Quem vive no João XXIII?

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12 min readNov 27, 2018

Dona Auri

Dona Auri posa elegantemente para a foto em seu restaurante // Foto: Marília Freitas

Rua Perdigão de Oliveira, antes da esquina com a Luís de Castro e depois da Sabiá. Self-service & Pastelaria O Tião.

Auri Maria Ferreira de Souza tem 59 anos e mora no João XXIII há dez. Relata que só pode falar coisas boas sobre o local, e sempre o liga às amizades que construiu durante o período.

“É um bairro muito bom, que é um bairro que tem muita gente boa, muita gente ‘estudioso’, muita gente educada…”

Antes de morar no João XXIII, morava com o marido no Presidente Kennedy, e acabou se mudando, pois venderam a casa que tinham. Para se sustentarem nesse mundão, criaram um restaurante no bairro. Há 30 anos, é casada com Seu Sebastião, responsável pela culinária do Self-Service e Pastelaria O Tião.

No restaurante, o marido cozinha e ela atende os clientes com toda a simpatia que traz em si.

“Eu amo trabalhar com o povo. Agora, ele já gosta da cozinha. Eu já gosto do público mesmo, de mexer, chegar, conversar… onde eu chego eu faço amizade. Que isso é muito importante, né?”

Em meio a risadas gostosas e o cheiro de comida no ar, dona Auri cita muito a a amizade, chegando a falar que é melhor do que dinheiro achado por aí nas calçadas do mundo.

Na sua vida, coloca em primeiro lugar a divindade cristã. Em segundo, a amizade que tanto preza. “10 anos aqui e eu, todo mundo gosta de mim, o pessoal também acha que eu sou simpática, e eu gosto de fazer amizade.”

De volta ao mundo da culinária, ressalta que tem clientes que costumam ir ao local todos os dias. “A comida dele [Seu Sebastião] é muito boa, já é conhecido.” O marido, quieto, observa curioso a mulher conversar conosco, enquanto assiste os típicos programas de um sábado na televisão aberta do brasileiro. Prestes a fazer 60 anos, Dona Auri encerra falando que ama o que faz e que gosta do bairro.

“Porque, se eu não gostasse, eu não ‘morei’ 10 anos perto dele… aí vim pra cá… e gosto daqui.”

Infelizmente, saímos com fome. Tanto literal quanto de vivências pelo bairro. Mas seguimos, pois era a primeira de muitas!

A frente do restaurante; com preços — e produtos — atrativos, o restaurante tornou-se parte do cotidiano do João XXIII // Fotos: Marília Freitas

Zé e amigos

Zé é o de camisa branca em meio à toda a sua família e amigos, que estavam unidos na rua para assistir ao jogo // Foto: Marília Freitas

Rua Ribeiro Júnior, à esquerda da Desembargador Gomes Parente e à direita da Perdigão de Oliveira.

Ainda andando pelas ruas atrás de relatos, encontramos a seguinte cena: uma aglomeração de pessoas em frente à uma TV, regadas à bebidas alcoólicas e seriguela. As crianças, sentadas na rua, comiam ‘besteiras’ e brincavam. O que tinham em comum? O amor pelo time Fortaleza Esporte Clube.

Era sábado, dia 10 de novembro. O clube fez 100 anos no último dia 18 de outubro, e a partida do dia era de decisão da série B do Brasileirão: Fortaleza x Avaí.

Em meio às comemorações antes do pleno início do jogo, conseguimos ‘tirar uma pala’ com Francisco José Bezerra do Nascimento. Aos 38 anos de idade, trabalha como motoboy com entregas de quentinhas pelo bairro, e mora no João XXIII desde que nasceu. “Meus pais são quase que fundadores do bairro…” relata, acompanhado em seguida da surpresa da equipe.

“Aqui era praticamente ‘mato’… praticamente ‘mato’ não, era ‘mato’ só.”

Zé diz que demonstra seu afeto por meio de momentos como os que presenciamos: o da união com a família, para fazer alguma atividade conjunta. “Como aqui, a gente brincando, tira um dia pra se divertir, assistir o jogo… aí dia de domingo aqui a gente brinca aqui… um churrasquinho e pronto!”

Nós, que não somos bobos ‘nem nada’, nos convidamos para uma próxima ocasião. Em meio às risadas, Zé concorda com o auto convite e alerta que “de quinze dias ‘nóis tamo’ fazendo um churrasquinho aqui”.

Ao ser perguntado pela sua infância, relata que nunca andou muito pela praça do bairro mas, com euforia, esbanja nas lembranças dos anos 80: “A gente… pegava uma bola, ficava batendo aqui até… o dia todinho e… (risadas) ficava batendo bola, batendo bola… era bola, era peão, a minha infância… por isso que eu digo:a melhor década foi a de 80. Era peão, era ‘bila’, era bola…”

Enquanto entrevistávamos, a família posava para as fotos com felicidade estampada no rosto e na alma. Estavam ansiosos pelo início da partida, e a euforia contagiava a todos.

Zé continuou a relatar as mudanças que houveram no bairro, tocando na violência presente na cidade como um todo. “O bairro aqui… ‘num’ vou dizer que é aquela maravilha. Uma vez ‘mata um’ ali, mas não é aquela coisa como mata em todos os cantos.” Por fim, ressalta que o bairro é tranquilo e bom de se viver.

Quando estávamos terminando a entrevista, a partida começa, em meio ao entusiasmo da família. Horas depois, o Fortaleza Esporte Clube se consolidou como campeão da série B do Campeonato Brasileiro de 2018, com uma vitória de 1 x 0 sobre o Avaí. O gol da vitória foi feito no último lance do jogo, aos 49’.

Também horas depois, passamos novamente pelo local. Zé comemorava o título do time do seu coração com seus familiares, e o afeto se mostrava mais presente do que antes. Decidimos não atrapalhar e deixarmos para dar um “olá” novamente em um outro dia, para confirmarmos o churrasco. Pois mais contagioso do que a felicidade, só a nossa fome.

A aglomeração da família contagiou até os típicos torcedores e rivais — claro, que apenas em campo — do Ceará Sporting Clube; logo após, Michelle e Marcelo, da família, posam para a foto; algumas crianças se comportam do jeito que querem para controlar a ansiedade pré-jogo… // Fotos: Marília

Seu Francisco

Durante a entrevista, Seu Francisco contou que gosta muito de falar sobre esporte. Na foto, veste a camisa do time que torce // Foto: Marília Freitas

Rua Perdigão de Oliveira, esquina com a Rua Sabiá.

Francisco Claudino de Souza mora no bairro João XXIII desde que nasceu, há 56 anos. Trabalha vendendo frutas e verduras há 3 anos. Trabalhava na construção civil, mas se viu obrigado a procurar outra fonte de renda.

“Não tenho trabalho, tenho que me virar. Não tem trabalho pra pessoa depois de 50 anos, 40 anos.”

Sobre o bairro, afirma que “num tem bairro melhor não. Melhor que o João XIII não tem não. Eu acho que não. Num tem muita violência aqui”.

Em relação ao contato com as pessoas, Seu Francisco conta que, por crescer junto com as pessoas que moram no mesmo bairro, há a sensação de ser uma família. No seu local de trabalho também mantém boas relações.

“É bom humor, conversa muito, boa relação. Tem que ser assim, pra conquistar o freguês tem que ser assim.”

Conta que às vezes algumas pessoas vão no seu trabalho somente para conversar, “fazer zuada”, o que ele acha que “é bom porque distrai”.

Concorda que Fortaleza tem andado violenta, mas que esse tipo de contato [com vizinhos, colegas, fregueses] ajuda porque “a gente esquece as violências, fica conversando só sobre o passado da gente, né? o presente, e esquece a violência.”

Gosta de conversar sobre esporte (até estava com camisa do Ceará), sobre coisas e antigas e “várias coisas”, como seu Francisco mesmo diz.

Sobre a Praça do João XXIII, revela que ia mais quando era jovem e que, atualmente, é até difícil passar lá. Não demonstrou nenhum motivo específico, o que parece ser somente uma mudança de hábito.

Relembra, contudo, que frequentava o Clube de Jovens , algo que gostava muito de fazer, mas que, segundo ele, acabou por conta da violência.

Em relação ao estado atual da praça, Seu Francisco afirma que “hoje ela tá bem, antigamente tava mais violenta. Agora não. Tem uma cabine lá, né? Aí acabou a violência lá.”

Mesmo assim, ainda vê a praça como principal ponto de encontro do bairro, no que a repórter complementa: e aqui, né? [me referindo ao seu local de trabalho].

Seu Francisco ri enquanto organiza as frutas.

Seu Francisco em seu local de trabalho, que fica localizado perto da Praça do João XXIII // Fotos: Marília Freitas

Márcio e Ana Lúcia

Ana Lúcia sorri em meio aos objetos que garantem seu sustento; Márcio arruma alguns colares enquanto dá entrevista // Fotos: Marília Freitas

Rua Perdigão de Oliveira com Rua Melo de Oliveira, esquina da Praça do João XXIII.

Márcio também mora no bairro desde que nasceu, há 35 anos. Sempre morou no João XXIII, mas, atualmente, tem planos, de mudar para Itapipoca junto com sua esposa, Ana Lúcia.

“Provavelmente vou mudar pra Itapipoca. Construir uma casa lá, né?, no interior, através de muitos trabalhos, muito suor. Eu e a minha esposa ali, Ana Lúcia.”

Sobre morar no João XXIII, respondeu achar “muito bom”, após Ana Lúcia ingadar do outro lado da banquinha onde trabalham:

“Ei, que tu acha, Márcio? Tu não acha bom não morar aqui? Aqui é elite com subúrbio”

Márcio desconversa e vai atender um cliente, o que faz Ana Lúcia assumir a entrevista.

Ainda sobre a pergunta anterior, afirma que é um dos “melhores bairros aqui do subúrbio” e que, apesar da violência em toda a cidade, o João XXIII tem estado mais tranquilo. Ana Lúcia comenta algo interessante, que é o fato do João XXIII estar “rodeado de bairros perigosos”, o que ela reforça citando o Grande Bom Jardim.

Lúcia também mora no bairro desde que nasceu e há 6 anos trabalha com seu esposo na Praça, em uma banquinha de artigos diversos. Sempre trabalhou em comércio, mas optou por abrir o seu próprio, algo que considera muito bom, e “só não tá melhor por causa dessa crise, né? Que as vendas caíram muito.”

Márcio e Lúcia trabalham tanto na Praça quanto em feiras que acontecem pela cidade. Optam por ir na praça do João XXIII, pois moram há três quadras de lá, além de ser um “ponto de encontro, vem muita gente pra cá, né? Tem um rodízio de mais pessoas do que na feira.”, afirma, antes de reforçar que a situação não está melhor por causa da crise.

Márcio e Ana Lúcia trabalham vendendo artigos que vão desde bijuterias até bolsas e mochilas. Na tarde de sábado (10/11), a praça estava bastante animada, pois era o dia da cerimônia da Primeira Comunhão na Paróquia Imaculada Conceição

Dona Gizeuda

Dona Gizeuda, diariamente, às 18h, senta na frente de sua casa e observa o movimento da rua // Foto: Marília Freitas

Rua Félix Cândido, lado a lado com a Desembargador Gomes Parente e a Perdigão de Oliveira, em frente à Praça do João XXIII.

Ali, faz morada à Maria Ribeiro Duarte, nascida em 7 de janeiro de 1927. Mora em Fortaleza desde 1950 e mudou-se da Bela Vista para o João XXIII no dia 8 de Dezembro de 1962. A exatidão e a vivacidade para rememorar tempos distantes demonstram o apego e o carinho àquilo que construiu, àquilo que importa. A lembrança do falecido marido, Francisco Alves Duarte, amigo de toda uma vida, é a que mais lhe comove.

Falando sobre morar no João XXIII nesses 56 anos de residência, ela afirma:

“Não tenho o que dizer do bairro não, e nem do povo, tudo são ótimos, não tem nada ruim pra mim. Soube me respeitar e eu respeitar o povo…”

Em relação à convivência, ela fala sobre o hábito de sentar à calçada que faz frente a praça, relatado durante a entrevista na outra ponta, junto das vendas da vizinha de longa:

“Eu sempre fico ali, na calçada. Quem conversar comigo eu respondo, né? Eu só fiz o quinto ano, mas eu tenho educação, graças a Deus! Deus é bom e Deus é misericordioso”

Gizeuda é o nome pelo qual o repórter sempre a conheceu, normalmente acompanhado de “dona” ou “madrinha”, recebido ainda na infância pela mãe e pelas tias — explica posteriormente sua neta. Mãe e bisavó, divide terreno com uma grande família, da qual é a predecessora.

Dona Gizeuda sentada junto às vendas de sua vizinha, na esquina da Félix Cândido com a Desembargador Gomes Parente // Fotos: Marília Freitas

Heloísa

Heloísa foi criada e vive numa casa formada majoritariamente por mulheres. Na foto, sua tia Sueli Cirino, ao fundo// Foto: Pedro Victor Lacerda

Rua Ribeiro Júnior, quase esquina com a Araripe Macedo.

Heloísa Cirino tem 47 anos e mudou-se da Parangaba, onde morava na Av. José Bastos, para o João XXIII em 1997. Seus percursos são constituídos por uma história de fé e devoção, nos quais estar em atividade numa igreja a colocou em um local de contato com a comunidade.

Logo após terminar a sua Crisma, em 1992, rapidamente engajou-se nas atividades pastorais na Paróquia Bom Jesus dos Aflitos, na Parangaba, à época matriz da igreja da Praça do João XXIII — já que era uma Capela. No antigo endereço, a fundação da Pastoral do Idoso foi o ponta pé para essa nova forma de se aproximar de Deus.

Ela conta que, após insistentes tentativas de seu avô na lotérica estadual, o número da sorte veio e possibilitou a ida ao novo endereço, deixando a casa de aluguel. Heloísa Cirino foi criada e vive numa casa composta em sua grande maioria por mulheres, também atuantes na igreja: “são exemplos de mulher pra mim”. Algumas tentaram o matrimônio e depois se divorciaram, outras sempre solteiras e, todas, sempre seguindo suas vocações, dentro e fora da igreja.

Sua história se entrelaça ainda mais com a do João XXIII a partir dessa vinda, período no qual passou no vestibular e também iniciou a catequese infantil, nos encontros para a Primeira Comunhão.

Heloísa também explica o seu papel de educadora como catequista de Crisma, atualmente, e em como as escolhas pessoais devem ser ponderadas junto à atividade religiosa, devendo haver maturidade e não pressão familiar na devoção e na fé. Acredita que os Sacramentos ainda são vistos como troféus a serem conquistados pelos pais. É aí que seu trabalho interfere: conversas abertas sobre a vontade, a vida na igreja e a possibilidade de caminhos a serem seguidos, dentro ou fora, guiam sua orientação. Orgulha-se do que tem feito:

“É um trabalho maravilhoso, ele me completa. Quando a gente é chamado para uma missão por Deus, e o meu caso é ser catequista, com o passar dos anos, não é como se fosse você doando, é como se fosse você recebendo”

A Engenheira de Alimentos, hoje micro empresária experimentando novos rumos da área que escolheu para a graduação, também sente os vários percalços de se viver em uma periferia, especialmente por esse olhar diferenciado, em sua posição, que procura ter com a comunidade.

Heloísa acredita numa conciliação entre as escolhas e vontades pessoais com a vida religiosa, de maneira que se encontre plenitude naquilo que se é e faz // Fotos: Pedro Victor Lacerda

Confira nossa galeria do foto-afeto.

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