Meu Relacionamento Aberto é Monogâmico ou Não-monogâmico?

André Luiz
Afetos Insurgentes
Published in
10 min readOct 19, 2021

Entendendo as nuances e problemáticas do modelo relacional mais polêmico da atualidade

*OBS: RA = Relacionamento aberto / Relação aberta / Relações Abertas

O debate sobre a legitimidade das Relações Abertas é um assunto que nunca morre, mesmo porque tem sempre gente nova chegando e muitos começam sua estrada na não-monogamia a partir desse modelo.

Dentro da NM política, enxergamos esse tipo de relação com um olhar crítico e cauteloso. Crítico, porque as bases da RA vão no caminho oposto à criação de uma NM emancipatória e coletiva. Cauteloso, porque, apesar das problemáticas, entendemos que muitas das pessoas que vivem uma RA estão efetivamente buscando a desconstrução das suas hierarquias e, com tempo e ajuda da comunidade, possuem todo o potencial necessário para se livrarem das amarras monogâmicas.

A partir desse pensamento, vamos então analisar o porque de tal crítica e quais os problemas mais comuns identificados nesse modelo relacional.

Entre a teoria e a prática: acolhendo o indivíduo X criticando as estruturas

Inicialmente, acredito ser necessário fazer uma distinção. Muitas vezes, nos grupos e páginas que frequento sobre não-monogamia (que são muitas, afinal eu pesquiso sobre o assunto e participo ativamente de discussões todos os dias), percebo que as pessoas têm bastante dificuldade em pensar politicamente e entenderem que existem duas dimensões na NM: a teoria (que aborda a crítica ao sistema monogâmico) e a prática (que é algo pessoal e vai de acordo com aquilo que nós conseguimos fazer num determinado momento).

Na esfera pessoal (da prática), cada um faz o que quiser da sua vida e ponto final. Se você quer fazer suruba todos os dias (fora da pandemia, por favor), se você é assexual, se você tem um namorade e só abre a relação para transar sem envolvimento afetivo, ou se você é totalmente desconstruíde e vive a anarquia relacional no seu máximo sem nenhuma hierarquia enquanto equilibra afetos e amigos sem ter problemas, show, parabéns para todes. Na real, havendo consentimento de todo mundo, diálogo e respeito entre as partes, eu que não vou me meter nisso. Cada um sabe de si e tem seu próprio caminho.

Isso porque vivemos numa sociedade desigual, nosso acesso a informação, o ambiente em que estamos inseridos, as pessoas que estão a nossa volta, nossas dificuldades materiais, afetivas, emocionais e psicológicas, aquilo que nos ameaça, que nos machuca, e também que nos nutre e impulsiona, enfim, toda o contexto de nossas vidas, apesar de acontecer no âmbito coletivo, nos atinge de maneiras diferentes.

E isso faz com que estejamos em etapas distintas de desenvolvimento. Coisas que vão doer em mim não vão doer em você (e vice-versa). Esse desnivelamento é normal e temos que aprender a trabalhar com isso enquanto comunidade. Todas as militâncias e lugares de aprendizado em geral passam por isso. Fazendo uma analogia besta: tem gente chegando agora começando do zero, e tem gente que já é faixa amarela, vermelha, azul, marrom, preta e assim por diante. Tem gente que treina todo dia, tem gente que trabalha e só pode aos sábados, outros tem criança e só tem tempo para treinar em casa mesmo. Uns precisam usar o equipamento da academia porque falta verba, e tem o pessoal que comprou tudo novo e não divide, que também diferem das pessoas que compraram mas não se importam em dividir, por exemplo.

Em suma, quando falamos da prática, cada um vai fazer o que pode, o que está ao seu alcance num determinado período de tempo.

Agora, quando discutimos teoria, a questão é um tanto quanto mais complexa.

Da esfera pessoal (prática) para a social (Teoria NM politica)

Ao falarmos de NM política, não estamos falando de um estilo de vida. A nossa posição é anti-hegêmonica e abomina todo o individualismo liberal propagado pelas instituições capitalistas. Nossa missão é denunciar as mazelas da estrutura monogâmica e lutar por um mundo livre desse sistema.

Assim como muitos de vocês, eu já estive num relacionamento aberto, e, quando comecei a frequentar grupos com foco na NM política, logo de cara me deparei com várias críticas estruturais sobre a maneira que eu me relacionava. Apesar do choque, eram críticas bem escritas e embasadas. Então, em vez de espernear, eu resolvi ler…e isso foi ótimo! Eu pude perceber que ninguém ali estava pessoalmente me xingando, xingando meu relacionamento ou dizendo que eu era uma má pessoa. Só estavam relatando o óbvio, que a RA nada mais é que uma extensão da monogamia, com seus acordos limitantes, medo da autonomia alheia, necessidade de controle, perpetuação de hierarquias, fortalecimento da entidade casal e etc...

“Ah mas o meu relacionamento é aberto e funciona muito bem, somos muito fe…”

Que bom. Sério, que bom mesmo. Mas assim, como comunidade, a gente tá realmente “se lixando pro seu relacionamento”.

Não me leve a mal, como eu disse acima, a vida é sua e você faz da sua prática Não-Mono aquilo que você conseguir dentro da sua realidade atual.

Mas, a partir do momento que nos reunimos em espaços de discussão, é nosso dever fomentarmos a criação e fortalecimento de uma teoria NM. É justamente por sermos um grupo com viés político/revolucionário que nós buscamos delimitar parâmetros e dar o mínimo de “rigor cientifico” para aquilo que chamamos de não-monogamia*[1]. E isso exige também denunciar aquilo que vai na contramão desse pensamento coletivo.

E eu entendo que ninguém nasce desconstruíde e que as críticas podem parecer muito severas. Mas nós queremos que as pessoas que se disponham a trilhar o caminho da NM política façam um esforço de se questionarem, saindo da sua zona de conforto. Que elas tentem estudar um pouquinho, que elas leiam os materiais e participem das discussões disponíveis nos grupos com atenção, que elas percebam (assim como eu tive que fazer e ainda faço) que todo mundo erra e que é necessário ter atenção aos próprios discursos e comportamentos.

O pulo do gato é aliar acolhimento com instrução. Entender que somos indivíduos em momentos diferentes, mas sem validar atitudes monogâmicas e sempre incentivando a desconstrução, combinando no mesmo discurso firmeza e ternura.

Isso é fácil? Não. Mas está longe de ser impossível. E quanto mais a teoria se desenvolve e se espalha, mais fácil fica acolher quem está chegando sem vacilar na mensagem.

Mas afinal, o que há de errado dentro das Relações Abertas?

Agora que entendemos por que a crítica existe e que é importante não levá-la para o pessoal, vamos então à crítica em si.

Sabemos que a ideologia neoliberal a tudo atravessa. E isso não seria diferente dentro da não-monogamia, cuja popularização tem dado abertura para uma disputa de conceitos (e práticas) entre aqueles que acreditam que o movimento não-mono é uma força política antissistêmica, e aqueles que acham que é apenas uma escolha pessoal, onde cada um opta por um modelo relacional de sua preferência, faz dele o que quiser e tá tudo bem.

Sobre tal disputa, o projeto NM em Foco resume com perfeição:

O poder se desdobra e a estrutura monogâmica se adapta, tal qual se adaptou ao incluir o amor romântico nos seus constituintes. Para um projeto emancipatório é imprescindível que, assim como Geni Núñez nos traz, nossa autonomia seja direito inalienável. Para desterritorializar e descolonizar os afetos, precisamos romper com toda essa lógica colonial de dominação, controle e posse. É por isso que nós, no NM em Foco, disputamos esses conceitos, como as noções de monogamia, poligamia e relacionamentos abertos. Para que possamos apresentar novas possibilidades para o imaginário popular e também apresentar uma saída a lógica monogâmica através de um pensamento revolucionário, que é a não-monogamia política. (Relacionamento aberto, não-monogamia e disputa de conceitos ~ NM em Foco)

E é a partir dessa dicotomia que podemos extrair as contradições desse modelo:

  • Fortalecimento da entidade casal: a mesma base da estrutura monogâmica, também é a mesma base das relações abertas. O casal (que é o embrião da família nuclear) é a entidade máxima desse tipo de relação e deve ser protegido a qualquer custo. Outras relações orbitam à sua volta, e muitas vezes são facilmente descartadas a qualquer “sinal de perigo”. Tudo é válido para que o casal não se desmanche, com destaque para os comportamentos a seguir;
  • Desrespeito à autonomia alheia: Se somos um casal, continuamos operando pela lógica monogâmica na qual devemos dividir tudo com nosse parceire, levá-le em conta em todas as decisões, sempre juntos, como um só organismo. Mesmo que isso signifique a morte da minha privacidade, da liberdade do meu próprio corpo e do meu poder de escolha sobre minha vida;
  • Acordos limitantes: São a manifestação dessa falta de autonomia e uma das bases da estrutura mono. De acordo com a lógica liberal, “o combinado não sai caro”. Todas as nossas relações são vistas por uma ótica mercantil e contratual, inclusive as afetivas. Essa lógica concede poder de polícia para os membros do casal, que são incentivados a criarem regras arbitrárias de controle e alienação a qualquer desconforto sentido. Esses “combinados” impedem as pessoas de crescerem e as relações de evoluírem, aprisionando o livre arbítrio e coagindo os participantes a nunca desviarem daquilo que “foi assinado”, com a garantia de penalidades aos transgressores;
  • Hierarquização: Todas essas problemáticas citadas acima levam ao movimento de hierarquização, que é plenamente incentivada na nossa sociedade de classes, e a qual a NM política busca, incessantemente, desmontar. Esse é um movimento normal dentro da monogamia, inclusive é essa hierarquização (com a entidade casal no topo da pirâmide) que nos afasta de nosses amigues, familiares, colegas de trabalho, hobbies e assim por diante. É um movimento de isolamento, que desmancha redes de apoio e nos fecha dentro da bolha conjugal;
  • Amor romântico: É o que chancela toda essa temática. Sob sua tutela fomos levades a acreditar que temos o direito de possuir outras pessoas, de impor nossas vontades e de pintar todo o tipo de comportamento abusivo com o verniz da paixão. E é na promessa do amor romântico, perene e inabalável, que moram as relações monogâmicas e abertas. A diferença é que nas relações abertas, existe a abertura para uma certa “liberdade sexual”, mas tudo com várias regras e combinações impostas para que aquele amor puro do casal não possa ser perturbado por interferências externas.

A questão é: ao observarmos esses pontos, não queremos atacar ninguém, mas deixar claro que não concordamos com isso. Na construção coletiva de uma não-monogamia que acolha a todes, não cabem comportamentos opressivos remanescentes da estrutura mono que queremos derrubar.

E como escrevemos acima, sabemos que cada um está no seu momento, mas é importante ouvir a crítica e aprender com ela.

Por fim, vale aqui também um esclarecimento essencial:

Entre as pessoas que defendem que a NM é um movimento político, existe um certo pé atrás com pessoas em relacionamentos abertos. Isso acontece porque muites de nós já passamos pela situação extremamente desagradável (e injusta) de sermos “vetades” (expressão usada quando alguém do casal exige afastamento de um determinado crush/amigue/colega por qualquer tipo de desconforto pessoal).

Não vou entrar no mérito de “certo ou errado”. Nesse caso é uma escolha que cada pessoa deve tomar sozinha. Eu pessoalmente não tenho problema nenhum em me envolver com pessoas em RA, eu manejo bem minhas expectativas, não me machuco fácil e tenho plena convicção da minha escolha não-mono, ou seja, eu sei o que aceito e o que não aceito, meus limites e a hora de cair fora sem remorso (se necessário). Já outras pessoas não são assim, e com um histórico já desfavorável de antigas relações, preferem se resguardar.

Todavia, não devemos esquecer que muitos desses casais estão em efetiva desconstrução, e mais, não devemos confundir parentalidade, coabitação e relação financeira/material com relacionamento aberto.

Não é por que alguém divide uma casa com crush, tem filhes e/ou tem despesas financeiras conjuntas, que está numa relação aberta. O que configura esse tipo de relação são as características descritas anteriormente (hierarquias, amor romântico, etc.).

A realidade é que vivemos num mundo capitalista, patriarcal e monogâmico, e essas estruturas nos empurram para que nos agrupemos em configurações familiares, mesmo quando nossas ambições são outras. Quando a pessoa mora com um afeto, grande parte das vezes é por questões práticas, aluguel está uma fortuna e bancar tudo sozinho é bem difícil. E se, por exemplo, essa mesma pessoa não vai poder viajar com amigues porque combinou de comprar uma geladeira nova para casa com esse afeto, isso não é um “acordo limitante” ou algo do tipo, é apenas necessidade*[2].

Sem contar que muitas pessoas vieram a aderir a não-monogamia quando já estavam casadas e criando suas famílias. E ainda assim, eu conheço diversas pessoas fantásticas que conseguiram criar processos emancipatórios impressionantes nessas condições.

Tudo é possível quando trabalhamos em conjunto, estudamos a teoria, acolhemos as críticas sem melindres e trazemos tal conhecimento para a prática. Cada um no seu ritmo, nas suas limitações, mas unidos por uma não-monogamia saudável para todes.

*[1]: Esse movimento em busca de uma “linguagem NM” é crucial. Nós precisamos dessa construção para fortalecermos a comunidade e combatermos a monogamia. Se dissermos que tá tudo bem qualquer coisa, aí vira liberal. E todos sabemos como é a cara disso, né? Grupos e mais grupos de face com o título de “poliamor sei lá o que”, repletos de homens de 50 anos namorando meninas de 18 e procurando uma terceira mulher para apimentar a relação.

*[2]: Acho importante acrescentar “um porém”, e para isso, uso as palavras da nossa editora Anita B.: “Coabitar só com 1 parceire afetivo-sexual acaba sendo uma reprodução do modelo mono. Mesmo que dê para minimizar os efeitos disso, acho que é uma forma que precisamos superar coletivamente (sem julgamentos individuais). Eu sou extremamente a favor de mais moradias coletivas. E aí isso pode incluir pessoas com quem a gente tenha relações sexo-afetivas ou não. O ruim é a norma de morar APENAS com quem você tenha relações afetivo-sexuais (seja 1 ou 5). Se for morar com alguém, por que não escolher morar com amigue(s) com quem você não tem relações sexo-afetivas ou consanguinidade? A gente não inclui essas amizades em diversos aspectos estruturais na nossa vida, e isso é muito problemático.”

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André Luiz
Afetos Insurgentes

Comunista, Comunicador Social, Especialista em Mídia, Pós-Graduado e Não-Monogâmico.