Violência obstétrica: quais mudanças estruturais precisamos cobrar para evitar e prevenir casos hediondos?

Gabriella Feola
Afluências
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9 min readJul 26, 2022

O caso flagrante de estupro durante o parto, cometido pelo anestesista Giovanni Quintella, chocou imensamente o Brasil há duas semanas. A equipe de enfermeiras, após acompanharem dois partos com condutas suspeitas, conseguiu posicionar um celular para filmar o ocorrido, coletando provas suficientes para a prisão flagrante.

Imagem do médico Giovanni Quintella Bezerra, que anestesiou três mulheres demasiadamente durante o parto, sendo flagrado abusando sexualmente de uma delas.

Esse caso não é pontual, ele é parte de uma estrutura de violências obstétricas que seguem acontecendo. Então, passado o choque e as discussões sobre esse caso, fica uma inquietação:

Quais são as mudanças estruturais que precisamos cobrar para interromper ciclos de naturalização das violências contra parturientes?

Ilustração divulgada pelo Metrópoles, com dados da Pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Públicos, da Fundação Perseu Abramo

Neste texto queremos propor uma reflexão crítica sobre a responsabilidade das instituições — hospitais, maternidades, casas de saúde — sobre as violências sexuais e obstétricas que acontecem dentro delas.

A violência obstétrica é recorrente, é estrutural e, nos últimos anos, têm sido denunciadas com certa frequência. Ainda em 2020, as imagens do obstetra Renato Kalil xingando a influenciadora Shantal Verdelha durante o seu parto chocaram milhões de pessoas: “Filha da mãe, ela não faz força direito. Viadinha. Que ódio. Não se mexe, porra…”

Imagem do parto da criadora de conteúdo digital Shantal Verdelha, que sofreu violência obstétrica do médico Renato Kalil.

O médico apressava o parto, ofendia a mãe, recomendava um procedimento desnecessário e ainda sugeria ao marido da influenciadora que a vida sexual do casal seria negativamente impactada pelo parto.

Definindo, violência obstétrica são todas as formas de abuso físico, verbal ou psicológico relacionados ao momento do parto. Ignorar as necessidades e/ou vontades da parturiente é uma forma de violência obstétrica, assim como forçar procedimentos desnecessários e invasivos como a manobra de Kristeller ou a episiotomia, que coloquem em risco a vida e o bem estar do bebê ou da parturiente.

A quantidade exacerbada de anestesia aplicada por Giovanni Quintella, sem recomendação médica ou consentimento, impedindo a parturiente de presenciar o nascimento do filho e também acrescentando um risco para a saúde de ambos, já constitui uma violência obstétrica. No entanto, nesse caso, o crime fica ainda mais hediondo diante do estupro cometido ao longo do parto.

Diante de um caso extremo precisamos também estar conscientes das formas mais recorrentes e naturalizadas de violências obstétricas que não são raras e nem poucas. Estima-se que 45% das pacientes atendidas na rede pública, e 30% das atendidas na rede privada sofrem violências durante o parto.

Ilustração divulgada pelo Metrópoles, com dados da Pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Públicos, da Fundação Perseu Abramo

Quando um caso hediondo vem à tona, vemos as instituições declararem seus repúdios e prometerem averiguações, como fez a Fundação Saúde do Estado do Rio de Janeiro e a Secretaria de Estado de Saúde, responsáveis pelo Hospital da Mulher de Vilar dos Teles.

No entanto, onde está a responsabilidade das instituições em prevenir e combater essa forma de violência no seu dia-a-dia? Na sua rotina do hospital? Como é contratado um médico (fixo ou temporário) de um equipe obstétrica de um hospital? Quais aspectos são observados? Existe um manual de conduta? Quais práticas são reprovadas, vigiadas e combatidas dentro da equipe?

Levantamos perguntas porque sabemos que o cenário muda dependendo de cada instituição, e acreditamos que estas perguntas são importantes norteadores para avaliar o quanto cada uma delas está se responsabilizando não só pela saúde, como também pela garantia de direitos da mulher e pela prevenção das violências.

Ainda que os cuidados e contextos mudem de instituição para instituição, vemos um panorama de descaso.

Além das poucas mobilizações das instituições para frear essa forma de violência, os conselhos regionais e federais de medicina criam obstáculos para o enfrentamento da violência obstétrica.

Estes órgãos, em consonância com o Ministério da Saúde da gestão Bolsonaro, não têm apresentado propostas para encaminhar este problema, e ainda alertam para os “riscos” de usar o termo “violência obstétrica”, enquanto parecem ignorar os efeitos e consequências desta.

A violência obstétrica pode gerar importantes repercussões psicológicas ou traumáticas para as mães e parturientes, mas também colocam em risco a integridade física das mulheres.

Das 38 mil mortes de maternas registradas de 1996 a 2018, 67% tiveram como causa “complicações obstétricas durante gravidez, parto ou puerpério devido a intervenções desnecessárias, omissões, tratamento incorreto ou a uma cadeia de eventos resultantes de qualquer dessas causas”, segundo o Guia de Vigilância Epidemiológica do Óbito Materno, do Ministério da Saúde.

O estudo “A cor da dor”, indica que mulheres negras seriam ainda mais suscetíveis a violências obstétricas.

“Estudo em maternidades na cidade do Rio de Janeiro, Leal et al. 18 também evidenciaram uma menor oferta de procedimentos anestésicos no parto vaginal para mulheres pretas e pardas, com menores proporções ainda para as de menor escolaridade.” (A cor da Dor, 2017)

Instagram @thabaytimes/Reprodução

Diante da efervescente discussão sobre o caso de Giovanni Quintella, o site The Intercept noticiou, em 15 de julho de 2022, que o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) entrou com um pedido à OAB que se posicionasse contra um curso de prevenção a violências obstétricas.

O CREMESP entendeu que a promoção de curso dentro dessa temática, “tem o intuito de instigar as mulheres a denunciarem os médicos especialistas em obstetrícia e pediatria, por supostas violências obstétricas”. A proposta do curso, organizado por uma advogada, é de explicar sobre direitos das gestantes, como denunciar violências obstétricas e o que é parto humanizado.

Destacamos aqui a análise da pesquisadora Vera Iaconelli, ressaltando como o caso de Vilar dos Teles reflete uma lógica estrutural das instituições de medicina.

“A cena do anestesista Giovanni Quintella Bezerra estuprando o corpo indefeso de uma mulher parindo é o resumo acabado de todas as violências obstétricas. A lógica que permite este tipo de perversão é a mesma que comparece em casos mais sutis: a mulher é essa coisa aí pra ser usada como se bem quiser. O discurso médico-hospitalar fomenta o abuso ao fazer da paciente um objeto a ser manipulado enquanto os médicos são tidos como super poderosos. Não fiquemos chocados com a cena a ponto de imaginar que se trata de fato isolado. Trata-se do ponto extremo de uma sequência de eventos que corroboram o lugar do discurso médico em nossa sociedade.” — Vera Iaconelli

Podemos dizer que a violência obstétrica é um problema importante da área da saúde e que precisa ser pensado e endereçado. É uma questão estrutural atravessada por fatores como a formação do profissional, o gênero e a raça (do profissional e das pacientes). Estes são aspectos sociais, mas ignorá-los acreditando que esses fatores nada tem a ver com a saúde física, é ignorar evidências científicas e estudos muito importantes.

Quais os obstáculos, na prática, para interromper violências obstétricas e cultivar outra lógica?

Acreditamos que existe, não escrevemos esse texto como um espaço de incitação contra médicos [tal qual o CREMESP interpreta cursos contra violência obstétrica]. Ao contrário, escrevemos porque acreditamos que, com informações, propostas e mobilizações coletivas, é possível criar meios para transformações estruturais e a longo prazo.

Para qualquer transformação a médio ou longo prazo, é importante ter consciência do cenário atual.

Vemos, hoje, um panorama e contexto em que os órgãos reguladores de medicina não tem caminhado próximo das pautas por uma saúde mais humanizada e garantidora de direitos, principalmente quando falamos dos direitos das mulheres ou de outros grupos marginalizados.

O Conselho Federal de Medicina chegou a publicar uma resolução que tirava da parturiente o direito a consentir diante de intervenções sugeridas no parto. O documento afirmava que a recusa informada de uma grávida a qualquer procedimento poderia ser ignorada caso fosse considerada um “abuso de direito em relação ao feto”.

O direito da decisão informada e consentida da paciente é lida pelo Conselho Federal de Medicina como “abuso de direito”. Em seguida o Cremerj, Conselho Regional do RJ, publica uma resolução na tentativa de proibir que os médicos respeitem os planos de parto, documentos onde a parturiente deixa previamente esclarecido quais são suas vontades em relação a cada procedimento possivelmente necessário.

Esse cenário também é reflexo da disparidade de poder que se repete nos órgãos reguladores de medicina: Embora 46,6% dos médicos do Brasil sejam mulheres, das 28 cadeiras de conselheiros efetivos do órgão regulador, 20 são ocupadas por homens, que também estão encarregados da presidência e as três cadeiras de vice.

Como bem disse Iaconelli, existe uma cultura médica de um suposto saber absoluto e de poder sobre os corpos. Essa cultura, que vem mudando para alguns profissionais da saúde, cada vez mais integrados em equipes multidisciplinares e com foco na pessoa, ainda é pouco fomentada na educação médica, na formação.

Ainda é raro que cursos relacionados à saúde da mulher, como ginecologia ou obstetrícia, tenham disciplinas focadas em intersecções das questões bio-psico-sociais, como sexualidade e gênero.

Quando uma faculdade de medicina opta por não abordar as relações de gênero e/ou de raça da equação médico-paciente, essa não é uma escolha meramente objetiva, que foca apenas na saúde biológica dos pacientes. Essa é uma escolha, no mínimo, displicente, que ao fechar os olhos para fatores que, quer queiram ou não, vão de fato interferir na saúde integral do paciente. Deixar de estudar os atravessamentos de gênero e raça é optar por não combater as violências de gênero e raça e as repercussões destas na saúde das pessoas.

Saúde física ou biológica não se separa da saúde mental.

Isso não é novidade e não somos nós que estamos dizendo. Na Universidade de São Paulo, a graduação em obstetrícia prepara profissionais — que não são médicos — para lidar com a variedade de fatores que englobam gestação, parto e nascimento.

Campos de estudos da psicologia, da enfermagem, terapia ocupacional, fisioterapia e outras áreas da saúde, destacam a importância da interdisciplinaridade para pensar a saúde de forma integral.

Na nossa interpretação, os órgãos de poder da medicina clamam e lutam por conservar um espaço de poder em que o médico seria detentor de um saber inquestionável e superior aos demais profissionais da saúde.

Isso compõe uma estrutura problemática e que deixa pacientes, já em estados mais vulneráveis devido à enfermidades ou necessidades médicas daquele momento, suscetíveis a violências, uma vez que esse poder tiraria do sujeito o direito a decisão informada, consciente e consentida sobre os procedimentos ao qual é submetido.

Os estudos de gênero nos mostram que as dinâmicas de violência andam ao lado de dinâmicas de poder e de abuso de poder. É importante lembrar que, dentro da área da saúde, uma área voltada para o cuidado do outro, a maioria dos trabalhadores de diferentes categorias são mulheres, como enfermeiras e técnicas de enfermagem, fisioterapeutas, fonoaudiólogas, psicólogas, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais.

A medicina recentemente alcançou uma paridade de gênero no número de profissionais, um fato que nos mostra como a manutenção dessas dinâmicas de poder cria resistências para a presença de mulheres nesses espaços.

Foi a equipe de enfermagem, majoritariamente feminina, que conseguiu se mobilizar para levantar provas e denunciar Giovanni Quintella, um homem abusando da sua posição de poder para violentar uma pessoa.

10 passos no caminho para uma possíveis mudança estrutural:

Para construir diferentes lógicas, que atendam de fato às especificidades e necessidades de diferentes grupos sociais, precisamos de movimentos em direção à alterações importantes no campo da saúde, formação e carreira médica:

1)Pensar uma educação médica que dê conta dos abrangentes aspectos humanos da saúde

2)Garantir paridade e representatividade em todas as instâncias de todos os conselhos de medicina, garantindo diversidade e renovação das posições de poder

3)Formular regulamentações e diretrizes que sejam aplicadas em órgãos de saúde de maneira ampla e que deem conta de:

4)Selecionar profissionais capacitados para o exercício do cuidado e que conheçam sobre direitos humanos básicos

5)Capacitar profissionais de áreas específicas em direitos e demandas do público atendido (sejam gestantes, idosos, pessoas com deficiência, pessoas em estado terminal)

6)Atualização constante de tais capacitações e regulamentações

7)Supervisão e auditoria para garantir compliance

8)Estruturar canais e órgãos para denúncias, encaminhamento e acolhimento de casos em que os direitos sejam violados e violências sejam cometidas

9)Garantir que os órgãos federais e regionais dêem continuidades a denúncias, aplicando as devidas averiguações e punições.

10)Transformar todo esse caminho em política pública, para garantir continuidade, verba e meios de implementação e capilaridade

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Gabriella Feola
Afluências

Jornalista meio empreendedora, autora do livro Amulherar-se, cursa mestrado na Universidade de São Paulo, estudando Comunicação e Educação da sexualidade.