Tecendo a resistência, bordando afetos

Coletivo de mulheres dá oficina sobre bordado urbano em Festival

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9 min readDec 3, 2018

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Os trabalhos iniciais // Foto: Marília Freitas

Por gabriela feitosa , Marília Freitas e Pedro Victor Lacerda

No Festival

O Festival Concreto — Festival Internacional de Arte Urbana chegou em sua 5ª edição, que aconteceu nos dias 16 a 24 de novembro, em Fortaleza. Gratuito, o evento contou com a participação e reconhecimento de artistas nacionais e internacionais, que buscam, por meio de sua arte, trazer intervenções para o ambiente urbano.

Nesta edição, o evento concentrou-se no Centro da Cidade, ocupando locais como a Praça do Ferreira e a Casa do Barão de Camocim. Algumas atrações, como o Wà Coletivo, fizeram suas intervenções de forma itinerante, atuando por vários locais ao mesmo tempo. Funcionou, então, “como um convite para ocupar ainda mais a cidade”, segundo palavras de Narcélio Grud, artista e idealizador do festival.

Além das tradicionais pinturas e intervenções, o festival trouxe novos personagens para interagir com o fluxo urbano, abrangendo várias possibilidades de relações arte e cidade. Debates, rodas de conversas e outras foram realizadas durante o festival para entendermos mais sobre as políticas públicas dos locais públicos, e é claro, sobre arte.

Oficina

Shayná e Jessy são duas das 13 mulheres que compõem o Wà Coletivo, no Crato, interior do Cariri // Foto: reprodução

Ao quarto dia do Festival, na segunda-feira, 19, acontecia o primeira dia da oficina de bordado do Wà Coletivo. Shayná e Jessy, ambas com 20 anos e cursando Design na Universidade Federal do Cariri (UFCA), no Crato, ministravam o espaço que trazia uma releitura da prática artesanal no Porto Iracema das Artes. Sobre a oficina, Shayná comenta:

“É uma troca, na verdade. A gente veio dar a oficina, mas não vamos ensinar alguma coisa, a gente vai trocar conhecimento com a galera.”

Ela também explica que foram ao Concreto por convite e, além da empolgação e felicidade que sentiram em participarem do Festival, ficaram ainda mais surpresas ao descobrirem que já eram conhecidas por parte do participantes, que as acompanhava em redes sociais como o Instagram. Dentre os que estiveram presentes, também já havia algum interesse ou experiência com o bordado.

No dia, o material consistia em traçar a lã em telas sintéticas, com desenhos de 5 mãos e gotas que seriam fixadas nas paredes do centro da cidade com pregos e martelos. O coletivo também trabalha com materiais diferentes, como malhas, peneiras e grades, normalmente contando com a ajuda de um retro projetor para auxiliar o desenho de grandes tamanhos — na oficina, no entanto, os desenhos foram feitos à mão.

Os trabalhos continuam // Foto 1 e 2: Marília Freitas; Foto 3 e 4: Reprodução

As imagens escolhidas para bordar compõem uma expressão intrínseca ao contexto político, que é “a questão de brotar, da resistência, do florescer”, afirma Jessy. Como arte de rua, o bordado urbano também traz consigo uma prática do desapego, que envolve a exposição e o entendimento de participar de uma intervenção pública, expondo e fixando a costura final às vistas de quem passa nas cidades.

O Público

Viviane Morais tem 27 anos e estava presente na oficina de bordado oferecida pelo Coletivo na segunda (19).

Ela já fez dois cursos, um de bordado avançado e outro para iniciantes. Mas acredita não existir muitas diferenças entre um e outro. “Tem a questão dos pontos né…. Se tem mais, não sei… e aí, dizem que tem essa divisão porque ‘ah, tem pontos nesse e tem pontos em outro’. E aí… eu comecei a bordar com isso.”

Vivianne relata sobre sua experiência com o bordado // Foto: Marília Freitas

Ela soube do evento por meio do Instagram do Festival, e ficou surpresa ao saber que a oficina que foi oferecida fazia parte do Wà Coletivo, que já acompanhava pela mesma rede social. “Eu achei massa o lance de botar em grandes proporções. Só que aí eu nem tinha associado ainda… que era do próprio coletivo que eu já seguia [nas redes sociais]. E é só de mulheres, né?”

Ao perguntarmos sobre qual a importância da representatividade feminina na arte, Vivianne ressalta algo que passou completamente despercebido pelos nossos próprios olhos durante o período no qual ficamos no Festival. “Onde cê vê, ó, visivelmente são só homens” e nos mostrou os artistas que estavam grafitando no local no dia em que estávamos, era, em sua maioria, homens. “É, a maioria é homem mesmo.”

Vivianne considera o bordado como uma prática meditativa. Como é uma prática de autocentramento, o bordado exige uma concentração que não pode ser interrompida por outras tarefas. “Uma das coisas que eu mais fiz esse ano foi bordar. Porque eu tava com outros problemas. E aí, passava! Pelo menos naquele momento em que eu tava bordando. Porque você fica ali, concentrado… Eu tenho que voltar e focar só nisso.” e encerra o seu relato com o bordado, em meio às risadas com um copo de café na mesa.

A construção do bordado não para, e funciona como uma forma de relaxar em meio ao caos // Foto: Gabriela Feitosa

Caminhar

Perto de completar seus 3 meses, o coletivo conta com 13 mulheres e, por questões de demanda e funcionamento, está fechado à inclusão de novos membros. As ações e atividades, no entanto, são totalmente abertas ao público. Para atender às atividades, foi necessário dividir-se, tendo uma outra integrante expondo uma amostra fotográfica. Cleo, professora do curso de Design da Universidade Federal do Cariri (UFCA), também integra o coletivo e, a partir da oficina que ministrou, formou o Wà Coletivo com as outras participantes.

“Wà significa ‘caminhar’ na língua kariri, dos povos indígenas”, conta Jessy. Shayná também explana que a formação só com mulheres não foi algo pensado: desde quando tiveram a primeira oficina com Cleo, nenhum homem demonstrou interesse em participar. A segunda oficina aconteceu exatamente no Festival Concreto, revelando as proporções a que chegaram mesmo no começo e o motivo para a animação das duas estudantes.

Vídeo sobre o coletivo // Vídeo: Wà Coletivo

“Bordado é muito aquela coisa pequenininha, delicada, dentro de casa”, explica Jessy, sendo a proposta das representantes do coletivo diferenciada pelas grandes proporções do bordado urbano. Shayná relata que essa experiência com a arte urbana é algo recente para ela, tendo aprendido stencil com colegas da Universidade e, logo em seguida, integrou o coletivo. A partir da formação, junto das outras integrantes, começaram a se perceber enquanto artistas de rua, e a observar como eram lidas socialmente, especialmente com o fator gênero.

Ser mulher na Arte Urbana

Discussões sobre o espaço da mulher na arte têm sido crescentes graças às recorrentes reivindicações feitas por elas. Se antes o papel da mulher era somente de observação ou, com frequência, inspiração (e é importante problematizar isso), hoje já existe um mínimo deslocamento de narrativas, o que faz com que mulheres estejam à frente de produções artísticas fantásticas.

Ainda assim, o espaço da arte continua amplamente ocupado por aqueles que sempre puderam produzir com liberdade. Mulheres estão constantemente enfrentando obstáculos nos espaços e tendo suas produções historicamente invisibilizadas. Quando Jessy e Shay formam um coletivo de mulheres que sai às ruas para expressar sua arte, nos mostram dois fatores importantes:

1. A relação mulher-cidade é uma relação muito particular;

2. A relação mulher-cidade é uma relação extremamente poderosa.

Registro do sábado, dia em que as mulheres da oficina saíram às ruas para colar os bordados // Foto: Reprodução

Ao ser perguntada sobre a inserção da mulher na Arte Urbana, Jessy nos conta que, até mesmo dentro dessa esfera da arte e apesar do crescente interesse feminino, a quantidade não é equitativa. As programações de alguns festivais continuam dominada por homens e, principalmente no Bordado Urbano, que em sua maior parte é construído por mulheres, a invisibilização é maior.Para Jessy, o bordado mostra “uma força feminina”. A importância de ser um coletivo de mulheres aparece nas descobertas constantes umas com as outras.

Jessy // Foto: Marília Freitas

“Acima de tudo é entender a luta da outra, é entender muito o que a outra passa. Eu, como mulher que, desde minha vinda aqui pro Cariri, passei por muitas dificuldades, dentro do coletivo houve a sororidade, houve a força, ajuda uma à outra. Enfim, essa empatia, compreensão que as mulheres, principalmente atualmente, têm uma com a outra. Uma coisa que o feminismo trouxe pra gente, essa questão da irmandade. E o coletivo fortalece muito isso”.

Jessy ainda nos aponta outra problemática: ser mulher artista e estar nas ruas é ter que enfrentar constantes violências. Em uma das intervenções, ouviram de homens nas ruas coisas como “quer uma ajudinha?”, “ah, vocês conseguem fazer isso?”, em relação ao fato de as meninas estarem usando escadas, martelos e pregos para colocar os bordados nos muros.

Quando Jessy, Shay, Viviane e todas as outras mulheres presentes na oficina resolvem bordar um símbolo que é reflexo de um contexto social — Ninguém solta a mão de ninguém — e colocá-lo nos muros da cidade, significa que mulheres têm refletido política de muitas formas, inclusive através da arte. Utilizar a arte como resistência e tecer afetos através dela, é um dos milhões de ensinamentos incríveis que só mulheres podem trazer.

No WhatsApp: despedidas, agradecimentos e pedidos de volta

Uma das formas que as meninas encontraram de manter contato com quem estava na oficina foi pelo WhatsApp. Durando a semana toda, a oficina teve final na sexta-feira (23). No sábado, as mulheres saíram para colocar os bordados em diversos pontos da cidade.

Sobre isso, Jessy afirmou que, inicialmente, buscam ruas do Centro para as intervenções. O objetivo é chegar em locais abandonados e levar o contraste. “Uma parede muito suja, um lugar muito abandonado, descascado. Esse contraste do bonito com o feio”, contou. Mesmo assim, também costumam intervir em locais com autorização, a exemplo da casa de um artista no Crato. Bordados com teor mais político sempre vão para locais públicos, como restaurantes. “Onde tiver espaço pra colocar, a gente leva arte”, ressalta Jessyca.

Em Fortaleza, as meninas intervieram tanto no local do Festival (Porto Iracema), quanto em locais espalhados pelo Centro. Avenidas como José Avelino e General Bezerril (Próxima à Praça dos Leões), contam, hoje, com artes do Wà Coletivo.

Mesmo depois de finalizada a semana, mensagens continuavam chegando no grupo BordadoArteUrbana. Dentre as inúmeras fotos compartilhadas, diversas frases de agradecimento pelos momentos divididos. Viviane, que estava na oficina e foi entrevistada por nós, até animou de começar uma rodinha de bordado nas mesinhas do Porto Iracema. “É muito melhor bordar junto”, disse ela na mensagem — no que as outras meninas responderam com entusiasmo.

Dia e horário decididos, esperamos por mais fotos.

Fotos da intervenção, compartilhadas no grupo // Fotos: Reprodução

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