A bagagem do corpo negro

Sentimentos de quem vive a luta diária de habitar esse ser

Flavia Godinho
AfroHiato
6 min readMay 18, 2017

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Foto: Célio Maciel

Cabelo veio da África
Junto com meus santos

Benguelas, zulus, jejês
Rebolos, bundos, bantos
Batuques, toques, mandingas
Danças, tranças, cantos
Respeitem meus cabelos, brancos

Se eu quero pixaim, deixa
Se eu quero enrolar, deixa
Se eu quero colorir, deixa
Se eu quero assanhar, deixa
Deixa, deixa a madeixa balançar
Chico César

O corpo negro é um objeto de servidão “voluntária”. Nossas vontades, sentimentos, sonhos e prazeres são mascarados, massacrados, diminuídos, escondidos para melhor servir e exercer um papel na sociedade que nos foi deixado como legado pelos séculos de escravidão.

Nosso cabelo foi alisado, a cor da nossa pele rotulada, nossa cultura escondida, abominada e demonizada. Nossos corpos foram violados, violentados, discriminados, simplesmente, pelo fato de serem como são: corpos negros. A palavra já é tida como negativa, um estereótipo imutável dos papéis sociais e culturais que os corpos dessa cor ocupam. É bem melhor ser “moreninha”, “parda”, “queimadinha de sol”. Ninguém quer ser preto, sujo, pobre, socialmente e intelectualmente inferior.

É doloroso o nosso silenciamento. É extremamente doloroso o racismo diário, os padrões que nos excluem, os papéis que não nos convêm, as discussões desgastantes sobre a nossa dor. Dor essa que, quando sentida, precisa ser escondida, engolida a seco, silenciada, pois, quando exposta, corre o grande risco de ser taxada como exagero, vitimismo: “é claro que não é questão racial”.

Quando uma pessoa preta questiona a sua existência, expõe suas vontades, assume suas origens, celebra suas conquistas, luta contra certas atitudes, a sua conduta é tida como agressiva, raivosa; a sua resistência é como tocar na ferida do ego de quem não sabe o que é aguentar racismo diariamente em um país que finge que nada está acontecendo. É como lutar por uma batalha que “foi vencida há séculos”, lá quando a Isabel assinou a “liberdade”. É tocar em um assunto que não precisa ser discutido, apesar de muitos ainda viverem o inferno diário de ser um corpo negro em uma sociedade racista.

Quando um preto se afirma como tal e assume seu cabelo, sua ancestralidade, sua luta e sua resistência, ele faz isso com intensidade, amor e vivacidade. Sim, queremos viver tudo o que nos foi tirado, o que nos foi negado, o que a sociedade nos fez “esquecer” para adequar. Vamos celebrar cada conquista, cada papel de destaque, cada pequeno momento diário em que o negro é exaltado, cada discussão que engrandece nosso papel na sociedade.

A minha afirmação positiva começou com o meu cabelo, crespo da raiz às pontas. Assumir essa parte de mim — elemento importante na construção da minha identidade — e a afirmação do meu papel social foi um grande passo da minha existência. Durante anos me camuflei porque desde que nasci fui abominada e ridicularizada. Meu cabelo duro, pixaim, e minha pele escura diziam muito sobre onde eu deveria estar. Eu sabia que se quisesse uma vida melhor não poderia continuar no lugar onde deveria.

Meus sonhos sempre foram maiores, além da realidade que eu vivia. A infância pobre, mas cheia de felicidade, me fez sofrer muito em vários momentos em que a bolha estourou e eu fui exposta à vida real. Já sofri racismo de todo tipo, do “sutil” ao direto.

“Morena” exportação, fruto da miscigenação, é a categoria que geralmente sou enquadrada. Sexo frágil, fácil e impossível de ser assumido, exclusivamente feito para o prazer. Por um tempo eu me sentia feliz por fazer parte desse grupo, por ser desejável, até perceber que o desejo é o ponto inicial e final da minha servidão.

Meus traços “delicados”, “magros” e “claros” me dão um papel mais aceitável, mas não me excluem do racismo diário, velado, cruel, que me faz questionar se o problema sou eu. Que me faz pensar que talvez tudo seria diferente se eu fosse diferente ou, quem sabe, se eu tivesse nascido outra pessoa. Racismo esse que me fez odiar minha aparência, o meu corpo, alisar o cabelo para parecer com as minhas amigas. Que me fez negar a minha cor e aceitar o “morena” de bom grado, já que essa condição me aproximava mais do padrão adequado.

Racismo esse que ainda interfere nas minhas relações amorosas, na forma como as pessoas me elogiam, que me faz pisar em ovos quando algo acontece comigo. Que me cala, que me oprime, que me dói, lá no fundo da minha cor, preta.

Se hoje eu enxergo cada detalhe que eu não entendia e consigo não me calar, foi graças à oportunidade de viver em um momento em que posso discutir, escrever e enriquecer a discussão racial, mesmo quando tentam me silenciar. Na universidade, estudei sobre a minha ancestralidade, assumi meu cabelo e minha cor. Na internet, consigo me espelhar em influenciadores que são como eu, que sabem o que eu vivi, que entendem as minhas dores. No dia a dia, tenho a oportunidade de conhecer, me aproximar e ouvir outras tantas histórias como a minha, e tenho apoio para lutar diariamente contra a negligência.

O estereótipo assume o papel de monstro, uma vez que acaba afastando algumas pessoas da militância. Lembra-me o episódio em que todos apontam o dedo para a Samantha White, em “Dear White People”, questionando o seu engajamento como militante. Como ousa ter um relacionamento amoroso com um homem branco e, ao mesmo tempo, ser quem fala sobre racismo e relacionamentos afrocentrados? Qual caminho o militante deve seguir e quais coisas deve deixar para trás?

A série mostra bem esse estereótipo que abraça o militante e, em alguns casos, afasta quem precisa de ajuda, por não se encaixar nas condições tão emblemáticas para o movimento. Claro que entender, estudar e saber de coisas relacionadas ao movimento negro, apoiar projetos, celebrar as conquistas em vários aspectos é de extrema importância. Mas eu sinto que a gente sai de um estereótipo e entra em outro, sem nenhuma condição de lidar com toda a bagagem que vem com ele.

Assumir quem eu sou não anula quem eu era. Nunca deixei de ser negra, só passei a enxergar, aos poucos, que isso não deveria ser um empecilho para ter sonhos maiores do que o mundo dizia ser a minha única condição. Estudei para entender a minha condição social e a minha história como um todo, não para me inserir em mais um estereótipo. Passei por várias quedas fortes das quais ainda não me curei. Vivi muitos momentos marcantes que ainda influenciam como eu me enxergo. Tento, diariamente, sentir que posso mais, e que não devo me sentir inferior.

A forma como o racismo ainda atinge meu psicológico faz com que todos os dias eu tenha receio em relação a alguma parte importante da minha vida. Eu poderia listar, um por um, os meus medos, dizer cada situação traumática que eu vivi, e como isso ainda me atinge como mulher negra. Mas hoje meu desabafo vem como forma de alerta: a bagagem do corpo negro é imensa, densa e pesada. Muitos não compreendem nossa luta, se assustam com a nossa ira quando alguma situação racista acontece e não entendem nossa festa quando vemos a ascensão de um dos nossos.

Não somos separatistas, extremistas ou “odiamos as pessoas brancas”. Temos apenas o direito de expressar nossos sentimentos, que nos foi negado por tanto tempo. Não queremos a sua piedade, só precisamos lutar contra o abismo racial que insiste em nos matar. Um por um.

O corpo negro hoje é objeto de militância. Seja ela na moda, na política, em cargos importantes nas empresas, no dia a dia. Só vamos parar quando não existir mais medo, preconceito ou quando, de certa forma, nossas dores forem tão importantes quanto as suas.

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