O caso Kevin: Dissecando a Estrutura Monogâmica

André Luiz
Afetos Insurgentes
Published in
7 min readMay 21, 2021

Precisamos falar sobre o ciclo de violências perpetradas pela imposição da monogamia

Kevin e Deolane em seu casamento.

Primeiramente, vamos aos fatos que ocasionaram a tragédia

O cantor Kevin do Nascimento Bueno (MC Kevin) veio a falecer na noite do dia 16/05 (Domingo) após cair da sacada do 13º andar do Hotel Brisa Barra, na Barra da Tijuca (Rio de Janeiro). As causas da morte ainda estão sendo investigadas, mas ao que tudo indica pelas diversas reportagens e pela condução da perícia policial, o acidente aconteceu enquanto Kevin tentava fugir de ser descoberto por sua esposa no meio de um ato extraconjugal.

Na tarde daquele domingo, o MC havia encontrado a modelo e acompanhante Bianca Dominguez na praia, levado-a para o quarto de hotel de um de seus amigos (que estavam hospedados com ele) e realizado o ato sexual a 3. Porém, no meio de toda essa atividade, enquanto estava na sacada com Bianca, o cantor ouviu batidas na porta, imaginou ser sua esposa, e ao tentar a manobra arriscada de pular na sacada do apartamento abaixo do seu, teve uma queda fatal.

Ok, esses são os fatos. Vale acrescentar que a investigação também aponta para um alto uso de drogas e álcool feitos pelo músico antes do ocorrido.

Por trás dos fatos: Como a estrutura monogâmica molda nossos comportamentos

Serei sincero em dizer que eu não manjo nada do Kevin. Como descrito acima, eu sei o que se passou sobre o caso (além de algumas coisas que as pessoas tem falado nas redes sociais), porém não pesquisei a vida do cara a fundo para saber todos os detalhes e pormenores. E também é importante deixar claro que a ideia desse texto não é procurar mocinhos nem bandidos, ok?

O que vamos fazer aqui é analisar a estrutura mono.

A monogamia não é só sobre quantidade de parceiros. Não é apenas a questão sexual que a monogamia busca controlar. Ela também regula outras tantas atitudes que podemos ter dentro e fora de uma relação, e ela faz isso exercendo uma gigantesca pressão social/moral/emocional/psicológica nos seus participantes.

Vamos pegar a esposa do MC como exemplo: a partir dessa pressão estrutural, ela se vê obrigada a performar o papel da esposa salvadora, cujo amor supera qualquer abuso, que mesmo casando com um artista que vive da noite, acredita que com vigilância constante e muita devoção, vai mudar o cara. Só ai já vemos uma coerção muito perversa, a ideia de que é obrigação da mulher carregar essa penitência*[1].

Ao mesmo tempo, o ciúmes que ela sente também não encontra autocrítica. Afinal, se tem ciúmes, tem amor, e esse pensamento justifica uma série de abusos (tanto por parte do homem quanto por parte da mulher). No caso dela, por exemplo, ela relata durante o enterro do MC que tinha ciúmes de uma tal de “casa maromba” que o marido frequentava e que pediu para ele não ir mais, mesmo com ele dizendo que o local havia “mudado sua vida” (ajudando-o a parar de beber por vários meses).

Ela também culpava os amigos pela morte do cantor, acreditando que eles eram influências ruins na sua vida. Ela até chega ao ponto de declarar durante discurso indignado no enterro que “homem casado não anda com homem solteiro”. O que podemos ver aqui é como a monogamia enquadra as mulheres no papel de polícia e mãe. É patético pensar que um homem de 23 anos, pai de família e no completo controle de suas faculdades mentais, precisa ser protegido de “influências externas” por sua esposa para “não ser corrompido”. Mas é assim que a monogamia estrutural heteronormativa funciona, jogando no colo da mulher a responsabilidade de trazer o homem para o relacionamento. E para isso vale tudo, inclusive a criação de regras arbitrárias dentro do imaginário popular, como advogar pela separação de solteiros e casados. Acreditar que Kevin não teria o mesmo estilo de vida ou não tomaria as mesmas escolhas se andasse com outras pessoas casadas é bastante ingênuo*[2].

Deolane Bezerra, viúva de Mc Kevin (Foto: Amauri Nehn/Brazil News)

Agora vamos olhar o lado dele um pouco: Kevin acredita que para viver esse amor (pois eu não duvido que ele a ame), ele precisa tentar abrir mão de várias coisas que ele tem e que ele é. Algo que é padrão no contrato monogâmico, todos somos obrigados a entregar uma gigantesca parcela da nossa autonomia e liberdade (entre outras coisas) pela promessa de amor e parceria eternos. Assim como para 99% da população, não passa pela cabeça dele outras possibilidades relacionais. Esse tipo de sacrifício já é esperado e incentivado pela cultura mono: quando o amor verdadeiro aparece, devemos largar tudo que somos e nos entregarmos a ele, sem questionarmos racionalmente se essa pessoa ou configuração são realmente o melhor para nós.

Por outro lado, ele também sofria das mesmas pressões estruturais (patriarcais), mas de maneira diferente. O cara era artista pop, homem-cis-hétero e trabalhava com a imagem, ou seja, também era esperado que ele personificasse o papel do macho alfa. E eu não to passando pano ou dizendo “coitadinho dele, obrigado a transar com outras pessoas mesmo não querendo”, eu só estou constatando o óbvio: se nós, “meros mortais”, já “falhamos miseravelmente” na surreal tarefa da fidelidade, imagina alguém inserido no meio dele. E assim a pessoa é obrigada a viver nessa contradição entre ser o homem provedor pai de família tradicional, e o popstar “sex-symbol” cheio de estímulos e desejos. E essa pressão é tão maluca que veja só, o cara não consegue ser fiel, mas também prefere se arriscar pulando de uma sacada do que ser pego falhando no seu papel de “homem de bem” imposto pela estrutura monogâmica*[3].

“Ahh, mais isso não é simplesmente o machismo nosso de cada dia, André? Não seria exagero botar isso na conta da monogamia, sendo que claramente essas pessoas estão sofrendo com as imposições do patriarcado?”

Sim, tudo isso que eu descrevi tem relação com o machismo. O “pulo do gato” é entender que a monogamia e o machismo são correlatos. Ou seja, em outras palavras: a monogamia é como o patriarcado se manifesta nas nossas relações. Por isso que quando a gente crítica a monogamia nessa história, a gente tá criticando junto com ela o machismo em suas diversas vertentes. Um alimenta o outro. É por isso também que muitas pessoas NM (eu incluso) dizem não acreditar em monogamia saudável*[4]. Justamente porque ela foi constituída a partir de todo esse legado de violências.

Enfim, todo esse caso é panfletário para entendermos como as estruturas monogâmicas moldam nossos comportamentos de maneiras muito destrutivas. É assim que somos ensinados a amar, infelizmente.

Com imposições, perseguições e mentiras.

E é realmente uma pena que tudo isso tenha acontecido. Nós aqui da Afetos escrevemos sobre a monogamia e seus percalços com o intuito de promover um debate saudável sobre o tema, não para atacar ou machucar ninguém. Portanto, para você que leu até aqui, ficam nossos agradecimentos. E para os familiares, amigos e fãs de Kevin, nossas condolências e um profundo abraço.

*[1]: Lembrando que a monogamia também tem como seu pano de fundo a moral cristã, com toda a sua ideia de submissão feminina.

*[2]: Não podemos esquecer que todo esse episódio foi extremamente traumático para a família do Kevin, em especial sua esposa. Nesse texto estamos analisando questões estruturais e não julgando as pessoas envolvidas. Em momentos de dor como esse, muitas coisas que são ditas podem soar agressivas ou maldosas, mas são apenas manifestações de uma família e comunidade em luto por conta de uma tragédia.

*[3]: E sim, eu entendo que o MC Kevin era uma pessoa que se beneficiava dessa estrutura, com certeza. Mas mesmo ele acabou sofrendo com as contradições inerentes a todo esse teatro monogâmico. Portanto, eu afirmo que quando a monogamia cair, todos iremos nos beneficiar, inclusive o homencishet (branco).

*[4]: Pela milésima vez, quando falamos que não existe monogamia saudável, estamos falando das estruturas. Se você tem uma relação mono feliz e contente com seu parceire, parabéns para vocês, espero que vocês nunca deixem de se respeitar (mesmo quando a monogamia se mostrar uma camisa de força nas suas vidas com o passar do tempo). É como viver no capitalismo: muitos de nós “nos adequamos bem” e conseguimos montar uma vida decente apesar de toda luta e sofrimento, mas isso não significa que esse sistema seja de maneira alguma bom para humanidade.

Fontes:

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André Luiz
Afetos Insurgentes

Comunista, Comunicador Social, Especialista em Mídia, Pós-Graduado e Não-Monogâmico.