Reflexão: Jout Jout e o Amor Livre

André Luiz
Afetos Insurgentes
Published in
10 min readAug 9, 2021

Articulando uma visão NM política nas entrelinhas de um discurso pró-monogamia

Screenshot do vídeo “Estamos preparados para viver um relacionamento aberto?” (canal da GNT)

Recentemente a Youtuber e Influenciadora Digital Jout Jout lançou o vídeo abaixo sobre Amor Livre no canal da GNT. Vídeo esse que foi bastante comentado pela comunidade NM em todos os cantos da rede, e que (infelizmente) nós aqui da Afetos consideramos bastante desinformativo e equivocado.

Sabemos que em outras áreas Jout Jout tem uma produção de conteúdo bastante sólida, angariando milhões de fãs, muitos deles dentro da própria comunidade não-mono. Sendo assim é importante entender que nós não queremos demonizar todo o seu trabalho e nem passar a impressão que temos qualquer coisa contra ela, pelo contrário.

Mas achamos importante fazer essa crítica a esse vídeo específico pois trata-se de uma das maiores influenciadoras digitais do país levando a discussão sobre amor livre para o mainstream de maneira bastante banal.

Antes de entrarmos no que interessa…

Esse não é primeiro vídeo que Jout Jout faz sobre o tema. No final de 2016 a Youtuber terminou um relacionamento de anos (com seu colega de trabalho Caio), e ao falar sobre o término também aproveitou para revelar que os 2 tinham uma relação aberta. A revelação repercutiu de maneira bastante negativa, o que fez a influenciadora postar um segundo vídeo (esse que está acima) explicando de maneira detalhada sua visão sobre Relações Abertas e como havia sido sua experiência.

É uma visão bastante liberal, que acredita não existir nada de errado na opressão monogâmica e que suporta a implementação de acordos limitantes aonde cada casal deve ser responsável por criar suas próprias regras e decidir o que configura uma traição. Por outro lado, ela também distribui provocações interessantes sobre os comentários idiotas acerca do seu relacionamento, deixando claro que existem muitos julgamentos moralistas nessa discussão.

Algo que me chamou bastante atenção é a afirmação da mesma de que ela e Caio haviam se preparado bastante antes de abrir a relação, estudando todo o tipo de materiais sobre o assunto por anos. Fico me perguntando quais foram as fontes que eles estudaram? O vídeo é de 2017 e aparentemente a abertura aconteceu em 2016, portanto acredito que a NM política ainda era uma ideia distante e que Relações Abertas configuravam (mesmo para uma faixa de publico mais bem informada) o ápice dos modelos relacionais Não-Monos conhecidos.

Todavia, passaram-se 4 anos e meio e nesse novo vídeo vemos que a opinião da produtora de conteúdo não se desenvolveu quase nada. Na verdade, sinto que até piorou em certos aspectos. Antes ela demonstrava uma visão positiva, dizendo que aprendeu bastante com a experiência e que não se arrependia. Porém agora ela demonstra bastante incredulidade no assunto. Sabemos que atualmente ela produz para o Canal da GNT então fica a dúvida se isso alterou os rumos do seu conteúdo ou não.

…vamos então ao que interessa.

Bora esmiuçar essa bagaça…

Para facilitar a análise irei quebrar as falas da Jout Jout, destacando as que considero mais importantes e comentando separadamente cada trecho:

“Esses dias eu estava lendo um negócio sobre relacionamentos. Era assim, falava que nós humanos já estamos num nível de consciência em que a gente como grupo, como time que somos, ‘os terraqueos’, a gente já acessou a consciência de que talvez a gente ache boa a ideia de se relacionar com mais de uma pessoa por vez.”

O vídeo já começa confuso, fazendo uma alusão a uma suposta “consciência humana universal”. De onde vem esse conceito? Como se manifesta esse nível de consciência que atravessa a todos e cria uma narrativa global? Infelizmente nada é explicado, fica apenas uma informação vaga, sem contexto e tirada de fontes obscuras.

Outra coisa que essa afirmação ignora são dados históricos. Maneiras não-monogâmicas de se relacionar não são nenhuma novidade e já aconteceram em diversas civilizações ao redor do globo*[1]. Não é porque agora o ocidente mainstream resolveu “retomar” a ideia que isso é novo. Ou seja, o discurso logo de cara demonstra não ter nenhuma base teórica ou estudos mínimos (e segue assim até o final do vídeo).

“Mas então porque que geralmente as histórias acabam em caos, e sofrimento, e desespero e agonia quando tentam abrir a relação?”

De onde ela tirou esse dado? Com base em que ela fez essa afirmação? O mais provável é que ela esteja inferindo da sua própria experiência pessoal (que talvez ela não considere bem sucedida), juntando também alguns casos do seu circulo de convivência e extrapolando.

Eu já estou nesse caminho a alguns anos, convivo intensamente nos locais de debate, sou super inserido na rede não-mono e posso afirmar com tranquilidade que não dá para saber se a maioria das relações NM dão certo ou não. Primeiro, porque não temos nenhum tipo de pesquisa ou estatística sobre o assunto. Segundo, porque nesse caso não existem parâmetros para definir o que seria “dar certo”.

Diferente da monogamia que tem uma linha rígida de progressão (ficantes, namoro, noivos, moram juntos, casamento, adquirem bens e criam filhes) cujo término só acontece com a separação ou a morte, relacionamentos NM se adaptam e se transformam constantemente. O que não significa que não tenham problemas, mas sim que não podem ser medidos pelos mesmos padrões das relações tradicionais*[2].

“E isso porque nesse texto que eu li dizia que o nosso estado de consciência como está suporta bem uma pessoa por vez, porque a gente não aprendeu uma coisa muito importante pra fazer comportar mais gente que é ser integralmente verdadeiro com todos os seres que você se relaciona”

Mais uma vez temos a alusão ao “estado de consciência universal” que aparentemente faz todo mundo pensar igual. É tão bizarro que nem vale a pena explorar isso novamente. Vamos nos debruçar sobre o resto da fala.

Então de acordo com essa “consciência universal”, o que nos falta para que possamos ter relações múltiplas (e “bem sucedidas”) é sermos completamente honestos com todo mundo. Ok, aqui cabem alguns apontamentos.

Primeiramente, é muito normal numa sociedade pautada pela moralidade cristã que comportamentos como honestidade e transparência sejam elevados ao nível de virtudes divinas, ou seja, que não podem ser ensinadas, que nascem conosco (ou não). Mas isso é uma irracionalidade sem cabimento. Falar a verdade, ser sincero e aberto nas suas relações são condutas que podem ser aprendidas por qualquer um. E é isso que pregamos dentro da NM, que através do estudo da teoria, do acolhimento da comunidade e dá pratica diária, podemos aprender a sermos muito mais honestos com todos a nossa volta (sem a necessidade de esperarmos a boa vontade da “consciência universal”).

Em segundo lugar, essa imposição de completa honestidade com todes o tempo inteiro ignora diversas dinâmicas sociais de poder e perigo. Infelizmente não estamos numa posição de sermos 100% transparentes. Não é incomum que pessoas com práticas e/ou identidades destoantes da norma sofram represálias sociais simplesmente por serem quem são. É o que acontece com um filho que revela ser Gay e é expulso de casa ou uma candomblecista que passa a ser assediada no trabalho quando descobrem sua religiosidade, por exemplo. Para se ter uma ideia, já ouvi relatos de mulheres que escondem sua não-monogamia pois tem medo de perder a guarda dos filhes.

E de qualquer maneira, mesmo que a pessoa não sofra nenhum risco ao expor sua vida aos 4 cantos, ainda existe aquilo que chamamos de “direito a privacidade”. Oras, comunicação e abertura são importantes, mas não devem ser algo forçado. Isso na verdade é uma atitude bastante monogâmica que acontece com casais. Privacidade é um direito que a monogamia sempre desrespeitou e /ou usou como moeda de barganha para “bom comportamento”. Como se a pessoa tivesse que provar ser digna de confiança para ter direito ao seu espaço pessoal. Ninguém é obrigado a passar relatório da sua vida para ninguém, muito menos criar uma newsletter com o seu cronograma diário para que todos os afetos se sintam igualmente informados e “mais seguros”*[3].

A consciência universal nos guindo para sermos….monogâmicos.

“Ai por isso que dizia no texto que melhor pros humanos, nesse nível de consciência de agora, 1 pessoa por vez. O que é interessante que a gente passou de uma por vida, para uma pessoa por vez…já é um caminhar pra 2 pessoas por vez, 3…”

E aqui o viés do vídeo se revela né. De acordo com os critérios arbitrários e mal explicados, somos melhores sendo monogâmicos. Uma conclusão nada surpreendente dada a qualidade do debate.

Outra coisa interessante é a visão positiva colocada naquilo que chamamos de “monogamia serial”: expressão usada para se referir ao hábito monogâmico de pular de um relacionamento para outro. Realmente, falando de uma perspectiva histórica, é fato que houve uma evolução quando lembramos que a nem tanto tempo atrás os dizeres “até que a morte nos separe” eram levados a ferro e fogo. A legalização do divórcio é um marco importante (e uma vitória do movimento feminista). E para além disso, já é comum que tenhamos diversos “relacionamentos sérios” ao longo da vida.

Dito isso, essas separações e “recomeços” (quando analisados criticamente) só demonstram a fragilidade da estrutura monogâmica, que está muito longe de conseguir comportar nossos anseios por conexão, coletividade, afeto e reciprocidade. A “monogamia serial” é a consequência de uma sociedade individualista*[4], aonde amor é sinonimo de posse, e sendo assim, por não ter a possibilidade de se multiplicar ou se transformar, acaba migrando de um relacionamento para outro, numa repetição infrutífera que sempre colhe os mesmos resultados. Estamos eternamente em busca da promessa do amor romântico, promessa que nunca se realiza e que nos mantém presos nesse ciclo de ilusões.

“Quando você fala assim: ‘Ah eu tive 5 namorados’. Isso aconteceu porque alguém chegou e desbravou o mato de ter 5 namorados e poder terminar um relacionamento, e ai agora a gente pode ter 5 namorados, 6 namorados….mas justamente agora enquanto você está vendo esse vídeo tem um casal desbravando o mato do amor livre.”

Mais uma vez temos a exaltação da “monogamia serial”, no entanto, gostaria de evidenciar outro aspecto do discurso que é demonstrado aqui: O mito do pioneirismo liberal, do desbravador, daquele que abre os caminhos da humanidade com as próprias mãos sem ajuda.

Sim, ao longo de toda a história sempre existiram indivíduos “notáveis”. Pessoas que por N motivos (sendo um dos principais “estar no lugar certo na hora certa”) foram capazes de apontar novos horizontes e capitanear grandes mudanças. Porém, a narrativa meritocrática neoliberal frequentemente ignora os fatores históricos/sociais (e portanto coletivos) que prepararam o terreno para o surgimento desses indivíduos.

A psicóloga e pesquisadora Esther Perel em seu livro “Casos e casos: Repensando a Infidelidade” escreve que “o feminismo, a contracepção e o direito ao aborto deram às mulheres o poder de controlar os próprios amores e vidas”. Acrescentam-se a isso outros fatores como, por exemplo, o aumento da participação da mulher no mercado de trabalho, o declínio do protagonismo cristão em certas esferas da cultura popular e as conquistas sociais de outros grupos marginalizados (Negros, LGBTQIA+, povos indígenas…), e temos um cenário propício para o desenvolvimento de diferentes formas de organizar a sociedade.

Em suma, foi todo um conjunto de articulações comunitárias que normalizaram a possibilidade de se ter múltiplas relações afetivo/sexuais em sequência.

E o mesmo acontece dentro da NM. Por mais que existam algumas vozes mais potentes, a criação dessa nova linguagem é pública e interseccional, englobando todos aqueles que entendem o peso da responsabilidade de viver e propagar relações verdadeiramente livres.

Também vale aqui uma observação de que “casais não desbravam nada”. O casal é a base da estrutura monogâmica, não é a partir dessa representação que vamos destruir tal estrutura.

“E foi assim que saímos de um por vida, para um por vez. E ai o que vem depois? Temos que perguntar pra quem tá abrindo o mato né? Mas os que estão abrindo o mato estão silenciosamente abrindo o mato, só contando que eles tão abrindo o mato pra quem tá pronto pra ouvir. Porque quem não tá pronto pra ouvir nem escuta o barulho direito…da enxada…”

Pois é amigues, estamos tentando.

Estamos fazendo de tudo para espalhar a mensagem, nos esforçando na criação de referências, de bases bibliográficas e na fomentação de uma critica embasada as estruturas de opressão. Mas além da enorme repressão, o cansaço de ver opiniões preconceituosas e burras sobre o tema todos os dias é exaustivo.

Portanto é meio decepcionante assistir vídeos como esse que ignoram todo nosso trabalho de analise critica da monogamia, feito por uma comunidade inteira, e que honestamente, não é difícil de achar. Materiais sobre a NM política podem ser encontrados a partir de uma rápida pesquisa no Google ou em qualquer rede social por termos como Não-Monogamia, poliamor, relacionamento aberto e derivados.

Dessa forma, com um pouco de estudo, todo esse papo abstrato sobre “níveis de consciência" poderia ter sido substituído por uma denuncia séria das contradições da monogamia estrutural.

E nós sabemos que o trabalho da Jout Jout é produzir conteúdo regularmente sobre diversos assuntos e que muitas vezes ela não dispõe de muito tempo de preparação e/ou conhecimento sobre tema. Também sabemos que ela não tem nenhuma obrigação de concordar com as opiniões da NM política.

Mas essa é a nossa luta e não vamos deixar de fazer frente a discursos equivocados mesmo quando eles são proferidos com “boas intensões". Queremos que nossas pautas sejam tratadas com o respeito e profundidade que merecem.

*[1]: Para mais informações leia Friedrich Engels (A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado) e Sérgio Lessa (Abaixo a Família Monogâmica).

*[2]: Outro detalhe importante é que Jout Jout fala sobre amor livre num contexto de relações abertas. Contudo, existe um grande debate dentro da NM política que vem cada vez mais desconsiderando relacionamentos abertos como não-monogâmicos.

*[3]: Leia “O direito à privacidade é uma das bases da Não Monogamia!”, outro texto meu aqui na Afetos Insurgentes.

*[4]: Não confundir individualismo com autonomia. Numa sociedade liberal, o primeiro é sobre egoísmo e desinteresse pelo bem coletivo. Já o segundo é sobre ter o poder de tomar decisões sobre sua própria vida sem a influencia de pressões externas.

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André Luiz
Afetos Insurgentes

Comunista, Comunicador Social, Especialista em Mídia, Pós-Graduado e Não-Monogâmico.