Afetos Periféricos
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5 min readNov 12, 2018

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Na foto, a conhecida praça do João XIII, ponto que passa a unir os moradores a partir do período de fim de tarde. // Foto: Marília Freitas

Por Pedro Victor Lacerda e Marília Freitas

Os resultados das eleições, no dia 28 de outubro de 2018, declararam o candidato Jair Bolsonaro (PSL) como o novo representante da nação brasileira. Nação, segundo o Dicionário Aurélio, significa 1. Agrupamento de seres, ger. fixos num território, ligados por origem, tradições, costumes, etc., e ger. por uma língua; povo. 2. País (3). 3. O povo dum território organizado politicamente sob um único governo.

A nação tem um novo representante do povo.

Dias antes do acontecimento, Eliane Brum trabalha em mais um texto de sua coluna no jornal El País. “Como resistir em tempos brutos” foi publicada no dia 8 de outubro, data após os impactantes resultados do primeiro turno. O texto fala sobre resistir em meio aos tempos que estão por vir. Resistir como indivíduo e população. A repórter ressalta que, em seus 30 anos acompanhando as eleições do país, nunca tinha visto algo como as eleições de 2018. “O Brasil está mergulhado numa crise ampla, complexa, que é muito mais do que uma crise econômica e política”. O texto continua falando os motivos do porquê de um candidato que apoia abertamente a violência conseguiu se consolidar como candidato ao segundo turno — até a época da coluna.

Sábado, 10 de novembro de 2018. Localizado em Fortaleza, no estado do Ceará, o bairro João XXII faz vizinhança com outros espaços distantes dos recantos seletos da Cidade. Henrique Jorge, Bonsucesso, Genibaú, Granja Portugal são algumas das proximidades que, junto ao Bairro, figuram zonas de estigmatização e desprestígio social. No Bairro primeiro citado, entre quatro ruas que rumam estrategicamente outros da periferia de Fortaleza, encontra-se a Praça do João XXIII. Nessa encruzilhada, com reformas que dão sempre uma cara nova ao ambiente a cada gestão municipal, e algumas vezes maltratada pela ausência do cuidado, emerge oposição às formas micro da crise falada por Brum. E ela se encontra no movimento.

Busto do Papa João XXIII, que também nomeia o bairro. // Foto: Marília Freitas

Nessas agitações de “cotidianices”, outro termo emprestado da coluna da repórter, de marcar presença e de seguir em frente é que se faz oposição aos riscos do que, agora, podemos enfrentar em um governo Bolsonaro. E é de se esperançar: toda essa gente, do João XXIII aonde quer que encontre as mais profundas cicatrizes sociais, já trava a batalha de longa data que alimentaram as engrenagens e processos históricos, nos quais esses povos foram desmerecidos e esquecidos. A luta por permanência parece nunca ter tido fim. A palavra de ordem da vez vai ao encontro da de Brum: “Não renunciem à sua subjetividade. Não permitam que roubem a sua voz e a sua força. Não deixem a vida ser tomada pelo medo.”

Mas não se pode deixar de falar: estar longe dos centros privilegiados e de reconhecimento social da Cidade mina possibilidades. O cerceamento de horizontes dos fortalezenses também pode se dar mesmo em regiões próximas desses espaços. Alguns números são esclarecedores e constatam os empecilhos dos moradores.

O portal Fortaleza em Mapas, da Prefeitura de Fortaleza, com base no Censo IBGE de 2010 revela que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do bairro João XXIII é calculado em 0.2837, classificação geral alocada como “muito baixo”, a menor do Índice. De acordo com a mesma pesquisa*, o bairro tem 18.398 habitantes, dos quais 1.359 homens e 1.340 mulheres são analfabetos*. A taxa de alfabetização geral é de 85,33%.

O Fortaleza em Mapas também aponta que, no João XXIII, foram contabilizados — de um total de 5.231 domicílios — 2.800 sem esgotamento sanitário, 9 sem acesso à energia elétrica, 19 sem coleta do lixo e 266 sem abastecimento de água. Do total de habitantes, a renda média é de R$ 386,57. Os bairros com que faz fronteira, já citados, junto de outros que não se aproximam tanto fisicamente, tal qual a Messejana, possuem classificações ou iguais ou ainda mais baixas.

Já os bairros Meireles, Aldeota e Dionísio Torres receberam classificação geral “muito alto” no IDH e pontuam, respectivamente, 0.9531, 0.8666 e 0.8597. O indicador Renda Médica pontua R$ 3.372,86 , R$ 2.670,60 e R$ 2.500,06 , na ordem citada.

Feito o panorâma, deve-se relembrar que, se já não se chega muito longe com dificuldade ou falta total de acesso a recursos e bens, retirar a possibilidade de se ter perspectivas para essas regiões e, consequentemente, para a vida de pessoas, é ainda mais debilitante. O fator estigma é um dos grandes responsáveis por isso, alimentado por uma mídia com necessidade de autocrítica, inundada por sensacionalismo e espetacularização da barbárie. As histórias contadas sobre essa gente, por muitas vezes, ainda permanece a mesma, como se fosse única.

Nessa ocupação das praças e na continuidade da vida, há perseverança. Pode não ser tão estrondosa quanto às manifestações sociais organizadas contra o candidato à presidência do PSL, mas tem um efeito tão forte quanto. Demonstram que as pessoas não vão desistir, não irão se retaliar. Mas permanecerão, juntos, a postos pelo povo. As crianças brincando na praça, os jovens jogando futebol, as barraquinhas de comida se estabelecendo no local ao fim do dia são só algumas das atividades conjuntas que possibilitam a sensação de união no local.

Quadra da praça do João XXIII. // Foto: Marília Freitas

Na coluna de Eliane Brum, há uma citação ao poeta Xingu Élio Alves da Silva, que refere-se como “Eu + Um”. “Sozinhos nós contamos apenas como um. Como Um+Um+Um… nós somos milhões.”

Quantas outras praças não existem pelo bairro? E por Fortaleza? E pelo Ceará? E pelo Brasil? De quantas e quais formas a resistência se posiciona em meio ao povo? E não é agora que eles -e nós — deveremos desistir. “Quando começamos a ter paz, a guerra recomeça. Porque, de fato, a guerra contra os mais frágeis nunca parou. Arrefeceu, algumas vezes, mas nunca parou.”

Segundo o Dicionário Aurélio, resistência significa 1. Ato ou efeito de resistir; 2. Qualidade, característica ou condição do que é resistente; 3. Força que se opõe a outra.

Entre praças, asfaltos e andanças ecoa um grito potente e silencioso, seja pela sua própria natureza, seja por não terem nos ensinado a ouvi-lo e entendê-lo. E ele vem de todos nós.

A vida continua. A resistência também. Independente de como.

A nação se une por meio da resistência.

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