Monogamia e Violência Doméstica: uma relação ainda pouco debatida

Mari Matos
Afetos Insurgentes
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7 min readAug 2, 2022

Por que a monogamia segue sendo um assunto negligenciado no debate das violências em relações íntimas? Quais os custos de seguirmos passando uma maquiagem desconstruída no amor romântico?

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Gostaria de começar esse texto me apresentando como sobrevivente de violência doméstica. Inclusive, tomei a decisão pela não-monogamia assim que saí dessa relação e, em grande parte, por conta do que vivi. As pessoas às vezes falam de pessoas não-mono como se fossemos mais evoluídas, menos machucadas, mais seguras ou maduras. Porém, justamente no meio daquela dor, absolutamente fragilizada, é que eu fiz essa escolha. Fiz isso porque ali eu percebi muito fortemente como o sistema monogâmico estava vinculado às violências que eu sofri. Eu entendi a necessidade de rever radicalmente a dinâmica das minhas relações, e não simplesmente achar que eu havia escolhido “mal” a pessoa com quem eu me relacionei.

O que é monogamia?

Não vou me demorar aqui, pois já existem muitos textos tratando desse conceito. Porém, vale lembrar que estamos falando de um sistema que molda, regula e hierarquiza nossas relações. Importante também ressaltar que ele está conectado com o racismo, capitalismo, LGBTfobia, machismo e demais sistemas de opressão. Assim, a não-monogamia, ao ser pensada de maneira política, se estabelece como um movimento coletivo de oposição ao sistema monogâmico.

Recomendo o Manifesto por uma Não-Monogamia Política e o zine Como Pensar uma Não-Monogamia Política, ambos do Não-Mono em Foco, para maior aprofundamento.

Mas esse texto é sobre a relação entre violência doméstica e monogamia. Então, vamos lá…

Movimentos engajados no fim da violência doméstica pouco ou nunca falam sobre monogamia. Hoje, temos um reconhecimento maior de que a violência doméstica não se trata de uma questão privada (daquelas em que não se mete a colher) e é sim de ordem estrutural, o que justifica uma responsabilização do Estado e da sociedade pelo seu combate. No entanto, o olhar para o machismo e o patriarcado é insuficiente. A monogamia caminha colada nessas estruturas. O que muita gente faz na tentativa de separação (e eu já fui essa pessoa) é um grande malabarismo teórico, baseado menos na realidade e muito mais no seu próprio apego romântico.

Inclusive, é irônico que quando as pessoas vão defender que pode existir saúde nas relações monogâmicas — em especial, no movimento feminista — , elas frequentemente apontem ideias que desviam da narrativa monogâmica. Um exemplo, é quando afirmam que é preciso fugir de relações em que há controle e a posse. O malabarismo começa nas tentativas de explicar como dá para evitar isso justamente mantendo acordos de controle e posse entre as partes.

Acordos de exclusividade e centralidade são abusivos. Não temos o direito de legislar sobre a autonomia do outro e é justamente isso que esses acordos fazem. Esse amor possessivo, problemático em si, cria um espaço propício para outros abusos, traumas e situações de alto risco.

Obviamente, nem toda relação monogâmica incluirá violências explícitas, tais como tapas, gritos e ameaças diretas. No entanto, a procura pela garantia da estabilidade e segurança da entidade casal estimula brigas, manipulações, violações de privacidade, cerceamento do desejo de ambas as partes, controle e diversas outras violências que aprendemos que “fazem parte” de qualquer relação. Inclusive, muitos desses comportamentos são tidos como essenciais e dizem que até “fazem bem” para manter o casal nos trilhos.

Gosto de lembrar que a colonização foi e é até hoje definida como uma missão de civilização e desenvolvimento. Assim, a devastação produzida por ela é retratada como um pequeno preço a se pagar pelo progresso, a violência em nome de um bem maior. Na mesma linha, muitas violências são cometidas em nome do amor, encontrando nessa narrativa seu amparo moral e aprovação social.

Muitas vezes, violências em relações íntimas são vistas como respostas justas ou até compreensíveis diante de alguns cenários. Não é incomum observarmos, por exemplo, pessoas dizendo sem qualquer constrangimento que matariam sues parceires ou teriam alguma forma de comportamento vingativo caso descobrissem um caso extraconjugal. Além disso, apesar de hoje em dia separações serem vistas com maior naturalidade, seguimos prometendo para sempre em nossas relações e muita gente segue morrendo por mudar de ideia.

Estudos sobre feminicídio e violência doméstica colocam inconformidade com o término, posse e ciúmes no topo das motivações para esses atos. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Avon/IPSOS (2011) sobre violência doméstica, por exemplo, reportou que tanto vítimas (48%) quanto agressores (38%) identificaram o ciúmes como principal motivador para a agressão. Outra pesquisa do MPSP (2018) identificou que, em São Paulo, a maioria dos feminicídios acontecem dentro de casa, o agente na maior parte dos casos é alguém com quem a vítima tem ou tinha um vínculo romântico (união estável, casamento ou namoro) e a principal motivação para o crime é o inconformismo com a separação (45%), seguida de ciúmes/posse/machismo (30%).

Transformações, experimentações, o desconhecido e o outro são verdadeiros inimigos da monogamia. É preciso fazer uma constante manutenção da relação para alcançar bons níveis de previsibilidade, estabilidade e segurança a todo momento, evitando alternativas atrativas. Por vezes, basta que um demonstre o desejo de viver qualquer coisa sem seu par para que os questionamentos e conflitos se iniciem. E aqui vale qualquer coisa mesmo… Jogar videogame, sair com os amigos, ir numa festa, fazer um curso. Tudo precisa, no mínimo, ser informado e passar pela aprovação de seu par, que dará o cartão verde caso não se sinta ameaçado. Essas práticas frequentemente recebem o nome de preocupação, cuidado, responsabilidade afetiva ou até desejo de estar junto por este amor ser tão grande.

A vida no capitalismo nos isola, rompe laços comunitários, fortalece cada vez mais um individualismo competitivo e hierarquiza corpos. Estamos vulneráveis e desamparados. Porém, o capitalismo sempre vende a solução e agora todos os seus problemas podem acabar: é só encontrar o seu par perfeito. Isso é possível para qualquer pessoa merecedora que trabalhe para aumentar seu valor no mercado afetivo se comportando da maneira certa, desejando as coisas certas e comprando as coisas certas. As frustrações, preterimentos, violências, isolamento, sobrecarga e implicações negativas para o coletivo são romantizadas ou não mencionadas neste marketing. No entanto, me parece o mínimo que a monogamia, enquanto sistema de opressão, entre em pauta dentro dos movimentos sociais, mesmo que isso gere desconfortos.

Vivendo uma vida não-monogâmica

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A teoria das coisas parece sempre mais simples. A vivência é uma bagunça. Talvez, essa seja uma limitação dos textos argumentativos, o que não quer dizer que estejam errados. Ainda que tenham avisado do caos, nas letras ele tende a parecer distante. Ali, não tem o cheiro, os sentimentos, os medos, o afeto, as expectativas, o toque, o envolvimento. Descrever a lama é diferente de estar afundando nela, ainda que você tente descrever enquanto afunda ou tenta sair.

Uma coisa é saber muito sobre violência doméstica, outra coisa é viver e outra ainda muito diferente é conseguir sair. O mesmo vale para a NM… Podemos ler, estudar, concordar. Porém, viver de fato tem outras implicações. Romper com a norma nunca é simples. Ainda que essa decisão faça muito sentido para a gente, sempre haverá custos e limitações. A gente vai criando dentro dessa complexidade.

A ideia de que existem aqueles entre nós que estão perfeitamente bem resolvidos, livres de conflitos, problemas e dores é falsa. Talvez, uma parte da gente queira acreditar nesses seres ideais com a esperança de que um dia chegaremos também a esse Olimpo da não-monogamia. Outras pessoas, usam isso como forma de desistir antes de tentar, justificando que não estão à altura. Porém, estar seguro de sua decisão, defendê-la e alegrar-se com ela, não é a mesma coisa que nunca sofrer ou sempre saber o que fazer.

Não tem ninguém mais evoluído ou que tenha passado imune ao sistema monogâmico ao longo da vida. O que eu acho que tem muito é o desejo de fazer diferente. Não dá para pensar bem viver coletivo e saídas para as crises globais que enfrentamos dentro de um sistema que nos isola em casais. Por isso, propomos um rompimento com a ideia de que a felicidade (individualista e consumista) e o amor (romântico) são os valores nos quais devemos focar nossas vidas.

NM não é uma garantia de que violências nunca vão acontecer. Por mais que a gente tenha feito uma escolha consciente e política pela NM, a monogamia segue sendo a norma. Por isso, traz impactos objetivos e subjetivos em nossas relações e o mesmo vale para outros sistemas de opressão. Assim, essa escolha não nos isenta de erros, da reprodução de opressões e violências em nossas relações, nem nada do tipo. O que ela pode fazer é nos ajudar a nos manter alertas, lembrar que podemos fazer diferente, inspirar para a produção de outros caminhos coletivamente. E isso é algo pelo qual eu acho que vale a pena lutar.

Referências

INSTITUTO AVON/IPSOS. Percepções sobre a violência doméstica contra a mulher no Brasil, 2011. Disponível em: http://compromissoeatitude.org.br/wpcontent/uploads/2012/08/Avon-Ipsos-pesquisa-violencia-2011.pdf.

MPSP. Raio X do feminicídio em São Paulo: É possível evitar a morte. 2018. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/Nucleo_de_Genero/Feminicidio/RaioXFeminicidioC.PDF

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Mari Matos
Afetos Insurgentes

Poeta, escritora e psicóloga. Fala sobre luta anticolonial, violência em relações íntimas e dissidências.