Elaborando dores sem perder o senso crítico

Mari Matos
Afetos Insurgentes
Published in
6 min readAug 16, 2022

Seria uma perspectiva política sobre a não-monogamia incompatível com o entendimento e acolhimento de nossas emoções?

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Há muitos anos, eu tenho alguns rituais quando estou triste. Um deles é passar horas maratonando alguma série ao mesmo tempo muito romântica e muito dramática, como Grey’s Anatomy. E, quando eu estou no fundo do poço, lá no fundo mesmo, já cavando a terra na unha, eu apelo para as comédias românticas de Natal (em qualquer época do ano).

Tem muitos dias em que a gente não quer e nem consegue encarar o mundo de frente, colocar energia em romper com a norma, pensar saídas, passar pelas mudanças e enfrentar o medo que vem com elas. Nesses dias, eu me distraio com a ideia de que é possível alguém (no caso, alguma mulher cis-hetero branca e magra, mas da classe trabalhadora) viajar aleatoriamente para um país europeu minúsculo em que a monarquia persiste, se apaixonar por um príncipe com cara de sapatênis na véspera de natal e viver feliz para sempre em plena segurança emocional e financeira.

A verdade é que o apego à fantasia romântica foi muito presente ao longo da minha vida. Os momentos em que eu estava passando por ou tentando me recuperar de traumas complexos, por exemplo, eram os que eu mais sonhava com uma história de amor.

Laurie Essig (2019) tem uma explicação para isso… Ela argumenta que quanto piores as coisas ficam, mais tendemos a nos apoiar no romance para nos sentirmos esperançosos em relação ao futuro. O romance tem o poder de fazer com que a gente sinta um verdadeiro encantamento e brilho no olhar ainda que tudo esteja colapsando ao nosso redor.

“Nosso caso de amor com o romance é como qualquer relacionamento disfuncional: quanto piores as coisas estão, mais acreditamos no poder do amor romântico para consertá-las” (Essig, 2019)

O romance nos ensina a focar nossas energias em nossa vida amorosa e no nosso próprio bem-estar. Ele vende a falsa ideia de que podemos privatizar o futuro sendo que na verdade enfrentamos problemas estruturais e globais para os quais só poderemos encontrar saídas coletivamente (Essig, 2019).

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Ultimamente, eu ando pensando muito nas dores da não-monogamia. Tem muita gente que reclama que pessoas não-mono alinhadas com uma perspectiva política são cheias de regras, criando um ambiente pouco acolhedor. Eu discordo sobre a parte das regras, mas acredito que tem um tanto de coisas que uma perspectiva política faz a gente questionar, o que pode ser sim bem desconfortável ou até profundamente dolorido.

Nós problematizamos, por exemplo, o direito de legislar sobre a autonomia do outro, hierarquias, isolamento em casais e núcleos familiares. Porém, não o fazemos com a intenção de ser “polícia da NM” e dizer o que é ou não é não-monogamia “de verdade”. A grande questão é que isso tudo é violência, abuso e opressão, práticas inviáveis se vamos pensar o bem viver coletivo. Portanto, é importante que seja debatido.

Eu sempre tive muitas crises com a não-monogamia. Frequentemente, me sinto cansada e decepcionada com as minhas contradições, com as frustrações, com os desencontros. Às vezes, as incertezas me apavoram. E, às vezes, quando percebo, já estou centralizando uma relação, hierarquizando, me afastando de mim mesma e de pessoas que são importantes.

Porém, nada disso justifica qualquer tentativa de reduzir o debate político e coletivo sobre a não-monogamia. Na prática, a gente vai fazendo o possível. Se perdendo e se achando o tempo todo. Se relacionar é bonito, essencial e complicado. O próprio fato da monogamia ser a norma impõe uma série de limites para outras vivências. Inclusive, Vassalo em uma entrevista para o El Diario coloca que “um sistema é definido para que não haja outras alternativas, para que tudo necessariamente leve você até lá, e isso já é uma opressão em si”.

Por isso, refletir e questionar o modo e o sistema em que vivemos é tarefa fundamental para todes. Despolitizar debates não está, nunca esteve e jamais estará a serviço do cuidado, do acolhimento ou da saúde mental.

“O indivíduo só pode ser realmente compreendido em sua singularidade quando inserido na totalidade social e histórica que o determina e dá sentido à sua singularidade.” (Bock, 1997)

Para transformar a realidade, é preciso mudar como nos relacionamos. E é claro que esse caminho é complexo e contraditório. No entanto, as dificuldades não deveriam ser pretexto para que a gente fique passando vergonha na internet defendendo a norma ou resmungando que nem tudo é político (fazer essa jogada a essa altura do campeonato é bem feio, inclusive). Elas justamente deveriam servir de inspiração para nos opormos a esse sistema.

Para a maior parte de nós, é uma tarefa árdua desaprender a oferecer e aceitar um amor possessivo. Não te gera indignação ter passado a vida inteira aprendendo a amar violentamente? A imposição desse roteiro afetivo massificado deveria nos inspirar a ser cada dia mais críticos e criativos. Inclusive, mesmo as contradições podem nos lembrar da importância e do tamanho da luta.

Eu fico feliz que as fantasias românticas encontrem cada dia menos espaço na minha vida. Hoje, por exemplo, a comédia romântica da vez é só um barulho ao fundo enquanto eu escrevo esse texto para mim mesma e para pessoas que eu nem conheço.

A construção de uma consciência política crítica me ensinou a olhar para os lados, para as pessoas ao meu redor. Assim, eu vou trocando, aprendendo, cuidando e sendo cuidada por elas. Ainda que com todas as dores, com todas as incoerências e com todos os tropeços do caminho, isso deixou o mundo real mais habitável, o que não é um feito pequeno para quem vivia 90% do tempo perdida na imaginação.

Nós podemos passar anos debatendo o fato de que a não-monogamia pode ser dolorida, confusa e muito difícil de dar conta. Tudo isso é verdade. Porém, será que seguir nos apegando ao romance é a melhor aposta para lidarmos com as inseguranças?

Claro que normalmente não narramos as coisas dessa forma. Dizemos que estamos respeitando nossos limites em nome de nossa saúde mental. E, de novo, em nome da minha saúde mental, eu assisto filme de natal em julho. Quem sou eu para julgar?

Buscamos o amor romântico como se ele fosse capaz de nos curar. Porém, ainda que a fantasia possa trazer alívio e esperança a curto prazo, o seu preço é alto. Na realidade, estabelecemos relações baseadas em hierarquia, controle e posse. Isso acumula machucados e violências pelo percurso. No entanto, nos iludimos com a ideia de que estamos vivendo uma grande história de amor e esses, afinal, são os ingredientes de um bom romance.

Por isso, se te parecer possível, minha proposta é que a gente desate os nós do corpo produzidos pela opressão… que a gente se alongue, se movimente de maneira inesperada, aposte no desconhecido e no coletivo. É claro que pode ser bem desconfortável (para dizer o mínimo), mas eu espero que esse processo transforme a realidade em um lugar mais gostoso de habitar para você também.

Referências

BOCK, Ana Mercês Bahia. Formação do psicólogo: um debate a partir do significado do fenômeno psicológico. Psicologia: ciência e profissão, v. 17, p. 37–42, 1997.

ESSIG, Laurie. Love, Inc.: Dating apps, the big white wedding, and chasing the happily neverafter. University of California Press, 2019.

VASALLO, Brigitte. A monogamia não é uma escolha, mas um sistema opressor. Entrevista concedida a Ana Requena Aguilar. El Diario, 2019.

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Mari Matos
Afetos Insurgentes

Poeta, escritora e psicóloga. Fala sobre luta anticolonial, violência em relações íntimas e dissidências.