Um projeto anarquista verde por liberdade e amor

Relações com estrutura fixa, com regras ou contratos permanentes, não podem ser parte de uma sociedade realmente livre.

Afetos Insurgentes
Afetos Insurgentes
12 min readSep 1, 2020

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Um clássico da Anarquia Relacional e referenciado na Wikipedia de língua inglesa do movimento, escrito em 2004, antes do termo em inglês Relationship Anarchy (Anarquia Relacional) ter sido cunhado, a autora Mae Bee propõe a abolição de dinâmicas de controle em nossas relações íntimas.

Enquanto este pequeno ensaio tem a esperança de inspirar pensamentos, não objetiva ser completo: muito falta nele.. e se causar controvérsia eu espero que seja para despertar emoções, discussão e com esperança outros escritos, em vez de causar chateação.. é meramente a minha contribuição no momento para algo que se siga ao invés de uma palavra final.

Este ensaio não advoga outra opção, outra “escolha” de se relacionar para casais. É ao invés disso um reconhecimento de nosso “projeto comum” — a abolição de todas as relações de poder inclui a abolição de relações coercitivas/fechadas. Essas são relações com estrutura fixa, aquelas relações com regras ou contratos permanentes. Essas relações não podem realmente ser parte de uma sociedade livre. E da mesma forma que com outras relações coercitivas em desacordo com nossa liberdade elas devem ser confrontadas por todos aqueles que buscam tal liberdade e comunidades.

“Nós precisamos buscar nossos encontros sexuais como o fazemos com todas as nossas relações, em total oposição a esta sociedade, não por nenhum senso de dever revolucionário, mas porque é a única maneira possível de ter relações sexuais cheias, ricas e desinibidas em que o amor pare de ser uma dependência desesperada mútua e ao invés se torne uma exploração expansiva do desconhecido.”

Sobre pobreza sexual — Desobediência Intencional 4

“Na melhor das hipóteses então, anarco-primitivismo é um rótulo conveniente usado para caracterizar indivíduos diversos com um projeto comum: a abolição de todas as relações de poder. Por exemplo estruturas de controle, coerção, dominação e exploração e a criação de uma forma de comunidade que exclua tais relações.”

John Moore — Uma introdução ao Anarco-Primitivismo

Regras de Engajamento

Eu vou usar o termo “relações com regras” ou às vezes “relações coercitivas ou restritivas” porque eu não conheço outro termo genérico para relações monogâmicas e aqueles que dizem ser poliamorosos ou abertos mas têm regras. Pelo último eu me refiro a aqueles em que a coerção consentida é aquela em que uma pessoa amada não é restringida a apenas uma pessoa mas eles ainda não estão em liberdade ou são encorajados a seguir seus desejos.

De um ponto de vista político essas duas opções de relação são o mesmo. Se suas razões para não-monogamia são meramente sobre gratificação sexual aumentada com um número aumentado de pessoas então relacionamentos com regras podem servir a esse propósito.

Se, no entanto, é pelo desejo de criar comunidades e não casais, por desejo e não consentimento, por confiança e não medo…. oras, a “lista dos que não pode”, o “não em minha companhia”, as regras todas têm que sumir. Quando relações abertas ou relações livres são usadas neste texto eu me refiro a exatamente aquilo..

Escolha e Respeito

Enquanto há uma aceitação de relações abertas em nossas comunidades eco-anarquistas, há igual aceitação de relações restringidas. Isto vem em parte de razões óbvias: as pessoas podem ter liberdade para concordar com seus próprios relacionamentos, não há um padrão a ser seguido, etc. No entanto, há muitas razões pelas quais essa visão libertária é sem sentido.

Primeiramente, em sociedades de massa nós consentimos em todo tipo de relações coercitivas. Trabalhar por um salário, ponto eletrônico, ser um cliente e portanto um explorador de trabalhadores….de fato é difícil achar muitas relações que não sejam baseadas em alguma medida em coerção ou exploração. Consentir em relações coercitivas de nenhuma maneira indica que as desejamos. Desde os anos 1970 (no mínimo!) o feminismo tem explorado as muito grandes diferenças entre consentimento e desejo, particularmente no âmbito do amor e do sexo. Muitas mulheres consentem ao sexo para evitar estupro, por exemplo. Consentimento tem raiz na linguagem da lei e de direitos de propriedade. É por isso que é útil para sociedades de massa mas inútil para criar sociedades radicais. Certamente não é um lugar radical para entender um mundo baseado em desejo. E com certeza, nossos relacionamentos sexuais são um dos lugares mais óbvios para situar desejo e não consentimento.

Então, as pessoas consentem a relações com regras como o fazem com outras relações de coerção mas elas os desejam? Fundamentalmente, isto é um oxímoro [uma contradição em termos]. Não precisamos criar regras para coisas que não tememos. Se duas pessoas desejassem ter relações sexuais somente uma com a outra não haveria necessidade de se criar regras para governar isso. Isto não transforma a relação em coercitiva, apesar de a fazer literalmente monogamia. A coerção está na governança daquele desejo, não apenas para si mesmo mas para aquele que você deseja e ama.

Monogamia é um contrato precisamente porque não esperamos monogamia literal, porque esperamos que nosso amante deseje sexo com outros que não nós. Talvez não agora, mas certamente no futuro. Também esperamos que nosso amante crie regras para governar o nosso desejo porque tampouco temos confiança na unicidade de nosso próprio desejo sexual. É ridículo então, para monogamistas dizerem que proibiram um ao outro de fazer sexo com outros porque apenas desejam sexo um com o outro.

Relações com regras então operam com consentimento sexual mas não desejo. Embora é claro, há razões pelas quais desejamos coagir e sermos coagidos. Desejamos isso porque desejamos controlar, ser donos e possuir aquilo que está à nossa volta. É um desejo fixado no mito de que podemos fazer isso com seres viventes, e pior, que podemos fazer isso em nome do amor quando na verdade realmente é somente controle. Se não podemos desistir de nossa crença na posse do que não tem limites: e com isso me refiro a coisas como amor, afeição, desejo sexual….como começamos a renunciar ao controle do que é limitado: como os recursos do mundo? Uma inabilidade, ou talvez uma falta de desejo, de libertar aqueles que mais amamos e a nenhum custo real a nós mesmos sugere que fomos tão longe na loucura da sociedade de massa que não há como ir pra frente, não há retorno ao lar da liberdade.

Vale a pena mencionar aqui que, embora só como uma nota acidental, que mesmo usando constante vigília e/ou força, ninguém pode realmente impedir seu amado de amar ou foder outro. Eles só podem escolher acreditar que podem.

Ciúmes e Outros Sentimentos

A criança com frequência reage a um novo irmão junto ao corpo de sua mãe com extremo ciúme, sentimentos intensos de rivalidade e raiva, e por fim posse. Como adultos assistimos com simpatia mas não horror. Não esperamos que a mãe ponha o recém-chegado de lado ou mantenha seu amor por ele fora da vista da criança mais velha. Ao invés, esperamos que a mãe reassegure a primeira criança que ainda a ama e se importa com ela tanto quanto que assegure à criança que ela também ama e se importa com o novo bebê. Exceto em casos muito raros o ciúme da criança diminui e a criança aceita a situação.

Em comparação temos o relacionamento de adultos: o adulto com frequência reage a uma nova pessoa junto ao corpo de seu amante com extremo ciúme, sentimentos intensos de rivalidade e raiva, e por fim posse. Como adultos esperamos ou que o recém-chegado seja posto de lado (monogamia) ou que um código de conduta seja obedecido, como manter o amor pelo recém-chegado fora da vista do primeiro (relações restritivas). De todas as complexas e diferentes emoções entre as três, ou mais, pessoas, damos prioridade ao ciúme e à rivalidade do primeiro amante.

Como isso pode possivelmente acontecer? Isso parece demonstrar uma separação civilizada e artificial dos potenciais de crianças e de adultos. Consideramos as emoções das crianças não-razoáveis e portanto não mestres da situação, mas as emoções dos adultos razoáveis e permitidas a governar. A confusão de relações restritivas é que não pensamos que outros sentimentos como desejo pelo corpo de outro sejam não-razoáveis, mas só que esses sentimentos em particular sejam os que devam ser controlados.

O desejo de possuir e ser dono toma precedência sobre outros desejos. (Vale notar que isto é particular a certas culturas e ciúme sexual não é compreendido em algumas. Enquanto é “natural” para aqueles de nós criados na sociedade monogâmica que sintamos ciúme, isto não significa que aqueles nascidos em sociedades poliamorosas estão somente reprimindo suas emoções!)

Outra diferença chave é que a sociedade civilizada acredita que crescimento emocional acontece na infância e não na idade adulta. Aprender não é para a vida. Isso significa que à criança pode ser dada a oportunidade de crescer e se desenvolver mas o adulto é agora retardado(sic) e incapaz de aprender.

E isto, nos traz a respeito. Relações coercitivas NÃO são respeitosas, pois são negação não somente do desejo mas do crescimento. Se me coloco preso pelo ciúme de meu amante eu o presumo incapaz de lidar com suas emoções e retardado(sic) demais para mudar. Há claro alguma verdade nisso. É mais difícil ser flexível aos 30 do que aos 3. Aos 30 eu tive 30 anos da megamáquina e seus mitos de posse pessoal. Eu tenho mais merda pela qual avançar, e é provável que eu seja dificultado pelos outros bem-intencionados tentando não me “machucar”. Esse machucado só está fazendo crescer dores.

Para alguém se sentir machucado por outro alguém não significa que ninguém fez nada de errado a ninguém. É um terreno complicado de se negociar mas está longe de ser impossível. Aceitar sentimentos de ciúme e medo abertamente sem pedir ou esperar que o outro restrinja seu comportamento assim “resolvendo” esses sentimentos nos força a ser os possuidores não do outro mas de nossas próprias emoções. Minha dor é minha dor. Podemos pedir aos nossos amados que nos amem através da dor, e como a criança, vamos provavelmente ver essa dor diminuir e com frequência sumir. Em particular, a cultura de vítima de mulheres e até entre anarquistas e feministas — está algemada a conceitos de que outra pessoa é responsável por nossos sentimentos de rejeição ou chateação. É lamentável culpar nossos amantes por querer outro alguém, mesmo desejar outro alguém mais que você, e mesmo desejar outro alguém e não você.

Fugir ou Separar

Devido à nossa posição de existir na sociedade de massa, e nossa necessidade de sobreviver, algumas co-opções e formas de ceder são inevitáveis. Nossa necessidade de comer e ter abrigo nos faz consumidores exploradores, seja de “troca justa” de produtos ou de pizza de pepperoni. Não estamos conectados à natureza em nenhum nível significativo mesmo se a gente cultivar nossos próprios vegetais no “interior”. Todos usamos tecnologia em maior ou menor grau. Nossas relações enquanto isso, são um dos poucos lugares onde a gente é mais livre para tentar ser selvagem e viver no aqui e agora e sem possuir e oprimir um ao outro.

Aceitar relações coercitivas assim como relações livres é tão cheio de tolice quanto esperar que sociedades industriais, ou sociedades com governos, possam existir concomitantemente a sociedades baseadas na natureza. Se meu amor é livre, mas o seu não é então escassez é criada. Dizer que eu estou em liberdade de não possuir terra mas você está em liberdade de possuir terra é ridículo. Felizmente, sua possessão depende da minha conformidade com isso, e como anarquistas não aceitamos sua possessão. Se acreditamos que amor deveria ser dado livremente do desejo então não podemos respeitar a cultura do amor-como-commodity-amado-como-posse.

“a pessoa do meio num triângulo com frequência manifesta uma certa compaixão pelo sofrimento do ciumento, respeitando sua ‘humanidade’ apesar de ela lamentar os efeitos desprazerosos das manipulações e melodramáticas do tormento. Essa complacência permanece leal à forma do casal, porque respeita as regras tradicionais do amor.”

- Issac Cronin

Isso significa que eu não agir sobre meu desejo de amar quem eu quero quando eu quero, é ser cúmplice de um sistema de coerção, de controle e de posse o qual eu sou contra. Não, eu não aceito e não posso aceitar, as regras da “sua” relação. Em uma sociedade livre não estaremos pedindo pelo consentimento de uma pessoa para dormir com outra não mais do que pediríamos a um pai pelo “direito” de casar com sua filha. E aqui e agora, também podemos descartar isso. “Respeitar” relações restritivas é apoiá-las.

Ação Direta

Seria tão controverso declarar guerra à monogamia? Seduzir os amantes do possessivo? Poderíamos ajudar aqueles encurralados por seus ciúmes tímidos a crescer em liberdade “roubando” beijos dos lábios proibidos na frente de seus olhos apavorados? Se isso te choca ou ofende talvez você devesse se perguntar por quê.

Comunidades e Não Casais

Relações com regras, e a aceitação delas, denuncia uma hierarquia internalizada. A relação do casal é de maior valor que outras na comunidade. Seria igualmente irrealista e indesejável esperar que todo mundo sentisse tanto amor e conexão com cada um daquela comunidade e por esse caminho jazer grupos formalizados e institucionalizados ou outros modos coercitivos de se relacionar que são tão danosos quanto relações com regras e casais.

Comunidade é mais que um e mais que dois também. Para criar pequenas comunidades autogovernantes, autossuficientes não pode haver a tirania do individualismo ou de casais. Para criar comunidades anarquistas e selvagens devemos também abandonar a ideia de sacrificar desejos individuais pelo bem da comunidade. Fomos tão programados pela megamáquina que é difícil imaginar um mundo onde cooperação em vez de competição não nos bote pra fora. Mais difícil ainda de imaginar é um mundo onde sejamos livres para tomar nossos prazeres e desejos abertamente. Mas se são essas as comunidades que estamos no processo de criar então devemos ser honestos e abertos e desafiadores. Essas comunidades não vão prosperar se acanhando de conflito mas ao invés por não o temendo.

Um argumento frequentemente dado por aqueles que não necessariamente pregam relações coercitivas mas estão restritos pela ideologia é o seguinte: é razoável que A não beije B na frente de C. É razoável porque A se importa com C tanto quanto com B. A não quer chatear C.

Ninguém quer chatear aqueles por quem a gente tem carinho. Mas se restringirmos ou inibirmos nossos próprios desejos pela falsa paz de não chatear os outros, então somos deixados num mundo apaixonadamente com déficit. E se C ficou chateado porque A e B eram ambos mulheres e a masculinidade de C foi ameaçada por sexo queer? Ou se C ficou chateado porque A era negro e B era branco e a segurança de C como um homem branco foi chateada por amor interracial?

Como radicais inevitavelmente diríamos que os amantes deveriam confrontar homofobia e racismo, que o ônus é em C para lidar com seus sentimentos. E com razão. Homofobia e racismo são dinâmicas de controle e poder internalizadas e danosas que devem ser confrontadas. Relações com regras também devem. Você beijaria B na frente de C se C fosse ficar chateado?!

Aqui e Agora

As características que definem a anarquia verde incluem um desejo de viver em comunidades pequenas e autogovernantes, autodeterminação individual e coletiva, uma reconexão com o selvagem e um entendimento de que somente vivemos no presente, no aqui e agora.

Viver do real aqui e agora em vez de no passado/futuro irreal é uma característica distintiva de muitas sociedades baseadas na natureza e uma das maiores pobrezas para nós em sociedades de massa. Relembrar infâncias disfuncionais ou guardar pensões para a velhice nos nega o estar vivo do presente. Sentar em um escritório sonhando com o fim de semana ou passar tempo livre se envolvendo com personagens míticos de novela ao invés de com pessoas reais claramente não é saudável. Tão doentio quanto é ter sentimentos incompatíveis com o aqui e agora. Sentar no bosque com um amado mas estar miseravelmente ocupado com algo que aconteceu enquanto criança é o mesmo que não aproveitar um banquete porque uma vez você sentiu fome. O passado está atrás de nós. O futuro pode nunca acontecer.

Felicidade também está no aqui e agora, no momento. Passamos nossas vidas desaprendendo isso mas capturamos lampejos disso através de sexo, amor, dor, reunião, o inesperado etc. Para nossas relações serem felizes elas também devem estar no aqui e no agora, porque, realmente, elas só existem no aqui e no agora. A famosa frase “não existe heterossexualidade ou homossexualidade, só atos heterossexuais e homossexuais” pode ser estendida para perceber que uniões sexuais são sexuais somente naquele momento não no dia antes ou no dia seguinte. É ilusório e doloroso insistir em desejo sexual consistente, exigir que seu amante de hoje continue te amando amanhã.

Gay, hetero, meu amante, seu parceiro primário, é tudo política de identidade de contratos contínuos impróprios para vidas de desejos mútuos. Não precisamos “trabalhar” em nossas relações, só precisamos tê-las. Sem contrato, exigência, competição e coerção.

“Eu odeio todos aqueles que, cedendo através de medo e resignação, uma parte de seu potencial como seres humanos a outros, não apenas destroem a si mesmos mas também a mim e a aqueles que eu amo, com o peso de sua complacência medrosa ou com sua inércia idiótica.”

Albert Libertad, I hate the Resigned

Tradução por Raysa Müller.

Texto original: “A Green Anarchist Project on Freedom and love”, na Biblioteca Anarquista Online (The Anarchist Library.org)

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