“Eu escolhi ser Monogâmico”

André Luiz
Afetos Insurgentes
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12 min readJul 6, 2021

Todos que acreditam que a monogamia é uma escolha: esse texto é para vocês.

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Uma estrutura de controle social

“Para assegurar a fidelidade da mulher e, por conseguinte, a paternidade dos filhos, a mulher é entregue incondicionalmente ao poder do homem. Mesmo que ele a mate, não faz mais do que exercer um direito seu” (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado ~ Engels, Friedrich)

A monogamia já existe há milhares de anos. Na citação acima, Engels disserta sobre a transição da sociedade grega para o modelo de família patriarcal, algo que ocorreu muito antes do surgimento de Cristo. À medida que as cidades-estado se desenvolviam e o volume de escravos aumentava, os gregos deixaram o modo de produção comunitária para trás, adotando o modelo de produção escravista em seu lugar.

É a partir desse ponto que a propriedade privada (caracterizada pela posse da terra e dos escravos) torna-se peça fundamental na constituição da sociedade grega. Surge então a figura do estado fortemente militarizado (para garantir não apenas a defesa das fronteiras, como também a aquisição de novos escravos e obediência dos mesmos), a hereditariedade dessa propriedade torna-se uma realidade e a mulher é colocada em regime de servidão, para que assim garanta herdeiros consanguíneos e exerça seu papel de dona do lar, afastada da vida pública e cuidando dos afazeres domésticos (especialmente na gestão dos escravos e do cultivo da terra).

E essa mesma configuração perpetuou-se ao longo da história em diferentes civilizações europeias*[1].

Sobre isso, Marx afirma que “A família moderna contém em germe não apenas a escravidão (servitus) como também a servidão, pois, desde o começo, está relacionada aos serviços da agricultura. Ela contém em si, em miniatura, todos os antagonismos que se desenvolverão mais tarde na sociedade e em seu Estado”.

Não à toa, com o surgimento da burguesia e do capitalismo acumulativo, novos elementos como o amor romântico, o liberalismo ultra competitivo (responsável por entrincheirar ainda mais os núcleos familiares), a moralidade cristã (heteronormativa, patriarcal…) e o colonialismo (seguido pelo imperialismo) passaram a fazer parte do projeto de implantação da família monogâmica (e eurocêntrica) ao redor do globo.

Somos todos filhos desse projeto universal de doutrinação dos valores burgueses. Para que o capitalismo pudesse se expandir de maneira eficiente, junto com a exploração dos territórios colonizados, além da lógica econômica liberal, a burguesia impôs seu domínio moral e cultural até mesmo dentro da nossa subjetividade afetiva.

Sendo assim, não é exagero afirmar que a nossa forma de amar é atravessada pelo sistema capitalista, e que nem mesmo nossos sentimentos mais genuínos, nossas dores e alegrias relacionais mais profundas, escapam essa domesticação histórica.

Liberdade ou Adequação: uma fábula sobre a escolha monogâmica

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“Ah André, eu até entendo o que você tá dizendo. Mas não é assim para todo mundo. Eu mesme sou feliz com minhe namorade. Eu sei sobre não monogamia, pesquisei sobre, tenho amigos que são, e mesmo assim sou monogâmique. Eu escolhi ser assim...”

Ok, permita-me então explorar um pouco esse raciocínio. Vamos tentar entender a correlação (ou a oposição) entre uma estrutura normativa (a monogamia) e o poder de escolha do indivíduo cuja vida social acontece dentro dessa mesma estrutura.

Vamos começar deixando claro que monogamia não se trata de quantidade de parceires. Indo mais a fundo, se quantidade fosse a questão, eu poderia afirmar que todos (sem exceção) somos “monos” em certos momentos da nossa vida. Eu mesmo, por exemplo, de tempos em tempos me vejo me relacionando sexual e afetivamente com apenas uma pessoa. E isso por diversos fatores, desde questões emocionais, até questões de tempo, logística, praticidade etc…e a duração de tais momentos variam de pessoa para pessoa.

Mas eu não passo a ser monogâmico mesmo quando estou “saindo” com uma única crush. Eu continuo mantendo minha autonomia, e mais importante ainda, continuo respeitando a autonomia da outra pessoa. E essa é a chave para entendermos toda essa questão da escolha.

Proponho então a criação de uma alegoria a partir da história “fictícia” de João e Maria. Vamos utilizar esses personagens para transformarmos essa conversa conceitual em algo tangível:

Casados há 8 anos, dois filhos, vida estável…a típica “família Doriana”. Um belo dia, Maria puxa João para conversar e lhe confessa que gostaria de “abrir o relacionamento”. Que o ama muito e quer passar a vida inteira com ele, contudo percebeu nesses 8 anos que existem outras pessoas interessantes no mundo e que não gostaria de passar a vida inteira fechada para outras experiências.

João não aceita bem. Passam-lhe várias possibilidades na cabeça: talvez o amor tenha acabado e ela não tenha coragem de falar; talvez ela não esteja feliz sexualmente; talvez ela já o esteja traindo e só queira se sentir melhor; ou pior, talvez já esteja apaixonada por outra pessoa. Uma enorme discussão se sucede, a maior que já tiveram. No fim, João concorda (a contragosto) em pelo menos tentar abrir a cabeça e estudar as possibilidades com Maria.

Passam-se meses sem nenhum movimento em direção à abertura da relação. João inventa todas as desculpas possíveis para não entrar no assunto. Quando faltam-lhe motivos “plausíveis”, fica agressivo ou usa de chantagem emocional, com frases como “você não se importa com o peso que isso tudo vai ter nos nossos filhos?!” e “a vida não faz sentido se eu tiver que te ver com outro”.

Em pouco tempo, a relação definha. Maria pede o divórcio. João se recusa a assinar os papéis. Começa a batalha judicial.

Mesmo sendo uma mulher estudada, com futuro na carreira e uma vida financeira organizada, Maria não encontra apoio de seus pais. Apesar de lhe receberem em casa com as crianças, acreditam que ela está errada: “O João é bom para você minha filha, você tá jogando sua vida no lixo, é loucura!”.

Ao desabafar com as amigas sobre a situação, escuta as seguintes respostas:

  • “Ai, amiga, sendo sincera, se era só vontade de dar uns beijos você deveria ter feito escondido. Homem é lerdo, dificilmente percebem. E aí você soltava o que tava te matando pra fora e não precisava passar por tudo isso";
  • “Eu acho que você fez bem, fazia tempo que você e o João já não estavam no clima. Você não precisa abrir relação nenhuma, isso aconteceu porque o João não era seu verdadeiro amor, o próximo que você encontrar vai ser para sempre, confia em mim";
  • “Maria, na boa, você vacilou. Você estava numa relação tranquila, bem cuidada. Se eu fosse o João também teria feito o mesmo, amor não se divide".

A vida fica cara, Maria perde seu plano de saúde (atrelado a João), o inventário dos bens é um poço de dinheiro, a papelada, os advogados… João sabe que o peso financeiro não está sendo fácil para Maria e usa isso como última cartada “Volta pra mim e vamos acabar com essa tolice, tínhamos uma vida confortável, isso não faz sentido". Ela se recusa

A partir daí, João dedica-se a machucá-la. No processo de guarda das crianças a rotula como uma “mulher promíscua", que trocou uma boa vida e a felicidade da família por sonhos de “libertinagem” (o que lhe dá vantagens no processo diante do juiz conservador que foi apontado para o caso). Entre os amigos em comum, espalha a história de uma possível traição. Se vê no direito de stalkeá-la, espiona sua vida pessoal pela Internet, por intermédio de conhecidos e pelos pais dela(que estão do lado dele). Faz de tudo para tornar o processo de separação moroso e dolorido.

Após uma longa batalha, enfim, Maria está liberta. Porém, o peso de tantas violências a machucou profundamente. Ela está cansada de lutar sozinha, ninguém no seu círculo de confiança a apoiou. Ela só queria ter autonomia sobre o próprio corpo, suas escolhas. Mas parece que o mundo não achava isso certo.

Com o tempo, conhece Marcos. Um cara razoável, que a trata bem e que é bom com as crianças. Mas que não quer nem saber de “ vê-la com outras pessoas" (apesar de um extenso histórico de traições conjugais). Ninguém vai encostar na sua mulher, ele diz. Ela não concorda com isso, mas se vê isolada mais uma vez, afinal todos dizem que ele é perfeito para ela. Acuada, machucada e sem apoio, mesmo não concordando com os termos, mas com medo de morrer sozinha, casa-se novamente.

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Histórias semelhantes a essa são encenadas todos os dias por diversas pessoas em todo o Brasil (e no mundo). Mudam as idades, os gêneros e sexualidades, as localidades, etnias e classes sociais. No entanto, são as mesmas violências em diferentes roupagens. E também é importante dizer que, dependendo da situação, podemos ter desfechos mais amenos ou infinitamente mais absurdos, afinal, sabemos que muitas Marias não tem condições materiais de encarar uma separação, ou pior, não sobrevivem a tal ruptura.

O que precisamos entender é que: quando algo é uma ESCOLHA, então significa que você também é livre para mudar de ideia (e escolher outro caminho). Já quando algo é uma NORMA, isso significa que ao tentar fazer diferente você acaba dando de cara com as mais diversas formas de punições, coerções e imposições (sejam essas econômicas, sociais, culturais, psicológicas e/ou legais).

Geni Núñez elabora sobre esse paradoxo de maneira didática:

“Escolhas a gente só pode fazer sobre nosso próprio corpo. Apenas eu mesma posso escolher por mim mesma coisas que dizem respeito à minha afetividade/sexualidade. Autonomia sobre não é algo que se terceiriza.

Ademais, se é mesmo escolhido e espontâneo, então qual a necessidade de haver um contrato punitivo e restritivo?”

O que fica evidente na história de João e Maria, é que a Monogamia é uma estrutura social que vem de cima para baixo e que se pauta no cerceamento da autonomia alheia. Ou seja, ninguém é monogâmico sozinho, para que eu seja mono, eu preciso te obrigar a ser também (e vice versa). A única forma desse sistema opressor funcionar é nos colocando como vigias uns dos outros, violentando uns aos outros, exercendo poder e posse sob nossos semelhantes. E é nesse momento que todo o mito da escolha cai por terra.

Entre vítimas e algozes, estamos todos presos aqui, nessa sociedade construída em cima da propriedade privada (e, também, de pessoas). Uma sociedade cuja maneira de sentir foi colonizada e que acredita que o amor na sua forma romântica, mesmo cheio de egoísmo e sofrimento, é a maneira “correta” de amar.

E sobre aqueles que estão devidamente adaptados ao sistema monogâmico, gosto de fazer uma comparação com outro sistema de opressão (da mesma raiz): O Capitalismo.

Dependendo da sua sorte, dá para ter uma vida minimamente decente dentro do capitalismo? Dá. Isso significa então que é bom para todo mundo? Não. Eu posso optar por viver fora desse sistema? Não, ele é global e atravessa todos os povos.

E o mesmo pode se dizer da monogamia. Sim, é possível que inúmeras pessoas tenham momentos felizes dentro dela, mas isso está longe de significar que sua estrutura seja boa para a sociedade como um todo (pelo contrário). E sobre a possibilidade de viver “fora desse sistema”, mesmo dentro do movimento Não-Mono somos atravessados por ele. Cada um de nós sente de maneiras diferentes o peso dessa estrutura, alguns mais, outros menos, todavia todos o sentimos, sem exceção.

Simone de Beauvoir, filósofa e escritora: "As oportunidades do indivíduo não as definiremos em termos de felicidade, mas em termos de liberdade"

E é por isso que ninguém escolhe ser mono*[2]. É um paradoxo, nós já somos formatados para a monogamia desde nascença, crescemos inseridos e cooptados, aprendemos a amar por essa ótica. Portanto, se você diz que escolhe isso, na realidade a única coisa que você está afirmando é que quer permanecer alienado, conformado e/ou em posse de certos privilégios*[3].

Adaptando-se aos novos tempos: o neoliberalismo ataca novamente

A prática do Swing é uma das alternativas liberais a monogamia tradicional

Uma das formas que a ideologia neoliberal encontra para perpetuar seu domínio absoluto em nossa sociedade é extirpando o caráter político e revolucionário de pautas progressistas. Reproduzindo um dito popular, é como se o sistema capitalista entregasse os anéis para não perder os dedos. E muitas pessoas confundem isso com progresso. Lento, sofrido e realizado de mau grado, contudo, ainda assim, progresso.

Mas isso é uma interpretação errônea. O capitalismo não pode ceder às demandas revolucionárias justamente porque fazer isso seria o fim desse sistema. Ao mesmo tempo, uma completa rigidez, uma recusa a negociar com essas demandas só reforçaria a posição de seus opositores. Não, existe um caminho muito mais inteligente encontrado pela burguesia que passa pela apropriação e ressignificação.

Em suma, uma das formas desenvolvidas pelo neoliberalismo de preservar o que realmente importa para o capital dentro da estrutura mono (a família nuclear competitiva, a hereditariedade da propriedade privada, a concentração de renda, a exploração doméstica e etc…) foi oferecendo alternativas relacionais para aqueles que não estão completamente satisfeitos com a monogamia tradicional, mas que também não querem ir até o fim com a quebra das hierarquias.

Relações abertas, casamentos liberais, trisais (e outros tipos de poliamor) objetificantes, são todos exemplos dessa apropriação*[4]. E o avanço da popularização dessas formas relacionais reforça o discurso da “liberdade individual”:

  • “O que importa é ser feliz, indiferente do tipo de relação”;
  • “Cada um sabe o que é melhor para si, pare de cagar regra na vida dos outros”;
  • “Se existe um acordo entre duas ou mais pessoas, ele tem que ser respeitado sempre”;
  • “Infelizmente, pessoas NM também traem tanto quanto pessoas Mono”;
  • “O poliamor é coisa séria, não é bagunça. Prezamos pelo amor verdadeiro”;
  • “Nós, monogâmicos e não-monogâmicos, não somos tão diferentes assim”.

Esses são exemplos de falas que surgem constantemente em debates sobre NM no geral. Todas ditas por pessoas que se consideram não-monogâmicas. Todas isentas de pensamento político. Todas com o intuito de individualizar uma questão coletiva. Todas equivocadas:

  • O “tipo de relação” que escolhemos ter dá o tom do seu desenvolvimento. Dizer que o importante é ser feliz independente dessa escolha é se isentar da responsabilidade por aquilo que acontecerá no futuro;
  • “Cagar regra” é a acusação atual favorita daqueles que não estão dispostos a usar a NM como plataforma de desconstrução, a se desfazer dos seus egoísmos e privilégios;
  • Acordos limitantes são uma das bases da monogamia. Aquilo que foi acordado hoje, amanha será usado para obrigar alguém a fazer algo que não quer (se é que já não está sendo usado agora), e nós não temos esse direito;
  • Infidelidade conjugal é um problema criado pela própria monogamia. Relações livres (realmente livres) não suportam esse conceito;
  • A ideia de “amor verdadeiro” é totalmente moralista, romantizada e castradora. Não queremos isso aqui;
  • A não-monogamia é anti-hegemônica e vai contra a monogamia, nós somos diferentes sim.

A não-monogamia é uma escolha coletiva, um olhar para a comunidade que rejeita a ultra-competitividade capitalista. Prezamos pela autonomia de todes, fazemos parte da luta de grupos historicamente marginalizados, queremos criar redes de afetos, evoluir para além da família monogâmica, debater coabitação, coparentalidade, o fim do casamento e muitos outros assuntos que são (ou ainda serão) abordados aqui na Afetos Insurgentes (e por nossos parceiros de luta).

Não dá para ficarmos fingindo que somos todes “floquinhos de neve” especiais, e que as nossas escolhas, por mais pessoais que sejam, não tenham peso coletivo nenhum. É importante entendermos porque estamos aqui e quais são as dimensões históricas, sociais e materiais que contribuíram para que chegássemos nesse ponto. Só assim destruiremos o mito do amor romântico e da monogamia como escolha pessoal, e partiremos para uma sociedade que faça do amor um ato comunitário.

*[1]: Sabemos que o mundo não se resume a perspectiva europeia. Outras civilizações em outros continentes se desenvolveram de maneiras substancialmente diferentes no que tange a constituição familiar, casamento, propriedade e afins. Todavia, o modelo europeu de organização social foi implantado (a força) pelas colonizações mundo afora, tornando-se a norma, o que deve ser considerado para efeitos de analise geral da construção da estrutura mono.

*[2]: Aqui estamos presumindo que a pessoa tenha acesso a informação e conhecimento da existência de relações NM. Isso não se aplica à maior parte da população brasileira/mundial, que nunca nem ouviu falar no assunto.

*[3]: O indivíduo que se encontra dentro da norma, na grande maioria das vezes, não consegue enxergar a luta das outras pessoas que estão fora dela. Além disso, quando se tem privilégios é muito difícil se desfazer deles, especialmente quando esses são estruturais. Pessoas brancas, cis, heterossexuais, magras e não periféricas, por exemplo, estão no centro da narrativa do amor romântico. Mesmo com todas as suas problemáticas, ter uma oferta garantida de “afeto” ajuda a manter tais indivíduos operando dentro da lógica do sistema mono.

*[4]: Nós sabemos que, em certas situações, tais modelos relacionais acabam servindo como porta de entrada de muitas pessoas para a não-monogamia em sua proposta política. Eu mesmo já estive em um relacionamento aberto, por exemplo. Porém, essa evolução está longe de ser a regra, e o que se vê cada vez mais é a proliferação de relações cuja a única “quebra” com a monogamia é no número de parceiros e na exploração sexual; relações que continuam perpetuando o que há de pior na estrutura mono.

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André Luiz
Afetos Insurgentes

Comunista, Comunicador Social, Especialista em Mídia, Pós-Graduado e Não-Monogâmico.