Erotismo da amizade: uma análise da aliança lógica, ética e política do vínculo

Anita B.
Afetos Insurgentes
Published in
4 min readNov 8, 2021

Reflexão de Sofía Guggiari. A autora examina, como construção cultural, a maneira em que a rede de relações forma uma trama complexa que nos constitui como pessoas, famílias e sociedades.

Por decisão da autora, o artigo contém linguagem inclusiva.

Ilustração: Nora Patrich

Você pode pensar em um erotismo da amizade como uma bússola política / afetiva? O que imaginamos quando falamos de amizade? Qual é a singularidade desse vínculo? Qual é a sua lógica, ética e erotismo? Sinal de que algo está vivo. Aliança amorosa e política. Aposta em uma ética de igualdade na diferença. Convoca a ideia e a experiência do comum. O comunal. Laço rizomático e expansivo.

A amizade é um vínculo que por si só não se consolida em imagem ou função; mas sim um erotismo, uma lógica e uma ética. Podemos pensar nisso como um laço de subversão? Um tipo de vínculo que produz outros?

Amizade e família

Poderíamos pensar que a amizade é aquele tipo de afetividade de fronteira, que, ao contrário de outros vínculos, principalmente o do casamento e do casal na heteronormatividade, não cumpre uma função social de reprodução.

Ninguém continua uma amizade por mandato para a produção de um modo de existência, de uma vida hegemônica. Aquela vida boa que deve ser vivida para sermos reconhecides e amades por outres, para sermos felizes. E a felicidade também tem sua história política.

A filósofa Sara Ahmed em A promessa de felicidade, fala que a expectativa de felicidade implica a repetição de certos roteiros pré-existentes e isso fornece uma imagem de um futuro possível e um presente onde o identificamos; como por exemplo na família heteropatriarcal.

A amizade, no entanto, tem a mesma função de um objeto simbólico? Promove uma promessa de estabilidade, felicidade ou boa vida, como o objeto “família heteronormativa” promove?

É verdade que essa imagem circula, por exemplo, em anúncios ou em redes sociais, onde a amizade é oferecida como um objeto promissor de valor social. Mas, em todo caso, essa imagem promissora só se completa enquanto houver seu outro oposto que a sustenta, a família heteronormativa à qual sempre retornamos.

Assim, há uma divisão acentuada entre amizade / parceire que reflete a maneira como as forças do amor erótico são distribuídas nas sociedades heteronormativas ocidentais: privada ou doméstica versus pública, pessoal versus social. E aí se ordena uma espécie de opostos: a dessexualização dos laços públicos que não cumprirão o papel de reprodução, e o enquadramento na esfera doméstica do vínculo íntimo ou privado, destinado à conformação e reprodução da família, que então é suposto que seja erotizado.

Amizade e poder

Laços heréticos, cumplicidades perigosas, circulação de informações e afetividades anômalas. A amizade, para o poder, sempre significou um certo perigo.

No período histórico entre os séculos XV e XVII, período em que a queima de bruxas se acentuou, como aponta Silvia Federici, os laços fora do casamento eram considerados sinais de conspiração satânica, principalmente para a feminilidade.

A autora cita um fenômeno muito particular em que a palavra “gossip” (fofoca), que refletia o forte vínculo entre as mulheres, adquiriu uma conotação negativa, relacionada ao ridículo e ao desprezo. As mulheres não deveriam se encontrar em guildas ou tavernas públicas para beber, conversar ou desfrutar da companhia umas das outras. As mulheres foram proibidas de se reunirem para sussurrar e conversar, e os maridos receberam ordens de não deixarem suas esposas saírem de casa. Durante os julgamentos, eles foram encorajados (sob pena de tortura) a expor suas amigas, irmãs, mães e filhas.

Na mesma linha, pensemos também como os laços político-afetivos se configuraram na última ditadura de nosso país [Argentina]. Proibidos encontros e reuniões, qualquer gesto de aliança política / afetiva era uma subversão. E as agendas, com nomes de amigues e amantes das pessoas detidas ilegalmente, funcionaram como mapas para as próximas detenções e desaparecimentos.

Tempo e produtividade

A temporalidade do vínculo que não produz o que se supõe ser produzido no capitalismo é uma temporalidade singular. Suspensão, interrupção daquele tempo que o presente organiza com um propósito.

Outras produções vitais aparecem: o coven das bruxas e a festa. Territórios onde ocupações, mandatos e gênero são confusos. Alguns códigos comuns ficam borrados. A meia vida que deve então continuar a ser produzida como promessa e destino único.

Amizade, política e erotismo

A amizade é um vínculo político, como qualquer vínculo, claro. Mas sua política é justamente a de subversão das formas hegemônicas de amor. Seu erotismo é o da dobra, do momento, do toque e da carícia. Porque está aí naquele borrão imperceptível — e, às vezes, nem tanto — entre o pessoal, o político, o doméstico e o público.

É a possibilidade de subjetivação. Uma possibilidade diferente da conhecida, que funciona não de forma hierárquica, mas expansiva e radial. Satélite da conformação da família moderna. Às vezes, ela não se encaixa nessa configuração. Às vezes ela se encaixa tão bem que é chamada de “a família escolhida”.

Não há pretensão. Nem há ideal. Não alemeja pureza. A amizade acompanha, apesar da solidão e das singularidades. A amizade mostra e produz uma forma de ternura como força produtora de vida.

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