Por que sentimos, vivemos e pensamos como casais — monogâmicos ou não

Não há nada de “natural”: o discurso psicologizado dominante sobre nossas necessidades, sentimentos e relações tem poder normativo.

Anita B.
Afetos Insurgentes
14 min readJul 27, 2022

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Silhuetas de casais coloridas, cada casal dentro de uma caixa contornada em preto. Fundo amarelo.

"Aqui estamos no alvorecer de um novo milênio, ainda valorizando a crença de que ser parte de um casal representa uma parte central do ser humano." - Yalom e Carstensen (2002:1)

Relações românticas, em casal e suas variações são vistas como parte natural, essencial e central da vida. Porém, ao nos engajarmos nelas, às vezes não parecem tão naturais assim. Nos deparamos com dificuldades, conflitos e fracassos. Então, buscamos amigos, grupos, livros e profissionais que possam nos ajudar, que nos oferecem conselhos, conceitos, modelos, exemplos, metas e objetivos: todo um conhecimento acerca dessas relações. No entanto, esse conhecimento, na verdade, não é apenas um auxílio. Ele é em si mesmo uma produtor, regulador e organizador das nossas experiências interiores e relacionais.

É assim que Mark D. Finn, pesquisador estadunidense, analisa o fenômeno “casal” — a partir do conhecimento, e mais especificamente dos discursos que o produz e o sustenta. Em sua tese “The Discursive Domain of Coupledom: A post-structuralist psychology of its productions and regulation”, [O Domínio Discursivo do Ser Casal: Uma psicologia pós-estruturalista de suas produções e regulação, em tradução livre] ele desenvolve, usando diversas abordagens, uma análise e crítica dos discursos psi sobre o casal, e é esse trabalho que nos servirá como guia para uma exploração e reflexão (que será divida em uma série de textos publicados separadamente) sobre uma entidade quase inabalável: o casal.

O discurso dominante psicologizado e como ele exerce poder normativo e normatizante

Para começar, o que queremos dizer com “discurso”? Bem, como nos explica Finn, um discurso — mesmo com suas contradições internas e os aparentes avanços e "modernizações" que por vezes ocorrem — , pode ser identificado como um conjunto de conhecimentos sobre determinada coisa, que vai sendo construído e estabelecido ao longo do tempo. Não são, como se poderia pensar, “palavras e frases isoladas”: é o discurso que define o que e como podemos falar e pensar sobre o que somos, fazemos e sentimos. A questão não é (apenas) de imposição: nós somos formados, como seres pensantes e desejantes, por esses próprios discursos. E, como os discursos competem entre si, alguns se tornam tão dominantes a ponto de atingirem o status de “verdade”.

Além disso, como bem sublinhava o filósofo francês Michel Foucault, o poder não é mais apenas exercido de maneira autoritária e punitiva, ou seja, negativa. Ele é exercido cada vez mais (em paralelo à sua forma negativa) por meio de discursos e recomendações positivas, que aumentariam a nossa felicidade, liberdade e autenticidade. Ou seja, o discurso não apenas tem poder por ter status de “verdade”, mas também porque define as possibilidades do que é bom para nós mesmos, e quais comportamentos são melhores ou piores nesse sentido.

Atualmente, uma das principais (ou talvez a principal) áreas onde são produzidos discursos com status de verdade sobre nosso modo de vida é a psicologia. Ela nos fornece conhecimento, modelos, padrões, diagnósticos, avaliações, tratamentos e recomendações no quesito da saúde mental, e busca compreender e tratar distúrbios, sintomas, aspectos, comportamentos e condições psicológicas e/ou melhorar a nossa satisfação, felicidade e sucesso no campo pessoal e profissional. Para isso, ela cria e reproduz discursos com efeitos normativos.

A normatividade do discurso psicológico mainstream e “alternativo” sobre nós e nossas relações

A psicologia como campo de conhecimento e atuação surge em um momento em que se passa a diferenciar as pessoas “normais”, ou “mentalmente saudáveis”, das pessoas “loucas”, com doenças ou que podem ou não ser tratadas. Com isso um padrão de normalidade é estabelecido pelo discurso e práticas desse campo. Ela diferencia aquilo que é normal, saudável, desejável daquilo que é patológico, um distúrbio ou um desvio a ser corrigido, resolvido, curado ou, mais singelamente, tratado, adaptado, gerenciado, manejado. Esse processo acontece, marcadamente, no campo da sexualidade e dos desejos, como destaca Foucault em sua obra História da Loucura.

Mark D. Finn nos mostra na primeira parte de sua tese que um desses padrões de normalidade se mostra muito claramente no discurso da psicologia tradicional: relações afetivo-sexuais a dois, onde há segurança/ estabilidade, intimidade e compro­misso — ou seja, os casais monogâmicos. Isso, diga-se de passagem, não é novidade para muitas pessoas não-monogâmicas, que já sofreram discriminação de psicólogos e psiquiatras. Esses profissionais, ao saberem que os pacientes mantinham relações afetivo-sexuais múltiplas, caracterizaram aquilo como um sinal de algum defeito ou patologia: um comportamento fora do esperado ou desejado para uma pessoa emocionalmente saudável.

Nessa vertente mainstream, estão aqueles psicólogos clínicos e teóricos da psicologia tradicional, bem como indivíduos que reproduzem esse discurso, que sustentam que “casais não-monogâmicos” não podem oferecer o mesmo nível de intimidade, compro­misso, segurança e estabilidade. Consequentemente, segundo essa visão, os "casais não-monogâmicos" não são casais propriamente ditos, mas aberrações, distorções ou incompletudes.

Por volta dos anos 70 surgiu uma outra vertente da psicologia, que passou a integrar e até mesmo exaltar as relações abertas e, depois, o poliamor. Psicólogos especialistas em relação de casal passaram de “terapeutas de casal” para “terapeutas de casais não-monogâmicos”, o que, para algumas pessoas foi visto como um avanço. No entanto, apesar da aparente quebra de paradigma, nessa vertente as bases do discurso mainstream sobre o casal são não apenas perpetuadas, mas fortalecidas. Falaremos, em um próximo texto, sobre essa vertente “alternativa” da psicologia, sua conformidade com o discurso do casal e análises e críticas de Finn a esse respeito.

Antes, vamos falar sobre as bases do discurso normativo sobre o "ser-casal", que passaram a ser naturalizadas e perpetuadas como óbvias e desejáveis — o que faz com que, mesmo quem busca relações sem centralização e hierarquias (e até mesmo quem questiona a própria formação de casais), acabe medindo, construindo e avaliando essas relações sob os os mesmos critérios do casal monogâmico. Por que seguimos utilizando elementos do discurso que produz e reproduz os casais, sejam eles fechados ou abertos? Por que não abrimos mão desses elementos do discurso e da prática do casal, ainda que, conscientemente nos proponhamos a fazê-lo?

Bem, de acordo com a análise de Finn, é porque não são elementos que adotamos (apenas) "racionalmente", por escolha própria, para pensarmos e aplicarmos em nossas relações afetivo-sexuais. De maneira mais estrutural, esse discurso dominante determina como descrevemos e entendemos o que sentimos e desejamos no campo afetivo-sexual. Não é um discurso "sobre" as nossas relações e sentimentos: é a própria linguagem que usamos.

Vamos ver, então, quais são esses componentes. Assim, posteriormente, poderemos identificar o que é meramente uma reformulação dos casais monogâmicos e o que poderiam ser, de fato, dissidências e resistências.

Os componentes do discurso e da prática do “casal”

No segundo capítulo de sua tese, Finn descreve o que chama de “arquitetura psicológica da condição de casal”, segundo a teoria e a pesquisa tradicionais da psicologia. São as qualidades e práticas que são colocadas como “típicas” ou “normais” e usadas para avaliar se uma relação de casal é “saudável” ou “bem-sucedida”. Essa linguagem é normalizada a ponto de se tornar a linguagem que usamos para nos relacionar com “parceiros” e com nós mesmos, tornando “certos efeitos de poder possíveis”. Finn elenca quais seriam esses “componentes normatizadores” — conceitos que pelo seu aspecto técnico e prático são denominados “tecnologias”:

  1. Apego/ligação
  2. Segurança
  3. Compromisso
  4. Confiança
  5. Intimidade

Essas tecnologias começaram a ser pesquisadas, teorizadas e utilizadas no final dos anos 30, numa “investigação científica” dos preceitos de ligações românticas estáveis e casamentos “de qualidade”. Essa investigação era positivista e empirista, ou seja, acreditava que poderia medir, aplicar métodos e extrair conhecimento “objetivo”, desenvolvendo uma “metodologia” para definir a relação de casal . Assim, um tipo de relação específico “real e existente” é “descoberto”, e logo é desenvolvida uma metodologia para “investigar” esse tipo de relação. Ou seja, tanto o objeto da pesquisa quanto a maneira de investigá-la e avaliá-la são definidos segundo os mesmos parâmetros. A crítica a esse tipo de “investigação” e seus “objetos”, “parâmetros” e “resultados” é que elas não poderiam nunca ser puramente objetivas: seriam sempre, ao menos parcialmente, reflexos das preconcepções dos autores da pesquisa e do contexto social, cultural, econômico e político em que vivem. Não só a própria escolha de investigar aquilo que é chamado casal é definida cultural e socialmente, mas os métodos, resultados e subsequentes, também o são.

Vejamos, a seguir, como foram conceituados esses componentes e como eles efetuam seu poder de maneira normatizadora:

1. Apego/ligação

créditos da imagem: Healthline

Uma das teorias "empíricas e experimentais" criadas nessa época foi a famosa Teoria do Apego, que mais tarde recebeu o título de "nova ciência dos relacionamentos". Ela estabelece que a relação da criança com a mãe é um "modelo psicossocial para 'laços' adultos de amor romântico". Segundo Finn, essa teoria deu forma ao campo da terapia de casal e de suas prescrições para a proximidade emocional, através de uma reificação biológica que toma como naturais as as consequências de construções culturais de amor, infância e parentalidade:

[O que a Teoria do Apego classifica como "apego saudável" é a aplicação de uma] "moralidade tradicional que se refere à segurança e 'bem-estar' das pessoas dentro das instituições família e casamento e as obrigações, previsibilidades e estabilidades interpessoais requeridas para sustentá-las".

Essa sistematização moral dos laços afetivos parte do pressuposto que a relação mãe-filho saudável é: "afetuosa, responsiva, permanente, exclusiva e diádica [ou seja, entre dois indivíduos]", e que essa ligação afetiva estabelecida na infância será a base para todas as outras relações.

Essa ligação chamada "apego seguro" tem duas características definidoras:

  • Refúgio seguro: ter confiança numa mesma figura para conforto contra a ameaça e perigo.
  • Base segura: a figura de apego serve como base para a exploração, sendo ela o lugar de onde partimos e para onde sempre retornamos.

Assim, a Teoria do Apego, na prática, se configura como uma forma de governança: desejamos segurança e refúgio, e para isso requeremos uns dos outros obrigações de responsabilidade mútua. Tal discurso estabelece, para Finn:

"um desejo domesticado e domesticador por segurança, conforto, um sentido de lar, e uma necessidade básica de amor que seria satisfeita por indivíduos 'saudáveis' em ligações diádicas saudáveis, moralizadas e domesticadas em relacionamentos apegados."

Essa teoria passa a abarcar e conceitualizar "toda a gama de experiências de amor romântico", presumindo que queremos "naturalmente" ter a experiência típica "romântica" e "apegada" de casal.

O discurso da Teoria do Apego, Finn destaca, cria uma dicotomização Separação-Apego, que corresponde ao indivíduo solitário [solteiro] versus o indivíduo em casal [em um relacionamento]. Nessa perspectiva, o amor romântico não é uma "invenção sócio-cultural", e sim um "processo biológico desenhado pela evolução para facilitar o apego entre parceiros sexuais adultos". Essa conceitualização sofreu (e ainda sofre) extensa crítica feminista, que enfatiza a construção social do amor e das emoções.

2. Segurança

Posteriormente, a Teoria do Apego passa a incorporar e ser incorporada pelo pensamento econômico neoliberal, que cria uma dicotomia de duas esferas da existência humana: a esfera pública versus a esfera privada. Em seguida, busca um equilíbrio “racional”: entre aquilo que é público, relacionado à dependência, e aquilo que é privado, relacionado à autonomia. Dentro do discurso da forma-casal, isso corresponde à dicotomia intimidade do casal versus autonomia individual.

Esse equilíbrio “racional” é feito pelo próprio indivíduo, ou seja, a governança é exercida por meio da auto-regulação do próprio sujeito, que busca então “atingir a liberdade em relações e identidades estáveis e seguras”. Finn destaca que essas relações "estáveis e seguras" e nosso esforço para nos mantermos "estáveis e seguros" para que possamos mantê-las, por sua vez, “nos torna dóceis, governáveis e nos mantém produtivos”.

É nesse contexto que são desenvolvidos nos discursos psi dominantes os conceitos de segurança, estabilidade, compromisso e intimidade dentro da esfera do casal.

Segurança e estabilidade são qualidades injetadas em várias questões de cunho político, econômico, social, relacional e ambiental, em especial no neoliberalismo. Na psicologia não é diferente: o sujeito, suas emoções e vida privada são securizadas e estabilizadas.

Podemos ver a segurança cruzando todos os aspectos da nossa sociedade "securitizada": há um conforto naquilo que é familiar e o que é estranho passa a ser evitado. A nação, a família, o casal, o condomínio, o lar, tudo que está dentro dos muros é seguro. Em contrapartida, o estrangeiro, imigrante, refugiado, os amantes, os filhos fora do casamento, a rua, o espaço público, tudo isso é potencialmente inseguro e, até mesmo, ameaçador à nossa integridade física e emocional. Como vimos, a Teoria do Apego reproduz essas noções nos conceitos de "Refúgio Seguro" e "Base Segura" — primeiramente dentro da família nuclear, na figura da mãe, e depois no casal, na figura do parceiro fixo.

Já a estabilização do casal é pensada em outro paradigma: não aquele instintivo, biológico e emocional da Teoria do Apego, mas no paradigma interacional, onde o foco não é o "refúgio" emocional "saudável" que uma pessoa "saudável" com "apego seguro" provê, mas na estabilidade construída na própria interação entre dois indivíduos: uma interdependência baseada na racionalidade e no equilíbrio econômico. As relações passam a ser medidas em "custo-benefício", e a interdependência é incorporada como mais um eixo do campo dominante da terapia de casal. Os componentes-chave da estabilização são: o compromisso e a confiança.

3. Compromisso

Nos anos 1960, pesquisadores notaram que "casamentos estáveis (e duradouros) não são necessariamente aqueles que são felizes". É feita uma distinção, portanto, da qualidade emocional da relação versus a estabilidade da relação. Uma relação estável é definida, obviamente, como "diádica, exclusiva e permanente".

É aí que o componente estabilidade, aquele capaz de "segurar o casamento", é formulado, de maneira a engendrar uma dimensão que está sob controle dos indivíduos: casais podem medir o nível de compromisso da relação e trabalhar nele. Assim, podem gerenciar a manutenção de suas parcerias, responsabilizando-se pelo sucesso da relação "em vez de, simplesmente, sentir-se feliz nela".

A "missão psi", nesse momento, segundo Finn, é dupla:

  • prescrever o que significa "compromisso", e
  • identificar "comportamentos de manutenção".
  1. Definição de "compromisso"

Segundo Finn, a definição adotada pela psicologia dominante de compromisso tem três aspectos:

  • Pessoal: a intenção de continuar na relação, baseada no desejo e percepção de recompensas — "querer estar"
  • Moral: o dever moral de cumprir obrigações — "dever estar"
  • Estrutural: permanecer na relação por limitações devidas a fatores externos — "ter de estar"

2. Manutenção

Essa noção de compromisso presume uma preferência universal por relações de exclusividade, que se sucedem, uma a uma, em série (e não simultaneamente), estabelecendo um "isto-ou-aquilo": para ter compromisso, você deve escolher entre uma relação ou outra.

O sujeito é visto como empreendedor, gerindo suas relações baseando-se nas noções [neoliberais] de liberdade e sua segurança: livre para escolher e construir a sua segurança — e, para diminuir o campo das escolhas, as "alternativas atraentes" são colocadas como meras "alternativas", (distanciando-as racionalmente da dimensão onde se tornariam escolhas de fato) e são, preferencialmente, evitadas.

Estes são, portanto, os efeitos de poder dessa nova camada do discurso psicologizado do ser-casal: a prescrição e manutenção do "compromisso" na relação de casal — que busca não a mera felicidade e o laço emocional, mas o sucesso e a estabilidade.

4. Confiança

A confiança é conceituada pela pesquisa e pratica psi mainstream como uma série de componentes que fazem a relação "avançar":

  • A previsibilidade da pessoa com quem se tem parceria
  • O poder contar com ela
  • A fé/crença nela e que ela cumprirá o compromisso/promessa feita

Essa confiança é, obviamente, definida em termos diádicos, ou seja, há a presunção de que o sujeito deseja relações: monogâmicas, exclusivas e permanentes. Além disso, ela requer que cada indivíduo da parceria adote e execute consistentemente obrigações e atos regulatórios para que seja considerado confiável e confiado.

Essa "confiança de casal" requer subjetividades coerentes e transparentes e comportamentos consistentes e comunicados. Não se trata apenas de uma disposição, mas de pensamento consistente, movimento previsível e conduta regular — caso contrário, é feito um julgamento moral no qual a pessoa não é considerada confiável. São solicitações não apenas individuais, mas culturais e morais, que têm pretextos sócio-econômicos e políticos mais amplos: funções para monitorar e regular cada detalhe de pensamento, conduta e consciência dos sujeitos.

Finn conclui que a psicologia social voltada para essa investigação e manutenção do casal coloca o apego emocional, o compromisso e a confiança como componentes que levariam a parcerias seguras e realizadoras, fazendo consequentemente uma prescrição de como nos conduzirmos com ume parceire. Ele os descreve como processos psicologizados, formas estratégicas de poder que atuam por meio das práticas discursivas da psicologia e, em última instância, componentes social e psicologicamente normalizadores e disciplinadores no campo das relações de casal.

Por fim, vamos ver o último componente identificado por Finn, um importante e poderoso componente: a intimidade de casal.

5. Intimidade

"Intimidade", segundo Finn, é um termo vago empregado na psicologia, que diz respeito à conexão emocional e/ou sexual diádica. Algo que "naturalmente" desejamos, precisamos e buscamos. Os sujeitos psicologicamente saudáveis, emocionalmente maduros e "bem equipados" para o "amor verdadeiro" seriam aqueles capazes de expressar intimidade "verdadeira" e recebê-la de volta sem reserva.

O que compõe a intimidade?

  • Sentimentos de proximidade afetuosa
  • Pensamentos e sentimentos revelados ao outro
  • Interação não-verbal como toque e proximidade física
  • Atividade sexual

A díade romântica, a relação a dois, é (como de costume) priorizada fortemente como o contexto para a completa expressão da proximidade íntima.

No campo da psicologia e nos casais/sujeitos psicologizados, a intimidade se torna mais uma medida para refletir e avaliar a qualidade e a satisfação da relação. Finn destaca que a intimidade como componente imprescindível do casal marca uma mudança cultural, passando da moralidade da monogamia sexual para uma ética da emoção e com isso uma mudança das forças de regulação.

A intimidade se dá através da tecnologia da auto-revelação: é esse o aspecto primário das definições multidimensionais da intimidade. A intimidade é medida pelo número de "facetas da personalidade" reveladas ae parceire, bem como a profundidade dessas revelações.

Essa tecnologia presume que os indivíduos têm um self autêntico e estático, que eles têm segredos e verdades que podem ser revelados e objetivamente conhecidos. A realidade e autenticidade "genuínas" dependem da ficção que é "sujeito auto-conhecedor". O "sujeito íntimo", nesse discurso, é confessador, visível e emocionalizado e são feitas prescrições comportamentais para a completa expressão dessa subjetividade.

As investigações que levaram a esse "modelo global de intimidade" tem foco exclusivo em casais diádicos, monogâmicos e heterossexuais e foram conduzidas, não surpreendentemente, com um público majoritariamente composto por pessoas brancas, de classe média, universitárias e norte-americanas — um público que tem uma preferência cultural por altos níveis de proximidade emocional.

A intimidade é mais uma das tecnologias relacionais e subjetivas, em que o que se faz e o que se é é integral para o "sucesso" do casal.

Reflexões finais

Podemos ver na análise de Finn que os componentes da arquitetura da condição de casal não são comportamentos "naturais" observados "objetivamente" por cientistas, e sim práticas discursivas com contextos e utilidades específicas: o neoliberalismo e a família nuclear branca de classe média. O discurso do ser-casal forma sujeitos previsíveis, regulares, transparentes e que na busca pela segurança e intimidade que "apenas o casal" pode fornecer, eliminam qualquer chance de pensamentos e experiências que saiam daquilo que é socialmente previsto e conveniente.

Acredito que muitos de nós, que nos identificamos como não-mono, ao lermos a análise feita por Finn até aqui já tenhamos identificado o quanto usamos e promovemos esses elementos em nossas relações íntimas, como se fossem “óbvios” e “necessários”. Pois bem: como Finn mostrará ao longo do restante de sua pesquisa, os casais não-monogâmicos (e os discursos psi que os acompanham), longe de divergir dos parâmetros e componentes do casal monogâmico clássico, irão reciclá-los e, muitas vezes até mesmo elevá-los e potencializá-los. É o que veremos no próximo texto, que abordará o que Finn chama de "Uma liberdade 'alternativa'", se referindo aos casais não-monogâmicos e o discurso dos teóricos da psicologia humanista dos anos 70 a respeito dessas experiências.

Referência:

Mark D. Finn. The Discursive Domain of Coupledom: A post-structuralist psychology of its productions and regulations. University of Western Sydney, 2005. (link)

Imagens:

https://unsplash.com/

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