Busca por humanização ainda é o principal objetivo de trabalhadoras domésticas

Afetos Periféricos
afetosperifericos
Published in
7 min readJun 1, 2019
Ilustração de Laudelina de Campos Melo, a fundadora do primeiro sindicato de trabalhadoras domésticas do Brasil, em 1936 / Foto: Reprodução/Eu Empregada Doméstica

Por gabriela feitosa, Marília Freitas e Pedro Victor Lacerda

“Por que nós domésticas somos discriminadas? Eu quero saber o porquê, se a gente trabalha igual outra pessoa. Você trabalha não só porque você precisa, você trabalha pra se sentir uma pessoa digna. Não é isso? E por que o doméstico não pode ser?”, provoca Michelle Costa, 42. Executando trabalhos domésticos durante a maior parte de sua vida, ela tem em comum com outras trabalhadoras o início precoce na profissão, principalmente por necessidade de sobrevivência — realidade quase sempre presente na vida de famílias sem recursos e baixo poder aquisitivo.

Edilene Pereira, 36, assim como Michelle, também inicia sua história com sua mãe executando o mesmo serviço. “É aquela velha história, família pobre, a gente tendo que se virar muito cedo. A minha mãe sempre trabalhou em fábrica, e por ser analfabeta, ela sempre arranjava esses trabalhos como doméstica”, rememora Edilene. De acordo com resultados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua (PNAD Contínua) o Brasil possui, atualmente, 6,3 milhões de trabalhadores domésticos; em 2016, a mesma pesquisa apontou que esse número era de 6,158 milhões, dos quais 92% eram mulheres.

As duas histórias convergem ainda mais: várias horas diárias levadas nas casas de família e longo tempo de locomoção, já que os patrões sempre estão nos bairros distantes de suas periferias. Sobrando pouco tempo para sua própria família e objetivos pessoais, as duas ainda têm de conciliar uma jornada dupla, resultado da necessidade de cuidar do seu próprio domicílio. Em suas últimas experiências, Edilene e Michelle tiveram suas carteiras de trabalho assinadas, fator que se torna uma conquista diante das condições de trabalho do país.

Em geral, os brasileiros têm encontrado dificuldade para conseguir empregos formais regulamentados. Em todo o território nacional, 13,4 milhões de pessoas estão a procura de emprego, segundo a PNAD Contínua em pesquisa divulgada em março de 2019. Recorrendo à informalidade para garantir seu sustento, encontram em diversas atividades sua fonte de renda, dentre as quais o trabalho doméstico. Segundo resultados da PNAD Contínua de 2016, no Brasil, apenas 32% das trabalhadoras domésticas possuíam carteira assinada e somente 42% contribuem para a previdência.

O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) define o trabalho de empregado(a) doméstico (a) como uma funcionária que presta serviços de natureza contínua a uma pessoa ou família, em residência destas. A categoria profissional é lembrada no dia 27 de abril, ainda que não oficializada em todo o país, quatro dias antes do dia do trabalhador. Neste 1º de maio, movimentos sociais e centrais sindicais, em ato unificado em todo o Ceará, protestaram contra as propostas do governo Bolsonaro para a Reforma da Previdência, por reajustes de salário e pela geração de empregos.

Dia de Santa Zita

“Tudo na casa eu tinha que fazer. Só entrava na escola atrasada porque eu só podia sair depois que deixava a mesa do almoço pronta, lavava a louça toda do café, deixava arroz e macarrão. Quando chegava, era do mesmo jeito. Não tinha tempo pra nada. Adoecia e tudo” / Foto: Marília Freitas

Michelle Costa começou a trabalhar aos seis anos de idade. Sua mãe, também doméstica, costumava levar a menina para casa onde trabalhava, já que não podia deixá-la em outro lugar. Os patrões chegaram a fazer um mini uniforme para a criança, que anos depois se tornaria a nova trabalhadora da casa. Foi aos catorze anos que Michelle fugiu da casa dos patrões. Até esse momento, sofreu diversas violências. Michelle relembra, com pesar, o abuso sexual sofrido, assim como as agressões físicas que faziam parte de sua rotina. Sua mãe, por transtornos psicológicos, havia deixado a filha nessa casa. Após conhecer um companheiro, Michelle viu nele a oportunidade de terminar o ciclo de sofrimento.

A partir de então, começou a construir, com dificuldades por conta dos traumas, novas relações. Hoje, a doméstica tem dois filhos, uma de vinte e outro de dezessete, de quem fala com carinho e desejo de que tomem caminhos diferentes. Ela mora com os dois, uma netinha e seu atual companheiro no bairro Passaré, na Zona Sul de Fortaleza. É o dinheiro de Michelle que garante o sustento da casa, ainda que conte com uma pequena ajuda de seu genro. Por conta de problemas de saúde, saiu do último emprego há três meses e está recebendo auxílio-doença. Durante boa parte de seus 42 anos, trabalhou como doméstica, em empresas de confecção de roupas, autônoma e outros serviços.

Michelle terminou o Ensino Médio e agrega na vida o sonho de trabalhar com o próximo. Chegou a fazer um semestre de Serviço Social, mas teve que abandonar o curso por conta de dificuldades. É na Internet e em conversas com outras trabalhadoras que ela se atualiza sobre o mundo do trabalho doméstico.

Ela sabe de seus direitos e contou ter tido conflitos com alguns patrões após ter se manifestado contra algumas posições deles. “Por mais que os empregados domésticos tenham direito a um décimo, aos direitos trabalhistas, na verdade, é só fachada, praticamente. É só fachada porque nem sempre eles são executados daquele jeito”, denuncia. Somente em 2011 teve sua carteira de trabalho assinada pela primeira vez, apesar de se dedicar a vida toda à profissão. “Esquentar a carteira”, como Michelle revela, é uma prática comum de patrões. Isso acontece quando a carteira é assinada, mas nenhum vínculo com o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) é confirmado.

Ainda que carregue diversos traumas físicos e psicológicos, Michelle encontra em sua netinha e em Santa Zita motivos para continuar resistindo. É com emoção que ela relembra o dia 27 de abril que, além de ser o Dia da Empregada Doméstica, é também dia da padroeira de uma profissão que ainda busca por reconhecimento de sua humanidade, como Edilene Pereira, que concilia a profissão com o sonho de retornar, até o próximo ano, seu curso de Laboratorista.

Devota de Santa Zita, padroeira das trabalhadoras domésticas, Michelle Costa encontra na fé motivos para superar traumas adquiridos em alguns de seus trabalhos. / Foto: Marília Freitas.

A dupla jornada de Edilene

“Já fui feirante, vendedora de cosméticos, zeladora, camareira… mas sempre voltava para área de doméstica. É o que a gente sabe fazer de melhor’’ / Foto: Marília Freitas

No bairro Vila Pery, em Fortaleza, a casa de Edilene Pereira localiza-se em frente a uma igreja da rua. A relação com o espaço é presente: crianças andam de um lado para o outro, agitadas, enquanto Edilene senta para conversar com a equipe sobre sua rotina como empregada doméstica. Há 10 anos, trabalha na área em um apartamento no Cambeba, distante 15 quilômetros do seu bairro. “Eu saio de casa cinco e quarenta da manhã, só tenho hora pra chegar [no trabalho], mas pra sair…’’.

Apesar de já conhecer bastante a rotina, apenas em março de 2017 teve sua carteira assinada pela primeira vez, por meio do atual emprego. “Eu cuido de uma menina de dois anos, e dou conta da casa também. E é bem complicado”. Por conta do nascimento prematuro, a criança requer um cuidado especial por parte de Edilene. Sua relação com seus atuais patrões é agradável, pessoas que “são mais do que patrões”, segundo ela. Em outras ocasiões, relata as exigências de antigos empregadores. “Passei dois anos sendo diarista, eu trabalhei com várias pessoas, e cada um tem seu jeito e particularidade, então você tem que aprender a rotina de cada casa”, conta.

Edilene começou a trabalhar como babá aos 9 anos de idade e, assim como Michelle, costumava ir ao emprego de sua mãe. “Então, quando eu iniciei a minha adolescência, ela sempre me levava para o trabalho, e na adolescência já comecei a manjar do negócio”. Sua mãe continuou a trabalhar como empregada doméstica até um pouco antes de falecer, aos 50 anos. E diferente da filha, nunca teve sua carteira assinada.

A trabalhadora conta que veio ter um pouco mais de esclarecimentos sobre os seus direitos de dois anos pra cá, explicados pela própria empregadora. Ela também conta que a internet foi uma ferramenta muito auxiliadora para saber mais sobre os seus benefícios. Seu contato com outras empregadas domésticas também fortalece o coletivo. “Não tem como mulher se juntar e não falar, quando [a mulher] é doméstica, não tem como não falar [de patrão]”.

Edilene conta que devido ao trabalho doméstico, desenvolveu uma sinusite. Em decorrência disso, não pode ficar próxima do mofo ou poeira, mas ainda continua no trabalho de limpeza e cuidados. “Vivo a base de antialérgico e relaxante muscular, mas ainda tenho muita lenha pra queimar nesse trabalho”, revela. Às vezes lhe falta força e disposição para cuidar de duas rotinas totalmente distintas. A dupla-jornada é presente em sua vida, e por conta do tempo ocupado pelo emprego, não tem a relação desejada com a família. “Então, às vezes eu durmo no ônibus e quando eu chego em casa, eu ainda vou fazer janta, então eu já caio na cama pra dormir. Essa é a parte ruim do trabalho, que eu acho. Essa falta de tempo, disposição”, desabafa.

Há três anos, Edilene se mudou do Bom Jardim para a Vila Pery, onde mora com o marido e filhos, além de seus animais de estimação, a cadela Vaca e o gato Chuvisco (Foto: Marília Freitas)

Sua renda com o trabalho doméstico é a garantia da casa, na qual mora com o marido, que trabalha como feirante, e os filhos. “Meu esposo às vezes se vira fazendo bico, conserta coisas, celular, relógio, mas a minha renda é a prioridade aqui”. Edilene tem ensino médio completo, além de um curso de Laboratorista. Quando terminou o curso, sua gravidez a impossibilitou de seguir com um estágio na área. A partir disso, viu o trabalho doméstico como forma de se manter financeiramente. Ela relata a vontade de voltar a estudar, e até mesmo de conseguir uma vaga na área hospitalar.

Edilene também fala sobre os futuros dos filhos. “Claro que não está descartado de um dia eles poderem fazer uma diária ou trabalhar em um período nisso para poderem fazer uma outra coisa melhor. Mas acredito que eles não querem isso no futuro deles”, finaliza.

--

--