A assexualidade no orgulho LGBTQIAPN+.

Gabriella Feola
Afluências
Published in
11 min readJul 1, 2022

“Existe, na sociedade como um todo, essa noção de que o sexo tem que ser essa agulha que vai costurar a experiência afetiva. Não ter essa agulha inaugura novos desafios. Então como eu vou me vincular, se eu não tenho essa agulha para costurar? Meu tipo de vínculo vai ser como, se o pessoal considera que amor sem sexo é amizade?”

Encerrando o mês do orgulho e, assim como nas falas muitas vezes citamos a sigla parando no T de LGBT, muitas vezes as discussões e pautas também param por aí. Quantas vezes pudemos ver e ouvir as pautas de quem faz parte do A? Muitas pessoas da comunidade não sabem ou esquecem o que significa o A.

Seja por desinformação ou por displicência, a assexualidade segue invisibilizada fora e também dentro do movimento LGBTQIAPN+.

Assexualidade, assexuais, assex ou ace.

Mas “assexuado”, não!

Começando pelo be-a-ba: todas as pessoas são sexuadas, possuem sexo, orgãos genitais, (sejam úteros, vaginas, pênis ou variações do espectro intersex — o I da sigla). Todas as pessoas são sexuadas, algumas delas são assexuais.

Minha preferência sexual é "não"

O Coletivo Abrace (coletivo brasileiro de assexuais) define assexualidade como

“ausência total, parcial, condicional ou circunstancial de atração sexual, toda identidade em que o sexo não é o referencial primário do desejo e da atração voltados para um relacionamento íntimo por outra pessoa.”

É importante entender a assexualidade como um espectro que envolve nuances muito diferentes de pessoa para pessoa, ou até mesmo de acordo com o momento de cada pessoa.

Como assim? Na prática, quem são? Como vivem?

Igor Marques Santos, é psicólogo formado pela Universidade de São Paulo e começou a suspeitar que era assexual logo depois de terminar o ensino médio. Ele notava ser diferente da maioria dos adolescentes por não ter interesse em iniciar ou cultivar as descobertas da vida sexual.

“E eu levei muito tempo para começar a beijar pessoas. Meus colegas estavam nessa fase e eu pensava “legal pra vocês”, mas para mim não clicava. Não me identificava como hétero, mas também não me via como gay. Eu tinha afeto pelas pessoas independente do gênero, mas não clicava para mim esse interesse de ir pro sexual.”

Se sexo sem amor existe, porque amor sem sexo não pode existir?

Nas nomenclaturas, podemos dizer que os outros adolescentes, os que têm a atração sexual como algo constante e frequente seriam os “alossexuais”.

É muito comum concluir equivocadamente que pessoas assex (forma diminutiva de assexuais) não se relacionam, ou que quando se relacionam, não transam. E até que, se transam, não sentem prazer sexual. Mas essa suposição é equivocada.

Os relacionamentos podem ser construídos e mantidos independente das práticas sexuais. Muitas pessoas assexuais vão ter interesses afetivos, com orientações homo, hétero, bi ou pan. Algumas serão arromânticas, essas sim, não vão apresentar interesse em parceirias românticas, como já diz o nome.

Entendendo a diferença: comportamento sexual X sexualidade

Entre as pessoas assexuais que constroem relacionamentos, muitas vão ter práticas sexuais ocasionais, podendo ser inclusive que essa relação sexual parta do desejo e da atração dela, afinal a assexualidade não depende da ausência total de desejo. A atração ocupa um papel coadjuvante, mas que às veze dá as caras.

Existme sub-definições dentro do espectro assex, a depender do padrão de condições ou ocasiões em que as pessoas assex se sentem mais inclinadas a terem atrações sexuais.

Monica Lourenço, de 24 anos, se define como greysexual

“o que significa que eu tenho dificuldade de ter um desejo sexual, mas que em algumas condições eu acabo desenvolvendo esse interesse, seja pelo físico, pelo intelecto, ou pelo contexto que o encontro aconteceu.”

Aqui é chave que a gente saiba diferenciar o comportamento sexual (as práticas que uma pessoa têm) da orientação ou da sexualidade da pessoa (qual a atração que ela sente, como ela se identifica).

Um exemplo: uma mulher lésbica pode ter passado 10 anos casada com um homem, praticando ocasionalmente sexo com ele (comportamento sexual), enquanto na verdade ela é, sempre foi e sempre será lésbica (orientação sexual).

Assim como esta mulher não deixou de ser lésbica por ter mantido uma relação com um homem, a pessoa assexual que prática sexo não o deixa de ser pelo comportamento que teve.

Greyssexual sentem atração ocasionalmente. Spikesexuals têm pícos de desejo em momentos específicos, seguidos por períodos de desinteresse. Freysexual é quem sente atração em situações de sexo casual, mas não em relações afetivas e consolidadas. Existem ao todo 14 sub identidades dentro da assexualidade (até agora).

O psicólogo Igor Marques destaca que, para muitas pessoas da comunidade, foi importante encontrar essa subdefinição para compreender um pouco melhor o que acontece consigo. Para tantas outras, as subdivisões não ajudam, afinal, uma caixinha podem não dar conta de abraçar toda a complexidade de vivências dessas pessoas.

Mais importante do que saber todos os nomes é refletir que ter o sexo como um pilar das relações afetivas é uma norma, e que assim como outras, não serve para todos. Sempre e quando essa norma for imposta como algo uniforme, vai gerar feridas, opressões, e marginalizações.

Um pequeno dicionário: resumindo os nomes

Bandeiras da assexualidade

Assexual: pouco ou nenhum desejo sexual. também apelidados de ace

Arromântico: pouco ou nenhum interesse em relações românticas. atendem pelo apelido de aro.

Alossexual: pessoas com interesse e desejo sexual (todos os que não são assexuais)

Assexualidade na vida real de gente real.

Monica é assexual e birromântica. Ela estuda de comunicação e fundou a agência Macambira. Hoje mora em Campina Grande, na Paraíba, mas foi criada numa comunidade rural em Maçaranduba.

“Lá a realidade é que mulher nasceu para casar e tem que carregar o peso de casamento fracassado. Eu já me sentia diferente das outras meninas, pensando nas questões de liberdade, de querer ser alguém para fora do casamento.”

Monica trabalhava na agricultura familiar desde os 9 anos e via nos estudos a chave para uma vida que ia além do casamento. Aos 16, quando conseguiu um emprego no sindicato dos trabalhadores rurais, sua família não aprovou: “diziam que eu “ia manchar o nome de família”. Quando eu entrei na faculdade, tive que romper com a família família para ir estudar.”

Enfrentando uma adolescência atribulada, com muita luta, responsabilidades, estudo e trabalhos, não havia espaço para pensar em relacionamentos. Aos 18, já morando sozinha e cursando a faculdade, Monica começa a se questionar porque ela nunca teve ou se interessou por relacionamentos.

“No início, eu achei que eu tinha algum problema psicológico, falavam que podia ser um trauma de infância, problema hormonal, alguma coisa que eu nem sabia que eu tinha. Quando eu comecei a ter relações com homens, eu me obrigava a ter relações sexuais porque eu queria ‘ resolver aquele problema’.”

Igor também conta que enfrentou as pressões que sofreu no sentido de viver uma vida sexual.

“A coisa começou a ficar mais complexa para mim durante a faculdade. Tinha muito essa coisa da “libertação”, mas que estava ligada a gostar de sexo. Parecia que era questão de descobrir de qual gênero eu gostava. E aí eu comecei a tentar explorar e entrei numas transas muito ruins, era uma vida sexual horrível. Eu me perguntava se eu estava escondendo algo de mim mesmo…”

O desinteresse pelo sexual visto como falta, como falha

A assexualidade entra na sigla LGBTQIAPN+ porque é também uma forma de ser e se relacionar que foge da norma, especificamente da sexonormatividade. Isto é, da noção que ter sexo é uma norma padrão e neutra e que tudo que seja diferente disso é “anti-natural”, errado ou problemático.

Se você está fora desse jeito padrão, você é retaliado de várias formas:

Existe uma desumanização e também uma infantilização. Adulto tem que gostar de sexo. Quem não pratica sexo seria infantilizado, incapaz de se relacionar. Isso foi uma questão enorme para mim: “Então eu sou mais bobo? Sou menos adulto? Menos sério que as outras pessoas?” — comenta Igor

Muitas pessoas assex são submetidas a terapias hormonais. No recorte entre as mulheres, entra a questão de ser pressionada por “ser menos mulher por não dar um filho para a família”, ser “frígida”.

Monica relata que foi muitas vezes questionada por amigos e amigas de dentro e fora da comunidade LGBTQIAPN+, que perguntavam se não seria um problema físico ou psicológico. A sensação que ela descreve, antes de se entender assexual, era a de estar “quebrada”. Ao ler sobre questões de assexualidade, Monica passou a se encontrar sentido para o que sentia.

Ela buscou terapia psicológia, para elaborar questões e lidar com as violências que sofreu no ambiente familiar. E conta que depois de ter certeza que era assexual e que não havia nada de errado nisso, resolveu ir ao médico para, caso fosse contestada, ter provas que não sofria de nenhum problema de saúde.

Das violências sofridas

O psicólogo Igor Marques comenta que além dos questionamentos, uma série de pessoas assex, assim como as demais pessoas LGBTQ vivenciam violências sexuais de caráter "corretivo": “entra naquela estrutura de se você não gosta de sexo é porque não encontrou a pessoa certa” e “eu vou provar para você que você não é assexual”.

Igor ainda destaca a importância de entender a assexualidade como um tema que tem muitas nuances tanto dentro da própria orientação quanto em relação a como os recortes de gênero, raça, classe, regionalidades atravessam as pessoas de formas diferentes.

“O homem que não transa é categorizado como gay, a mulher é frígida. Em pessoas não-brancas isso esbarra muito na hypersexualização e vira uma camada mais de preconceito: como essa mulher negra ou esse homem negro não gosta de sexo? No entanto se esse homem for branco ele é visto como “puro”, se essa mulher for negra, é visto como se ela estivesse enganando, mentindo para alguém.”

Construindo as relações sem agulha do sexo

Vivemos em uma sociedade em que a maioria das pessoas são alossexuais (ou seguem uma lógica sexonormativa por nem seguir o padrão. Sendo assim, existem ainda muitos desafios que atravessam as construções de relacionamentos para as pessoas assexuais.

Pessoas assex não se relacionam só entre si, como acontece em todas as orientações sexuais: um homem hétero pode se relacionar com uma mulher bissexual, assim como um casal de dois homens pode ser formado por um homo e outro pansexual.

Monica conta que todas as suas relações foram com pessoas alossexuais e que, em Campina Grande, só tem contato com pessoas assexuais virtualmente. Ela relata as dificuldades de respeitar seus próprios limites e constuir relações saúdáveis.

“Eu já fiquei com muitas pessoas, mas só um relacionamento eu realmente desejei ter. Não foi um relacionamento muito saudável porque eu não impunha limites. Eu fazia [sexo] por prova de amor, sem ter vontade. Eu gostava tanto dela que eu achava que tinha que abrir mão de algo para sustentar a relação.

Depois de muito sofrimento, eu não me permito ultrapassar meus limites. Eu percebo uma dificuldade muito grande das pessoas respeitarem meu ciclo quando meu corpo não se sente confortável em ser tocado, e a pessoa começa a associar a “não gosta mais de mim, tava indo tudo tão bem e você mudou do nada”. Quando chega fase, eu deixo a pessoa livre. Se não tem como respeitar meu ciclo, não tem mais como ir pra frente."

Se entender assexual foi para ambos, Igor e Monica, uma virada de chave para entender e construir uma vida mais saudável com suas próprias assexualidades.

“Eu brinco que minha vida sexual melhorou muito depois que eu entrei em contato com a assexualidade. Tem essa noção de que vida sexual boa e saudavel é com muito sexo… Não é, é sobre qualidade das relações, contexto. Isso faz parte da saúde sexual.”, diz Igor.

Repensar a norma sexual é bom para todo mundo

Em ‘A história da sexualidade’, Foucault dizia que uma sociedade em que é preciso prestar conta do que se faz e do que se gosta sexualmente, não é uma sociedade que dá liberdade para esta sexualidade existir.

Que liberdade sexual é essa que não aceita o direito de não querer, de não se interessar? Que diversidade é essa que não abraça as formas de relacionamento não-sexuais, ou não centradas no sexo? Essa é uma discussão muito importante para termos, alo e assexuais, LGBTQIA+ ou não.

Igor traz reflexões riquíssimas sobre como pensar a assexualidade o ajudou construir relações mais significativas:

“Na minha história (que sou branco, não sou pobre) esse questionamento produziu uma mudança muito interessante porque eu entrei muito mais em contato com o que seria o amor pra mim, como eu queria amar alguém. A norma não me cabia, nem a hétero norma, sem a sexonorma. Hoje eu posso falar “transar não é amor pra mim”. Não signifca que eu ame menos, só não é a minha forma de amar. Eu vou me vincular a pessoa abraçando, vendo vídeos de matemática, dormindo de conchinha, trocando receitas."

As invalidações da assexualidade também na comunidade LGBTQIAP+

Monica e Igor são parte da comunidade LGBTQIA+ não só por suas assexualidade, mas também por suas orientações bi afetivas. Eles concordam que apesar de enxergarem mais espaço para discutirem a assexualidade dentro da comunidade LGBTQIA+ que fora dela, ainda existem muitos obstáculos para que a causa assex seja de fato levada em conta.

“Eu não sei se eu consigo dizer que a comunidade LGBT é um espaço que eu consigo me se sentir acolhida. É um espaço em que é mais fácil falar sobre questões de gênero, mas ainda é dificil de assimilarem a assexualidade. Pessoas que são bi, lésbicas, trans ou héteros, elas tem suas particularidades, mas elas vivem suas sexualidades pelo sexo."

Monica conta que entre a comunidade LGBTQUIAP+ já se deparou com desafios importantes, como pessoas que reiteradamente insistiam em usar o termo “assexuada”, pessoas que levantavam questionamentos de normalidade médica ou de “mas você já experimentou, para saber?”, questionamentos que, se direcionados a pessoas homossexuais, seriam evidentemente uma violência.

“Como assim você tá querendo transar? Você não disse que era assexual?”

Um dos grandes desafios e incomodos para pessoas assexuais é enfrentar os questionamentos e invalidações das suas identidades sempre e quando atos sexuais acontecem. Isso acontece incluisive dentro da comunidade LGBTQIA+ de maneira até similar com pessoas bissexuais: espera-se que se siga uma norma muito binária dentro da sua letra da sigla [ou gosta, ou não gosta de sexo].

“A pessoa assex as vezes transa, só que o sexo vai ter outro significado: as vezes pode entrar como um presente para o outro, como uma forma de estar junto da pessoa, como uma brincadeira. Se você falar que é assexual e depois transar “epa, vai ser preso pela polícia da sexualidade”. — Comenta Igor

Igor analisa que a proximidade com a comunidade LGBTQI+ vai variar muito entre os ace:

“Tem assexuais que não se consideram LGBT porque tem esse distanciamento muito grande. Parece que ser LGBT é sobre ter relações sexuais fora da heteronormativadade e que não está cabendo falar sobre o quê não envolve práticas sexuais. Não cabe uma crítica à sexonormatividade

Outra parte fala que temos que estar aqui porque não pertencemos a uma maioria sexual. Temos que estar aqui para que os LGBTQ falem sobre sexonormatividade.”

Ponderando sobre a diversidade de opiniões e aberturas dentro da comunidade LGBTQIAPN+, o psicólogo avalia que entre mulheres lésbicas e bissexuais é mais frequente ver assuntos sobre assexualidade sendo compreendidos (vide essa bi que vos escreve). E que entre homens gays, é muito raro.

“Entre as pessoas trans, tem uma intersecção importante também, até para desvincular a hypersexualização. Fala-se sobre como nem a norma de gênero e nem as normas de práticas sexuais são fixas. Tem essa contraposição à objetificação.”

A assexualidade como potência e a educação sexual como caminho

Muitas mudanças estruturais são necessárias para avançarmos na luta LGBTQIAPN+ como um todo. Queremos garantir não só os direitos sexuais e reprodutivos, mas também direitos humanos básicos: o direito a vida, ao respeito, aos estudos, a dignidade, a saude mental.

Falar sobre assexualidade nos abre portas para conversar sobre existências e amores mais diversos, para relfetir sobre pressões e normativas sexuais que oprimem e desancadeiam inúmeros problemas.

Para superar estes desafios como um todo, sabemos que educação para sexualidade, comunicação compreensiva e inclusiva e políticasc públicas são essenciais. Caminhamos nessa direção e o passo 0 é dar visibilidade, compreender e abrigar mais identidades as frentes de lutas LGBTQIAPN+.

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Gabriella Feola
Afluências

Jornalista meio empreendedora, autora do livro Amulherar-se, cursa mestrado na Universidade de São Paulo, estudando Comunicação e Educação da sexualidade.