: https://www.poder360.com.br/poderdata/poderdata-no-1o-turno-lula-tem-43-contra-35-de-bolsonaro/

*[4]: Esse lema também já foi usado por Bolsonaro. Ao se referir ao primeiro-ministro da Hungria, e Líder de Extrema-Direita, Viktor Orbán, o capitão afirmou que as duas nações têm em comum “comunhão de valores” no que diz respeito a “Deus, pátria, família e liberdade”. Foi de sua autoria o acréscimo da palavra liberdade ao lema integralista. Matéria clicando aqui!

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André Luiz
Afetos Insurgentes

Comunista, Comunicador Social, Especialista em Mídia, Pós-Graduado e Não-Monogâmico.