Não-monogamia e a coragem imperfeita

Mari Matos
Afetos Insurgentes
Published in
8 min readJan 4, 2023

Nem sempre nos sentimos prontes, as estrelas se alinham ou recebemos mensagens do universo… E, ainda assim, a vida demanda que a gente faça escolhas, caminhe, experimente nas incertezas e, inevitavelmente, erre.

Acredito numa teoria e numa prática que não esconde o quanto lutou para chegar a algum lugar. As horas de trabalho, de leitura, de escrita, as crises existenciais, as dores, as contradições, os erros. Nossas produções tendem a vir muito mais como fruto de nossas dificuldades (e tentativas de elaborá-las) do que de nossa genialidade.

Nunca é fácil fazer um texto. Me vem o impulso da escrita sem que necessariamente me venham as palavras, as ideias, o que desejo transmitir. Às vezes, penso “deveria falar sobre isso”. Porém, nem eu mesma sei minha opinião de forma tão estruturada. Descubro enquanto escrevo, reescrevo e apago. Preciso me propor a escrever aquilo que não sei que será escrito.

Me chama a atenção quando as pessoas dizem que não estão prontas para algo. Que maneira ótima de nunca sair do lugar! Esperar infinitamente até que tudo esteja dentro dos conformes. Assim, acreditamos que, quando finalmente chegarmos a um futuro ideal, tudo começará e terminará num único passo certeiro. Sem dores, sem dúvidas, sem frustrações, sem a chance de errar.

Acho que o primeiro espaço em que eu tive muita consciência de que precisaria ter a coragem de caminhar pelo não-saber foi no trabalho na clínica psicológica. Eu vou todos os dias sem saber como aqueles encontros vão se desenrolar. Isso sem contar as crises… Ainda que com o tempo eu desenvolva cada vez mais recursos para atravessar os momentos difíceis, ouvir “eu me machuquei”, “quero me matar”, “tentei me matar”, “fui estuprada”, “estou em risco” e tantas outras coisas, nunca ficou mais fácil. Eu nunca parei de sentir medo. Inclusive, eu descobri que existe uma corrente de pânico bem específica que atravessa o meu corpo em situações emergenciais. Ela normalmente é acompanhada por muitas dúvidas: E se eu não der conta? E se eu falar a coisa errada? E se eu acabar machucando ainda mais essa pessoa que já está tão ferida?

E tudo isso já aconteceu.

Eu não sou um poço de acertos nem nos momentos em que eu mais gostaria e mais me empenho para ser. Afinal, quanto de leitura, estudo, supervisão seria o suficiente para eu estar “pronta”? O que pode me garantir que não haverá dores pelo caminho? O que pode me garantir que eu sempre saiba o que fazer? O que pode garantir que não haverá erros? A gente vai descobrindo o que é possível em cada encontro. As muitas leituras, cursos, supervisões e conversas com outres psicologues nos fortalecem e ajudam a refletir, mas não nos dão garantias ou soluções.

Falo sobre isso porque psicologues tal como pessoas não-monogâmicas ganham o status de seres evoluídos e são cobrades como tal. Porém, não atendemos as pessoas por sermos bem resolvides. Em parte, só conseguimos fazer esse trabalho porque sabemos da complexidade de sustentar o viver.

Quando eu comecei a experienciar a NM, acho que me tornei mais consciente de como é complexo se relacionar. Afinal, precisei me propor a viver os afetos sem roteiro, conscientemente caminhar pelo não-saber.

Acho que essa é uma coragem bem imperfeita. Eu tenho pouco controle sobre o que eu sinto ou sobre o que os outros sentem, sobre como as coisas acontecem e quando acontecem. Só dá para tentar levar com carinho e confiar que me relaciono com pessoas incríveis que, mesmo no meio dos seus próprios perrengues e erros, se importam comigo e tem disponibilidade para pensar junto como a gente pode seguir a cada passo.

“Terror poliamoroso é o que sentimos na boca do estômago ao abordar a questão. É o abismo de temer que não haja chão sob nossos pés nem nas relações mais íntimas, nem no espaço em que depositamos todos os anseios de sobrevivência, que colocamos em jogo toda a autoestima, toda a vulnerabilidade. Terror poliamoroso são os alarmes que disparam assim que se aborda a questão, as respostas atravessadas dadas em qualquer debate televisivo ou qualquer conversa de bar, o pânico de desmontar a única casa para a qual podemos voltar. Terror poliamoroso é o pavor, também real, de não ter ninguém com quem organizar a vida conjuntamente. Todos esses terrores são reais. Em um mundo montado para e pelo casal, qualquer outra opção de vida é uma vertigem constante.” (Vassalo, 2022, p. 203)

É muito comum, especialmente quando eu converso com amigues mono, que elus relatem muito medo de tentar a não-monogamia. Eu já escutei “eu não tenho coragem” um tanto de vezes.

Eu entendo… Temos medo da dor, do fracasso, da solidão, do desamparo, de sermos descartades, preterides e abandonades nesse mundo de competição capitalista que engloba também os afetos. Porém, como Vasallo (2022, p. 206) coloca: “Não há como ‘estar preparadas’ para nos relacionarmos de maneiras distintas. Se a monogamia é um sistema opressivo, em algum momento, a resistência terá que ser criada.” Aliás, se a monogamia é um sistema de opressão, é nossa responsabilidade coletiva criar a resistência.

O amor colonial se autodefine como O amor, inclusive através de uma narrativa de determinação divina. Isso se infiltra e limita tanto o nosso imaginário que num primeiro momento, pode ser extremamente difícil imaginarmos outras formas de cultivar nossas relações. Por isso, se propor a descobrir o que pode ser o amor se não for o amor romântico é um tanto complicado ou até aterrorizante.

O sistema monogâmico nos faz acreditar que existem apenas duas alternativas na vida: casal ou solidão. Assim, a ideia de abandonar o amor colonial pode dar a impressão de que inevitavelmente cairemos num grande vazio. Fica um imaginário de que na não-monogamia pode até ter liberdade, mas também há desamparo. Afinal, para sermos amades, acolhides e entrarmos no paraíso é preciso sacrifício.

A proposta da NM é justamente fortalecermos nossos laços comunitários. É claro que rolam contradições, conflitos e obstáculos pelo caminho. Não-monogamia não é um oásis relacional, é uma luta coletiva contra um sistema de opressão no qual todes estamos inserides. No dia em que eu escolhi a não-monogamia, infelizmente, não deu para apertar um botão que fizesse a monogamia parar de afetar a minha vida de diferentes formas, inclusive na minha subjetividade provocando um tanto de sofrimento. No processo de romper com os caminhos prontos, talvez precisemos romper com a ideia de que precisamos estar prontes também.

É comum sentirmos medo diante das mudanças. Porém, isso frequentemente oculta o fato de que perigoso mesmo é permanecer onde estamos. Deixar uma relação violenta, por exemplo, pode dar mais medo do que a violência que sofremos em si. Sabemos que, de fato, o momento de terminar uma relação abusiva é de alto risco. Porém, muitas vezes, o medo não é (exclusivamente) sobre isso.

Aliás, já escrevi sobre a relação entre monogamia e violência em relações íntimas aqui e reafirmo que não podemos questionar uma prática violenta sem questionar os sistemas que lhe dão suporte.

Nossos corpos, tão atravessados pelo sistema monogâmico, tendem a ficar muito menos alertas do que deveriam diante de ciúmes, violações de privacidade, gritos, ofensas, ameaças e diversos outros comportamentos de controle, posse e coerção.

“Muitas vezes nosso corpo se prepara para nos proteger de falsos perigos e não nos alerta para o que realmente pode atentar contra nossas vidas.” (Nunez, 2022)

Ahmed (2008) argumenta que temos a tendência de avaliar algo como bom ou ruim a partir da forma como isso nos faz sentir. Ou seja, algo é bom se me traz prazer e ruim se provoca dor. Frequentemente, avaliamos algo como sendo ruim, pois nos tira de nossa zona de conforto, ou seja, do mundo tal como o conhecemos. No entanto, o mundo nos é apresentado através da visão dominante, que é eurocentrada, colonial, capitalista, cisheteronormativa, racista e patriarcal. Assim, a promessa de felicidade está atrelada a quanto nos adequamos a estes sistemas.

Vemos exemplos disso cotidianamente. Se você chegou até esse texto, imagino que tenha minimamente uma visão anti-machista, antirracista e anti-LGBTfóbica. Então, você provavelmente sabe o que é se pronunciar num ambiente e causar climão, aquela sensação de que estragou o rolê. Você passa a ser identificade como causadore de problemas. O desconforto não é com a “piada” machista, por exemplo, mas com você que aponta a opressão. Para Ahmed (2008), isso acontece porque…

“Alguns corpos são considerados a origem dos sentimentos ruins na medida em que perturbam a promessa de felicidade, que descrevo como a pressão social para manter os sinais de “se dar bem”.” (p.6, minha tradução)

Daí, por exemplo, tanto ressentimento mesmo por parte de quem se considera não-mono em relação aos não-monogâmicos que partem de uma perspectiva política. Existe um grande incômodo com aqueles que não adotam a argumentação “conciliatória” de que “tanto faz ser mono ou não-mono, o importante é encontrar o que faz sentido para você”. Ou seja, quem se recusa a reduzir a análise crítica de um sistema de opressão a uma questão de escolha pessoal através de uma noção liberal de liberdade.

É verdade que a não-monogamia causa um verdadeiro temor em muita gente. É verdade também que implica num processo que envolve dores. Porém, não é ela o verdadeiro perigo. Na monogamia, toleramos um tanto de violência e sofrimento apegados à falsa promessa de felicidade do amor romântico. Porém, já que é pra sentir dor, prefiro a da mudança, a das incertezas que permitem que tracemos nossas rotas afetivas com criatividade.

A monogamia toca em algo que entendemos como muito íntimo. Por isso, a não-monogamia talvez seja a pauta política que mais escancare que precisamos lutar também contra as opressões que carregamos em nós. Afinal, se nossa zona de conforto é chamar nossos comportamentos violentos e possessivos de amor, nomeá-los pelo o que eles realmente são pode ser um exercício de consciência desagradável.

Eu sei que falar em luta política e em sustentar a vida em sua complexidade não tem o mesmo apelo do “felizes para sempre”. Eu sei que desromantizar a vida e encarar o fato de que não teremos uma história de amor Disney, que é só uma questão de encontrar a pessoa certa, implica em lutos. Porém, para além da importância social da luta antimonogamia, esse caminho nos permite aprender a amar com os pés na terra, não mais tanto perdidos em idealizações e projeções românticas. Tem muita gente incrível no mundo. Entre um tanto de sentimentos complexos, também é uma alegria poder conhecer, amar, cuidar e trocar afeto com a nossa comunidade. O comprometimento com o fim deste mundo tal como ele é demanda coragem, mas é também o que dá uma chance para a vida.

Referencias

AHMED, S. The politics of good feeling. ACRAWSA e-journal, v. 4, n. 1, p. 1–18, 2008.

NUNEZ, G. Intuição romântica nunca falha? O sensor de nossos reações emocionais também pode estar desafinado pela colonização. 2022 Disponível em:
https://www.instagram.com/p/CiJOyWvN7xY/?igshid=YmMyMTA2M2Y=

VASALLO, B. O desafio poliamoroso: por uma nova política dos afetos. Editora Elefante, 2022.

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Mari Matos
Afetos Insurgentes

Poeta, escritora e psicóloga. Fala sobre luta anticolonial, violência em relações íntimas e dissidências.