Reflexões sobre como a Estrutura Monogâmica nos Isola em momentos de Crises

Ana Paula Fernandes
Afetos Insurgentes
Published in
6 min readFeb 3, 2021
Ilustração de Anna Macht

Em Abrir amores, fechar fronteiras, Brigitte Vasallo fala:

Romper a monogamia é, principalmente, dinamitar fronteiras, e a própria ideia de que precisamos de fronteiras. Dinamitá-las com a consciência de que são um mero artefato de destruição, repressão, ódio e medo. As fronteiras não nos protegem, elas criam o perigo. O próprio fantasma do perigo. Romper a monogamia é gerar novas formas de relação: não multiplicar as mesmas formas, mas destruí-las para criar formas novas de vínculo baseadas na inclusão, no direito e na necessidade de existir, de viver, de pertencer, de construir, de cultivar juntas.

Eu falo bastante sobre auto gerência, usando esse termo, justamente para focar nas problemáticas de colocar no outro responsabilidades que são nossas. Lidar com ciúmes, por exemplo, é uma responsabilidade de quem sente o ciúmes. O que não significa que a outra pessoa não possa ajudar no processo, ou muitas vezes piorar. E aí é que para mim está a diferença entre as pessoas que tem responsabilidade com as pessoas e as que não tem, e como isso afeta diretamente quem está com a dificuldade ou tendo uma crise por conta do transtorno.

Vejo muito que as pessoas se isolam por medo de serem um peso para as outras pessoas em momentos de crise. E isso fala muito sobre como a nossa sociedade lida com as pessoas com algum transtorno, ou mesmo uma crise que não necessariamente tem a ver com transtorno (por exemplo: raiva porque alguém foi babaca) e por medo de não ser um peso para a outra pessoa, a gente se isola.

O que aprendemos sobre relacionamentos? Os "felizes para sempre".

Então quando não somos felizes, a gente se isola para perpetuar a ideia de felicidade eterna na relação. Isso só gera toxidade.

A estrutura mono também tem a ver com purificação das dificuldades e tristezas. DR, por exemplo, é vista como um problema na relação, e não como uma manutenção da mesma. “Na saúde e na doença” tem a ver com hierarquia, onde só uma pessoa no mundo pode ter a minha atenção e dedicação ao nível de lidar com a dificuldade. 🙄

A estrutura mono tem a ver com usar a responsabilidade, que deveria ser coletiva e não só pra uma pessoa, para perpetuar hierarquia e manutenção da monogamia.

Citando de novo Brigitte Vasallo, no mesmo texto Abrir amores, fechar fronteiras, ela diz:

Em toda a constelação de ideias que opera no pensamento monogâmico, há duas que remetem tanto à imensa dificuldade de ter relações sexuais-afetivas múltiplas, quanto ao nosso descuido, como sociedade, com o que definimos como alteridade: entre outras, com as pessoas refugiadas e migrantes: o medo (o terror) da perda e o reflexo defensivo da exclusão. Construímos casais de forma identitária, com fronteiras fechadas e herméticas. Somos casais, não estamos casais. Essa forma de construção, sabemos bem, responde também à necessidade de refúgio diante de um mundo impiedoso; do refúgio econômico diante do capitalismo selvagem ao refúgio emocional diante do enorme supermercado de afetos em que vivemos, passando, entre outras coisas, pelo refúgio sexual diante da hipersexualização instrumental de corpos descartáveis e, paralela e paradoxalmente, diante da penalização da sexualidade (o monossexismo, a castração dos desejos não normativos, a punição da experimentação, a vadiofobia…).

A gente se isola porque temos essa ideia ainda de purificação das dificuldades nas relações. E me incluo nisso, porque levo para terapia o medo que tenho de ser um estorvo na vida das pessoas, justamente porque nas minhas crises, até uns 3 anos atrás, eu nunca fui respeitada e sempre fui colocada como a pessoa difícil de se relacionar. Ainda trabalho isso na terapia, o que tem me ajudado demais, inclusive.

Quando eu ou alguém que me relaciono está em crise, a gente se respeita. Mostra presença (mesmo online na pandemia), mostra afeto, escuta, dá atenção… O mínimo, sabe?

Elas se isolam e eu também. E tudo bem quando precisa. Cada ume tem crises diferentes, por motivos diferentes, e a gente lida como dá. Mas não existe possibilidade alguma de eu me relacionar com alguém que só me quer nos momentos bons. Eu não me permito mais esse tipo de coisa.

E isso também é auto gerência.

Comentário de Louie Escobar que vale muito a pena estar aqui:

Quando temos algum transtorno mental a gente aprende desde cedo que “não é problema dos outros” . Não no sentido de ter autonomia, mas no sentido de ser um peso tão grande que se você ama alguém, essa pessoa não merece algo tão ruim na vida dela quanto seu transtorno. Então você tem que agir como se isso não existisse, afinal é desgastante e trabalhoso se relacionar com alguém assim. Só que quem convive com transtornos mentais — e aí vou colocar neurodivergências aqui junto porque, na minha experiência, o tratamento em relação a manifestações dessas condições é o mesmo — não pode simplesmente tirar essa parte de si e colocar de lado para se relacionar. Isso não é justo, não é honesto com a gente mesme e nem com quem nos relacionamos. Meus transtornos e neurodivergência permeiam minha vida toda e todas minhas relações, porque são partes de mim que me acompanham e vão me acompanhar para sempre. Quem se relaciona comigo tem que entender que isso tudo faz parte de quem eu sou e da minha história e construção.

Já terminaram um relacionamento de anos comigo (noivado mono neoliberal) colocando a culpa do término nos meus transtornos, e isso minou ainda mais a minha segurança e auto estima em relação a isso, então não me isolar é um exercício diário. Além de que, esse isolamento é um movimento esperado de pessoas com depressão, por exemplo. Mas mesmo sabendo disso, na prática as pessoas tendem a fazer disso algo sobre elas ou sobre a relação, quando na maioria das vezes é algo diretamente ligado com esses transtornos mentais ou algum processo individual. Algo que pode ser compartilhado, mas não vai ser necessariamente resolvido e muito menos desaparecer. E isso frustra quem se relaciona com quem tem transtornos e/ou é neurodivergente porque há uma tendência a querer resolver sofrimento para não sentir dor, para não ver quem a gente gosta sofrendo. E aí muita gente vai no erro de fingir que não existe ou que pode ser “curado” rapidamente, em vez de trabalhar no problema mesmo sentindo a dor — para poder ter autonomia, segurança e auto estima no futuro.

As pessoas que se relacionam comigo, no geral, entendem e respeitam (com exceção de família porque com família é tudo mais difícil) o meu tempo e meus momentos de isolamento. Não fazem do meu isolamento algo sobre elas nem insinuam vergonha e repreensão por isso. Elus entendem que é parte da defesa de quem convive com essas condições e sempre deixam muito claro que estão ali e que esse auto isolamento não é o fim do mundo, que tudo tem seu tempo e que tudo bem eu precisar do meu.

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