O direito à privacidade é uma das bases da Não Monogamia!

André Luiz
Afetos Insurgentes
Published in
9 min readMar 17, 2021

Para vivermos relações livres, precisamos entender que todes temos uma vida particular que deve ser respeitada

Privacidade hoje: uma breve análise da nossa sociedade hiperconectada

Privacidade tem se tornado um conceito de difícil entendimento na modernidade. O advento das mídias digitais impulsionou um novo ideal de compartilhamento que está cada dia mais forte, crescendo com o passar das gerações. Estamos cada vez mais condicionados a contar sobre nossa rotina, nossas angústias, problemas e conquistas nas redes sociais, sem muitos pudores.

Uma vez li uma matéria (a qual infelizmente não consigo me lembrar o nome) que falava sobre esse novo paradigma de comportamento que vem se tornando dominante. Nela, o autor fazia uma comparação entre os diários que nossas mães e avós mantinham, e as redes sociais. Poucas décadas atrás, se pedissem para que minha mãe publicasse o que ela mantinha em seus diários, ela responderia um sonoro não (mesmo com a possibilidade de fama e ganhos financeiros). Já na atualidade, nesse exato momento que vos escrevo, ela já postou 2 vezes sobre problemas pessoais no Facebook hoje.

Mas seria essa mudança comportamental algo ruim ou bom? A resposta é: “depende”.

Alguns argumentariam que estamos nos tornando uma sociedade mais aberta e transparente. Que estamos mais dispostos a compartilhar nossas dores em vez de escondê-las e que aceitamos ajuda com maior facilidade. Ao mesmo tempo, num cenário global, conseguimos enxergar que temos aspirações e sonhos semelhantes, e que mesmo com culturas diferentes existem muitas coisas que nos aproximam. É essa arquitetura de compartilhamento que forma comunidades digitais, reunindo pessoas geograficamente distantes em grupos de interesse em comum, muitas vezes altamente benéficos para seus participantes, que através da troca intensa de informações conseguem dar apoio uns aos outros e realizar projetos incríveis.

Um bom exemplo das benesses dessa cultura do compartilhamento é dado por Jeff Jarvis, que num determinado trecho do seu bestseller “O que a Google faria?” (2010), explica através de um estudo de caso os benefícios da “exposição pública”:

Quando o serviço de fotos Flickr foi inaugurado, o casal fundador, Caterina Fake e Sterwart Butterfield, tomou uma decisão fatal praticamente sem querer. Como diz Fake, eles “deixaram automaticamente em público”. Ou seja, enquanto outros serviços de fotos presumiram que os usuários preferiam manter privadas as fotos pessoais (faz sentido, não?), o Flickr decidiu deixar as fotos em público, a não ser que o usuário dissesse o contrário. Coisas incríveis aconteceram. As pessoas comentavam as fotos dos outros. Comunidades se formavam em torno delas. Elas tagueavam [etiquetavam] as fotos para que pudessem ser encontradas em buscas, pois queriam que suas fotos fossem vistas.

"É o seu status, não o seu diário"

Por outro lado, outros argumentam que estamos na era do OVERSHARING (Superexposição), e que as pessoas estão perdendo a mão do que devem ou não expor sobre suas vidas pessoais. Vivemos na “Sociedade do Espetáculo” (1967) de Guy Debord, porém de uma forma que ele nunca poderia imaginar. Em vez de espectadores passivos de propaganda e entretenimento audiovisual, nós nos tornamos parte dessa indústria, fomentando a partir da exposição de nossas vidas, o desenvolvimento de uma cultura consumista cujo o produto é a privacidade alheia. Além disso, nossos dados pessoais estão mais expostos do que nunca, todas as nossas interações virtuais se transformaram em commodities, e é possível afirmar que empresas de propaganda sabem mais sobre nossos hábitos e costumes do que nossos familiares e amigos.

Mas, indiferente do seu ponto vista (otimista ou pessimista), uma coisa é certa: o conceito de privacidade, tanto na esfera semiótica quanto na prática, está mudando.

A monogamia e suas barreiras: quando ideias tradicionais de privacidade começam a se dissolver

É importante salientar antes de mais nada que a “entidade casal” continua preponderante na nossa realidade, assim como a monogamia se mantém firme e forte, inserida nas bases da estrutura patriarcal e dividindo a sociedade em núcleos familiares desconexos que competem entre si. Em seu texto “Abrir amores, fechar fronteiras?”, Brigitte Vasallo argumenta:

Construímos casais de forma identitária, com fronteiras fechadas e herméticas. Somos casais, não estamos casais. Essa forma de construção, sabemos bem, responde também à necessidade de refúgio diante de um mundo impiedoso; do refúgio econômico diante do capitalismo selvagem ao refúgio emocional diante do enorme supermercado de afetos em que vivemos, passando, entre outras coisas, pelo refúgio sexual diante da hipersexualização instrumental de corpos descartáveis e, paralela e paradoxalmente, diante da penalização da sexualidade

Ou seja, ainda temos um longo caminho para que tal estrutura desmorone, sendo ela alimentada pelo sistema econômico, político e religioso que domina nossas vidas.

"Me diga que me ama no meu perfil do Facebook, pra que todo mundo saiba o quanto você me ama"

Todavia, é inegável que a forma como nos relacionamos afetivamente foi profundamente afetada com essa nova cultura de compartilhamento exacerbado. A abertura que as redes sociais proporcionam para que compartilhemos nossa vida pessoal se tornou um grande problema para casais ao redor do mundo. Tenho certeza que você conhece pelo menos um casal que terminou por descobertas feitas nesses ambientes virtuais. Isso porque a monogamia é um sistema fechado em si mesmo, que se constitui a partir de acordos pautados pela ideia do amor romântico, acordos esses totalmente fora da realidade. Quando adentramos um relacionamento mono, automaticamente concordamos com alguns pressupostos pré estabelecidos, como por exemplo;

  • Minhe parceire é a pessoa mais importante da minha vida e figura central na minha tomada de decisões;
  • Devemos nos afastar de qualquer pessoa ou situação que ameace a vida do casal, indiferente do motivo (ciúmes, insegurança, hierarquia, medo…);
  • Não devemos expor a vida íntima do casal, em especial seus problemas (“Em briga de marido e mulher não se mete a colher”);
  • Não desejarei nenhuma outra pessoa que não meu parceire, seja sexualmente ou emocionalmente;
  • Desde que selamos um compromisso, abdicamos de planos de vida individuais. A partir de agora tudo que sonhamos é dividido.

No entanto, na nossa rotina hiperconectada, as coisas não funcionam de maneira tão “elegante”. Apesar de também serem ótimas para camuflar a realidade (as bloguerinhas de Instagram são prova disso), as mídias sociais tem um lado fortemente rebelde, que incita as pessoas a flertarem publicamente com aquilo que na vida privada, a dois, juram desinteresse.

É lá que você acaba aprendendo que seu parceiro tem um sonho nunca verbalizado de fazer um intercâmbio (e que esse sonho não necessariamente inclui você), ou você descobre a partir de uma sequência de indiretas que seu casal de amigos está em crise. Ainda “mais” impactante, chega ao seu conhecimento que seu presente de Deus ainda se atrai sexualmente por outras pessoas, algumas inclusive bem próximas dos seus círculos de convívio, e que indiferente das barreiras que você colocou e juras que proclamou, ele gosta de ser desejado por outras pessoas. Em suma, você descobre falhas e rachaduras na fantasia monogâmica que constitui sua relação.

E nem é necessário que ocorra uma traição de fato para que tais interações públicas se tornem um problema. Basta o leve aroma da autonomia, a dolorosa percepção de que a vida do seu parceiro não gira em torno de você, que ele tem um mundo privado que não é do casal, para causar abalos nas estruturas monogâmicas.

E são a partir desses abalos, que nós entramos no nosso último tópico.

Privacidade como autonomia: o paradoxo de reafirmar limites e derrubar fronteiras simultaneamente

Quando nos perguntam sobre NM, em especial sobre o que uma relação não mono precisa ter pra funcionar, quase que instantaneamente pensamos em comunicação e honestidade.

O discurso costuma ser mais ou menos assim:

“Você precisa estar aberto, conversar com su parceire, compartilhar seus medos e ouvir os delu, sempre com muita honestidade e se acolhendo mutuamente. A pior coisa que se pode fazer é mentir numa relação não mono. Mas essa que é a maravilha da NM, você não precisa mentir.”

Pois bem, isso tudo é verdade, mas na minha opinião, existe uma grande falha no âmago desse discurso que adotamos sobre abertura e honestidade acima de tudo. Aliás, duas grandes falhas:

1º. Normalmente esse discurso parte de uma perspectiva de relacionamento aberto. Quando pensamos em pilares essenciais para uma relação não mono, ou quando nos fazem indagações nessa linha, nós respondemos sem a percepção que no fundo do nosso raciocínio encontra-se a figura de um casal. De duas pessoas tentando fazer dar certo. Nós não pensamos automaticamente numa rede de afetos, numa anarquia relacional, numa RLi. Infelizmente ainda pensamos não-monogamia dentro do pano de fundo das relações tradicionais;

2º. Por causa disso, tendemos a dar um peso enorme para necessidade de sermos honestos e compartilharmos. E não que isso não seja importante, pelo contrário, é muito importante mesmo. Mas eu acredito que como AR, existe outro conceito que é essencial para a vida não mono e que acaba sendo deixado de lado muitas vezes, que é o da privacidade.

Todavia, para discutirmos isso efetivamente, precisamos nos livrar da concepção monogâmica de privacidade, pautada pela ambivalência que força os casais ao isolamento, sem, no entanto, lhes garantir o espaço individual. Ou seja, o núcleo afetivo levanta barreiras para a sociedade, mas entre si é esperado (se não exigido) uma espécie de “transparência abusiva”.

Pelo contrário, devemos passar a ver a privacidade como um reforço da nossa autonomia, que é um dos pilares da não-monogamia. Autonomia para escolher nossos afetos, para moldar nossas relações, para combater as estruturas desiguais e opressivas do capitalismo e suas vertentes, e também autonomia para respeitar nossa solidão, para não constituirmos relações sufocantes e para que todos tenhamos liberdade de ir e vir.

Praticar honestidade e comunicação com TODAS AS SUAS RELAÇÕES sempre será importantíssimo em qualquer contexto relacional. Mas, também, se dar o direito de não precisar passar relatórios, de se movimentar sem mandar sua localização, de moldar cada relação sem interferência direta das outras, de poder curtir seu tempo a sós sem a obrigação de se justificar, ou até mesmo de interagir em qualquer ambiente sem a sensação de ser alvo de julgamentos ou vigilância. Isso tudo e muito mais é o que podemos chamar de privacidade dentro das relações livres. E isso é um direito de todas as pessoas.

E quando eu digo direito, quero dizer que não está subjugado a outros parâmetros. Privacidade não é uma recompensa que se ganha por bom comportamento (como muitas vezes acontece em relações mono). A ideia de que “privacidade se conquista” é extremamente problemática e ligada ao sistema de punições e controle de corpos que a monogamia emprega para sustentar seus acordos irreais. Se você não confia na pessoa que se relaciona (por N motivos), isso também não te dá o direito de espioná-la ou forçar uma abertura que ela não está disposta a dar. Sua autonomia lhe permite vários caminhos, como o diálogo, olhar para dentro de si, o término, entre outros.

Mas nunca desrespeitar a privacidade alheia.

Por fim, a ideia central que acredito ser importante levar desse texto é simples:

Apesar de parecer um paradoxo, os limites que a privacidade impõe, quando respeitados, causam aproximação, e não distanciamento. Quando não sufocamos as pessoas, é muito comum que elas saiam de uma posição naturalmente defensiva para uma posição de conforto. É um ciclo virtuoso. Com comunicação e honestidade nós quebramos barreiras, e com consideração ao espaço alheio criamos um ambiente tranquilo que fomenta intimidade.

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André Luiz
Afetos Insurgentes

Comunista, Comunicador Social, Especialista em Mídia, Pós-Graduado e Não-Monogâmico.