Pandemia x Não Monogamia: entre o individualismo e a coletividade

André Luiz
Afetos Insurgentes
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12 min readApr 7, 2021

A ideologia liberal fez da nossa sociedade um grande “vale tudo”. E para combatermos essa pandemia de egoísmo, devemos politizar nossos afetos

Com a crise do movimento revolucionário no século XX, a plataforma comunista clássica foi formal ou implicitamente abandonada. Os exemplos são tantos que desnecessários: temos um amplo leque de “atualizações”, “desenvolvimentos”, “explicitações”, “aprofundamentos” etc. que, quase sempre, foram sua revogação pura e simples sob os disfarces mais eficientes para a política “do dia”. Chegamos a um patamar de degradação em que, hoje, consideram-se “de esquerda” posições que seriam, no passado não muito distante, tomadas como contrarrevolucionárias pura e simplesmente.

E é com essa citação de Sérgio Lessa tirada do texto “A atualidade da abolição da família monogâmica” que inicio nossa reflexão. O intuito dela é para que fique claro o viés politico desse post.

Importante dizer que eu me considero um comunista em formação. Não sou nenhum cientista político nem especialista no materialismo histórico, mas estou sempre tentando aprender um pouco de tudo, leio Marx, Engels, Lenin, Trotsky, Kollontai, Zetkin, Rosa, Thomas Sankara, Kwame Nkrumah e etc…. Porém, na base de tudo, eu acredito firmemente na necessidade do fim da propriedade privada, da revolução popular e da extinção do capitalismo como único meio de emancipação do ser humano. E é dessa perspectiva que parte o texto.

No entanto não sou só eu, aqui na Afetos Insurgentes somos todes de esquerda e guiades por um horizonte revolucionário. Indiferente do caminho seguido (anarquismo, comunismo….), todes abominamos o pensamento liberal, inclusive aquilo que chamamos de “liberalismo de esquerda”.

Aqui é um ambiente no qual discutimos sobre a NM POLÍTICA, que é uma posição revolucionária e contra-hegemônica por si só.

“O que isso significa?“

Significa que nossa crítica à monogamia não é sobre estilo de vida, é uma crítica sistêmica e ancorada no nosso mais profundo desejo pelo fim do capitalismo e todas as suas violentas manifestações (machismo, homofobia, racismo…).

Desde o começo dessa pandemia temos visto de maneira mais evidente aquilo que já deveria ser óbvio para qualquer pessoa de esquerda: o sistema social, político e econômico em que vivemos é letal para a vida humana. E diante desse ataque implacável cometido pelo capital contra a nossa existência, se faz imprescindível a politização dos nossos afetos, além de um maior entendimento da ideologia liberal, que através da falácia da “responsabilidade individual”, busca incutir em nós, a classe trabalhadora, toda a responsabilidade pelas mais de 500 mil mortes ocorridas no nosso país.

O individualismo liberal e suas desonestas ramificações

Vivemos numa sociedade propositalmente dividida. Essa divisão ocorre tanto no terreno “simbólico” a partir da ideologia liberal, quanto na materialidade, a partir da desigualdade sistemática arquitetada pelo capitalismo, e da criação de núcleos familiares monogâmicos em detrimento a vida comunitária.

No terreno simbólico, a burguesia sempre investiu alto no fomento do liberalismo, criado para justificar o sistema de exploração em que vivemos e desarmar qualquer tentativa de revolução. Investindo em desinformação e propaganda, impede-se a criação de consenso dentro da classe trabalhadora e a derrubada do sistema.

Agora na pandemia estamos colhendo as consequências dessa ideologia. Décadas de pensamento individualizante desprepararam nossa sociedade para se engajar coletivamente contra o vírus. Perdemos em grande medida o senso de comunidade, muitos de nós acreditamos em “meritocracia” e numa eterna competição, ou seja: que o único meio de termos uma vida decente é através da luta contra os nossos semelhantes.

Além disso, não devemos esquecer também do hedonismo egoísta pregado pelo capitalismo em cada esquina, em cada propaganda de carro, em cada comercial de cerveja. A procura pelo prazer — em CONSUMIR — acima de tudo nos leva a uma vida que só faz sentido a partir do exagero e da incessante busca por mais, na qual nossa imagem é mais importante que a realidade.

No terreno material temos o esvaziamento do poder público, a privatização de todos os serviços necessários para a manutenção da vida humana, o teto de gastos, o sucateamento do SUS, além de um governo escancaradamente fascista e pautado numa agenda de extermínio do seu povo. Os dois auxílios emergências foram uma piada, tanto em duração quanto em valor. Não houve medidas de resgate dos pequenos comerciantes, a compra de vacinas foi deixada para última hora e assim por diante.

Em meio a isso temos a família monogâmica, criada para ser o único campo de atuação possível da classe operária. Nos vemos impotentes e solitários dentro da máquina capitalista e temos como nosso respaldo “exclusivo” a família. Para protegê-la fazemos o que for necessário, até mesmo explorar e colocar em risco a vida de outros indivíduos, que assim como nós, ironicamente, também fazem o mesmo pelas suas famílias — num grande ciclo de competitividade que nunca acaba.

E mesmo com tudo isso, boa parte do discurso tanto daqueles que estão no poder quanto da população concentra-se na responsabilidade individual. Essa é a magia da ideologia liberal. Ela distorce toda a ideia de comunidade que possamos ter, ela destrói os meios públicos de bem estar social e defesa da vida (sucateando e privatizando serviços essenciais), ela nos divide em pequenos grupos competitivos e faz da existência um enorme sistema de exploração cujo o único sentido é o consumo e acumulação… mas se você resolver quebrar o isolamento para ver um crush porque não aguenta mais sofrer sozinho, você é o culpado por essas mortes!

Não temos todos a mesma parcela de culpa nisso não!

Antes de continuarmos a denúncia desse sistema escroto, vale um adendo:

EU NÃO ESTOU PASSANDO PANO para quem vai na balada, para quem faz “house party” e assim por diante. Pelo contrário, quando eu falo em politizar afetos, eu falo justamente sobre escolher estar do lado de pessoas que entendam o valor da vida e prezem por ela. Os indivíduos que estão promovendo aglomerações desnecessárias*[1] estão errados, não tem como relativizar isso.

A mensagem que eu estou querendo passar é outra:

  • Saiba quem são seus verdadeiros inimigos: são aqueles que estão no controle do Estado burguês e seus lacaios, são os apoiadores desse governo fascista, são os capitalistas e donos dos meios de produção, são os agentes de segurança que protegem o capital, é a mídia aliada a tais interesses, os líderes religiosos que mentem para as massas e assim por diante;
  • Portanto saia do discurso enganoso que querem te fazer acreditar: seu amigo que não aguentou a solidão e foi para casa de um afeto não é um homicida. Nem toda a quebra de isolamento é um crime hediondo (porém isso será tratado mais adiante no texto). Aliás, sendo bem direto, “o grosso" do contágio do vírus ocorre a partir da interação entre trabalhadores. Para quem vive na capital paulista por exemplo, é só visualizar estações como ae a Luz as 7 da manhã. É ali, naquele mar de pessoas forçadas a arriscar suas vidas para sobreviverem nesse sistema bizarro, que o espalhamento do vírus acontece. Nenhuma balada clandestina chega nem perto disso;
  • No mundo neoliberal que vivemos, dependemos do Estado burguês para gerir o combate a pandemia. Apesar disso estar longe do ideal (afinal esse mesmo estado é um dos responsáveis por chegarmos nesse ponto), infelizmente é o que temos no momento. Ainda assim, países como a Coréia do Sul, Alemanha e Nova Zelândia demonstraram que quando as autoridades trabalham pautadas na ciência e com o mínimo de preocupação com a vida humana, é possível lutar contra o vírus e minimizar as fatalidades. Ou seja, qualquer país sério entende que estamos numa guerra contra o vírus e que se faz necessário uma ação coordenada a nível nacional, garantindo testagens e vacinação em massa, implementando o isolamento social, disponibilizando incentivos fiscais e resgate financeiro para diminuição dos impactos econômicos e etc… Além disso, é preciso que haja fiscalização, para que as novas regras desse período emergencial sejam seguidas. E isso é papel do Estado, a única instituição com poder e recursos para dar cabo de tal tarefa no momento presente. Não adianta achar que o indivíduo por si só, inserido no liberalismo individualizante, massacrado por todos os lados pelo sistema capitalista e cheio de pressões (financeiras, psicológicas, materiais e emocionais), vai conseguir aderir a todas as recomendações sanitárias sem incentivos. Para que esse indivíduo possa colaborar com essa luta, ele precisa receber informações claras, apoio material/financeiro/emocional, garantias de que as regras estão sendo aplicadas e seguidas por todos e assim por diante.

A verdade é uma só: Não existe responsabilidade estritamente individual por questões coletivas.

Somos todes responsáveis por ajudar e fazer nossa parte. Mas nesse mundo extremamente desigual, no qual alguns vão de helicóptero para o pronto socorro e outros morrem desamparados e assustados, não adianta achar que todos temos a mesma parcela de culpa no problema (muito menos o mesmo poder de resolução). O potencial de destruição que eu e você temos em nada se compara com a destruição causada por aqueles em posição de poder.

A não monogamia e o pensamento no coletivo

O desafio, para nós que nos definimos poliamorosas, que nos denominamos não-monogâmicas, é elaborar um novo sentido de vínculo e um novo sentido de liberdade que escape das garras do neoliberalismo, que retome a consciência de estar-no-mundo […] (“Abrir amores, fechar fronteiras?” ~ Brigitte Vasallo)

Falo muito sobre liberdade aqui na Afetos. Particularmente, eu acredito que os 4 pilares da não-monogamia são a honestidade, a comunicação, a privacidade e a autonomia. Tenho genuína preocupação em evidenciar a capacidade de cada pessoa de escolher seus próprios caminhos e de se libertar da estrutura monogâmica.

Mas voltando ao começo dessa reflexão, para a citação de Sérgio Lessa, não devemos aceitar a liberalização das nossas pautas. Autonomia não é individualismo, não importa o quanto tentem mesclar os dois significados.

Não, como colocado acima, devemos seguir Brigitte Vasallo na criação de um novo sentido de liberdade que escape das garras do neoliberalismo. A “liberdade” que fere a outra pessoa é apenas egoísmo e está muito longe da ideia de coletividade, tão presente na Não-Monogamia.

“Dito isso, como podemos exercer a NM em tempos de crise pandêmica?”

Acredito que primeiramente precisamos entender que somos todes seres humanos, temos necessidades que muitas vezes atravessam nossas melhores aspirações e virtudes. Todes precisamos de afeto, contato, de calor e aproximação. Tá difícil para todo mundo, então não se recrimine se sentir que precisa de ajuda. E essa “força” pode vir de diversas maneiras, aquela pessoa que precisa sair para transar é tão legítima quanto aquela que precisa de um colo para chorar. Somos seres diferentes, cada pessoa sabe onde aperta seu calo.

Em segundo lugar, vale lembrar que momentos assim são um dos motivos pelos quais investimos na criação de uma rede de afetos. Essa rede é mais do que uma lista de pessoas para “dar rolê” sábado a noite, toda essa parceria foi cultivada para que seja possível o compartilhamento não só da diversão, mas também das dores. Portanto não tenha medo de acionar essa rede das formas mais diversas, para desabafar, para pedir indicação de profissionais de saúde mental, para fazerem um encontro via vídeo chamada no final de semana, para jogarem online e assim por diante. Você não está sozinhe.

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“Certo, e sobre encontros reais, sobre quebrar o isolamento, como faço para ver alguém da minha rede de afetos e ao mesmo tempo respeitar o coletivo?”

Bom, por experiência própria, e também aprendendo com a experiência de outras pessoas, acredito que seja possível sugerir alguns cuidados a serem levados em conta na hora de planejar qualquer tipo de encontro*[2]:

  • Em primeiro lugar, deixemos algo claro: Infelizmente você não vai poder estar com todas as pessoas da sua rede. Algumas tem comorbidades, outras dividem a casa com pessoas que possuem comorbidades, outras são obrigadas a trabalhar em locais de alto risco de contágio e etc… Bom senso em primeiro lugar. Nem tudo é possível, muitas das nossas vontades vão ter que esperar até o “fim” da pandemia;
  • Locais públicos não rolam: passamos da fase da pandemia que ainda era possível cogitar um barzinho vazio ou uma volta no parque. A situação é crítica e indiferente de quem sejam os culpados por chegarmos nessa situação, é dever de todos nós fazermos nossa parte para não agravarmos o problema. Não dá para arriscar rolê na rua, precisamos nos proteger e dar exemplo também. Se o/a/le crush, afeto ou amigue não tem um local privado nem você, é uma pena, mas aconselho segurar mais um pouco;
  • Evitar transporte coletivo: entendo que para muitos isso é um tremendo privilégio e é compreensível se você não tiver opção. Mas se você tiver qualquer oportunidade de fazê-lo, por favor faça. Gastar um pouco mais de Uber, pedir carona, ir de bicicleta, andar….existem alternativas por aí;
  • É imprescindível dar tempo entre os encontros: básico, né, galera. Dessa forma você garante que não está infectado, ou caso esteja assintomático, garante não passar a doença adiante ao esperar o tempo de manifestação e contágio em isolamento. O ideal são 2 semanas, ok?;
  • Ver se a pessoa está respeitando a quarentena: tudo isso não adianta nada se o outro lado não fizer sua parte. Por exemplo, eu utilizo bastante aplicativos de encontro. Mas nesse momento, não dá para trombar alguém que eu acabei de dar match no Tinder. Eu preciso confiar na pessoa que eu estou marcando alguma coisa e isso leva certo tempo e convivência;
  • Honestidade com as pessoas da sua rede: esse é o comportamento mais importante de todes. Isso só vai funcionar minimamente com muita honestidade. Não dá para “dar migué” nos outros porque a gente “acha que nada vai acontecer”. Digamos que você marcou algo com antecedência, ficou 2 semanas em casa respeitando a quarentena, constatou não ter nada e tá pronto. Contudo, um dia antes do rolê você dá azar, é convocado pro escritório e passa o dia inteiro em reuniões com salas lotadas e alta circulação de pessoas. Nesse caso você tem que contar isso para pessoa que você pretende encontrar. Mesmo que você tenha se protegido, usado mascará, álcool gel, dado distância entre você e as outras pessoas, ainda assim, é sua obrigação ter honestidade e dar a opção de escolha para a outra pessoa também;
  • Honestidade consigo mesme: e por fim, não tente se enganar. Continuando no exemplo acima, se você sentiu que não conseguiu se proteger, havia várias pessoas sem mascará na reunião, a sala não dava espaço para distanciamento e etc…não brinque com a sorte, melhor cancelar você mesme o encontro. Vai ser frustrante mas vai ser o certo a se fazer. Mais cedo ou mais tarde tudo isso vai acabar, zele pela sua vida e das pessoas a sua volta também;

Importante dizer que tudo isso foi pensando da perspectiva de alguém que vive uma anarquia relacional, que não tem relações nucleares, que não coabita com ninguém, que paga suas contas sozinho e assim por diante. Se você tem um relacionamento nuclear, talvez o cenário mude um pouco. Especialmente se existem questões materiais entrelaçadas, como coabitação e filhes por exemplo. Não acredito que ninguém tem o direito de vetar a outra pessoa em nada, mas estamos numa pandemia, não são tempos normais. Se você mora junto do seu afeto ou amigue por exemplo, e essa pessoa te pede para cancelar os dates nesse momento, você vai ter que respeitar e acabou.

Cada caso é um caso, analise com muito cuidado e responsabilidade, lembre-se do coletivo e tenha bom senso.

E nunca se esqueça que nossas relações são um ato político. Entenda que apesar da tentativa de cooptação por parte do liberalismo, a NM é uma bandeira de esquerda, revolucionária e antissistêmica. E você também faz parte dessa luta agora.

*[1]: Digo “aglomerações desnecessárias” porque os protestos contra o Governo Bolsorano que tem ocorridos, por exemplo, são totalmente necessários.

*[2]: Sei que essa é uma parte polêmica do texto. Para muitas pessoas não devemos sair de casa em hipótese alguma e ponto final. Eu entendo essa perspectiva e gosto de reforçar que se você puder não sair de casa, não saia por favor. Se for possível suportar o isolamento mantendo o mínimo de sanidade mental, é melhor diminuir ao máximo as incursões na rua. No entanto é importante olharmos para nossa realidade material e objetiva. Aqui no Brasil os isolamentos não foram implementados corretamente, a “preocupação econômica” foi maior que o combate contra a pandemia, a compra de vacinas foi negligenciada e até pouco tempo atrás não existia nenhuma perspectiva de possível data para a imunização de toda a população. Hoje em algumas regiões do país já temos um calendário mais estruturado, mas está longe de ser ideal e definitivo. Ou seja, nessa situação de incerteza e desespero é totalmente irreal achar que as pessoas não vão quebrar o isolamento em algum momento, e como forma de tentar ajudar a minimizar danos, achei importante dar “dicas” de como fazer essa quebra com o máximo de segurança e respeito ao próximo. Não é incentivo, é apenas bom senso.

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André Luiz
Afetos Insurgentes

Comunista, Comunicador Social, Especialista em Mídia, Pós-Graduado e Não-Monogâmico.