Culturas periféricas, no plural

Parte 3: sobrevivendo no inferno

Leila Evelyn
afrontadora
6 min readApr 9, 2019

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A situação política e seu impacto direto na produção e consumo de cultura na cidade de São Paulo

Chegamos ao fim da série baseada em meu capítulo favorito do Trabalho de Conclusão de Curso que elaborei junto ao meu grupo. Três dos quatro integrantes da agência experimental atravessavam a cidade para chegar à Vila Mariana — Alex vinha do Capão Redondo, Nathany de Vila Progresso e eu Cidade Tiradentes, igualmente fodidos, diria. Dividimos boa parte do período em uma jornada dupla de trabalho e estudo, o que consumia e afetava nossa rotina drasticamente.

Diferente de boa parte das pessoas com acesso ao ensino superior no Brasil, não tínhamos tempo de sobra para visitar exposições em regiões centrais, por exemplo. Conheci o MASP aos 21 anos, na época concorria a vaga de estágio na área de comunicação; vislumbrei com pouco entusiasmo pela primeira vez um dos acervos mais importantes do mundo no meu primeiro dia de trabalho. Lembro como se fosse ontem, quando minha antiga chefe perguntou se conhecia o Museu fui direta e a surpreendi dizendo que nunca tinha passado pelas catracas do local, quando questionou os motivos fiz questão de dizer que o espaço parecia não ser pra mim, não era convidativo e conclui afirmando que o espaço é opressor. Algo me leva a crer isso a convenceu sobre minha contratação.

Não que cultura tenha haver somente com grandes museus e operas clássicas, como explicitei no capítulo anterior, culturas só podem ser plurais em um Brasil tão diverso que expressa, inclusive, seus protestos de diferentes maneiras: grafite, picho, rap, samba, saraus e ademais. Inclusive, a tecnologia é uma grande facilitadora e suas funções trouxeram modificações importantes para a produção e divulgação de produções culturais nascidas nas periferias. De acordo com Bergamin (2015, p. 150), uma novidade é que esses artistas e produtores estão se tornando conhecidos também nas regiões com alto poder aquisitivo. A autora afirma que “no Brasil as culturas são hierarquizadas em uma série de preceitos, como os critérios de ‘gosto’ que hierarquizam a produção cultural como boa ou ruim”, entretanto essa hierarquização reproduz, cria e mantém lógicas estabelecidas com barreiras territoriais e de classe. É aí onde quero chegar, há barreiras que nos impedem de consumir e produzir culturas no país, até mesmo nossos representantes políticos armam maneiras de dificultar a mudança de cenário nesse sentido e é sobre isso que falaremos a seguir.

Foto: Helton Silva

Em alguns momentos as políticas e programas públicos contribuem para descentralização da produção artística, e, dessa forma, são importantes intermediários de produção cultural periférica. Apesar de ainda ser pouco em volume de recursos e de exigir certo conhecimento acadêmico para burocráticos editais — o que dificulta a inscrição de parte da população — há uma grande importância em programas como o Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI). O coletivo Du Gueto recentemente, objeto de nosso estudo, foi contemplado com o VAI e isso possibilitará a realização de ações e produções culturais na Cidade Tiradentes. A verba viabilizou a exposição “Retrato Falado” — trabalho que mescla poesia, fotografia e reciclagem — é mais um exemplo de como, no contexto urbano contemporâneo, é possível perceber as interferências das práticas coletivas. É através desse trabalho que o Du Gueto fala sobre a periferia, a partir da periferia e para a periferia.

Confecção de peças para exposição “Retrato Falado”. Foto: Israel.

Para OLIVEIRA (2011, p. 1), “marginais são as produções que afrontam a cânone, rompendo com as normas e os paradigmas estéticos vigentes”. A cultura periférica é marginalizada, o que abarca um largo espectro de significações. CARMO (2003, p. 178) afirma que o funk, por exemplo, se originou de uma cultura marginal ligada aos setores populares, onde desde os anos 70 é um importante veículo de expressão de jovens pobres e negros. Inclusive, alguns membros das equipes de som chegaram a ser presos, pois a política do regime militar desconfiava de seu envolvimento com grupos políticos clandestinos de esquerda.

Recentemente, pensou-se na proposta para criminalização do funk (SUG 17/2017), em uma audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH), que foi unanimemente condenada por convidados e senadores. A medida foi, inclusive, apontada como uma violação dos direitos individuais, assim como discriminação. O debate foi incitado por uma Ideia Legislativa apresentada ao Portal e-Cidadania do Senado pelo cidadão Marcelo Alonso, no Rio de Janeiro.

O Sarau Sujo, organizado pelo Du Gueto, teve algumas de suas edições sediadas pelo “Bar do Tiulei”. Ressaltamos que bar não é um espaço público, entretanto é um local de sociabilidade nas periferias. Em entrevista à Revista Fórum, Jaqueline, professora de literatura de uma escola em Paraisópolis, afirma que jovens de periferia não têm espaços adequados à sua disposição e, por isso, ocupam as ruas ou estabelecimentos privados que cedem espaço ao público. Continua dizendo que na “quebrada” nem mesmo as escolas abrem as portas para que a juventude promova suas iniciativas culturais.

As experiências do Du Gueto pode trazer para esse campo de discussão suas práticas e modos de fazer com que o seu movimento social dialogue com a comunidade, seus interesses e necessidades. O coletivo demonstra resistência, afinal, independe de espaços físicos próprios e ademais dificuldades, mas mesmo assim insistem em promover arte e cultura para todos. O VAI foi uma conquista. O capital adquirido vem sendo utilizado em iniciativas relevantes à comunidade. Empregaram a verba em diversas necessidades, entre elas, equipamentos e materiais para a produção, aparatos tecnológicos, materiais de divulgação e materiais de consumo.

O programa é assistido pela Prefeitura de São Paulo desde 2006 e, de acordo com o ultimo relatório disponibilizado, em 2016 foram contemplados mais de cem projetos. Os participantes prioritários eram — e ainda são — jovens de baixa renda, entre 18 e 29 anos, não profissionais de 230 regiões do Município que são desabastecidos de aparelhos culturais.

Mapa de projetos contemplados em 2016. Fonte: Portal online Programa VAI.

No dia 31 de outubro de 2017, aconteceu uma audiência pública na Câmara Municipal de São Paulo para reivindicar que a atual gestão da prefeitura não reduza em 16% o orçamento da Secretária Municipal de Cultura em 2018. A Proposta de Lei Orçamentária Anual (PLOA), encaminhada ao Legislativo, propõe a primeira redução em quatro anos de aumento no setor. O prefeito João Dória Jr. só usou 40,22% de todo orçamento de 2017, a menor liquidação em 15 anos. O congelamento afetou programas como o de Valorização das Iniciativas Culturais, que beneficiou atividades como as do coletivo Du Gueto em 2016. Com a redução em 2018, os programas terão diminuição considerável dos orçamentos. A verba para execução de 22 programas da pasta terá diminuição de R$ 81,7 milhões (18,7%).

Parte dos programas que terá cortes orçamentários em 2018. Fonte: Rede Brasil Atual.

Em 2019 João Dória, Governador pelo PSDB, segue anunciando cortes. Propôs a redução de 23% no Orçamento da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, o que pode significar uma redução de R$ 148 milhões no montante destinado à pasta. Segundo matéria no portal Alma Preta:

A redução no orçamento coloca em risco de fechamento e redução de atividades não só do Museu Afro Brasil, mas de diversos outros museus, bibliotecas, orquestras, centros culturais, companhias de dança, a escola de música Tom Jobim, o conservatório de música de Tatuí, as Fábricas de Cultura e programas de formação para crianças e adolescentes em todo o Estado.

A desigualdade no Brasil precisa ser enfrentada, e alguns impulsos para esse enfrentamento podem vir de experiências individuais que transcendam as condições tradicionais. Não é possível identificar experiências infalíveis, entretanto é identificável que algumas experiências podem contribuir para transformações sociais. Os contextos históricos apresentados trouxeram configurações que modificam os movimentos sociais em suas atuações ao longo do tempo. Dessa forma, pode-se afirmar que movimentos sociais tomaram um novo lugar na sociedade contemporânea, uma nova significância.

Coletivos como o Du Gueto contribuem para a articulação de cultura coordenando atividades na periferia com a periferia. O compartilhamento de determinados valores com grupamentos é positivo. As mídias sociais digitais, inclusive, colaboram para que cada vez mais atores co-participem dessa interconexão aguçada entorno de boas causas. Foram numerosas tentativas de definir cultura popular tradicional, entretanto, há dificuldade por sua vasta diversidade. Contudo, o coletivo estudado identifica-se como parte integrante do seu patrimônio cultural do distrito da Cidade Tiradentes e esses aspectos intangíveis incluem a ligação que muitos jovens periféricos têm com seu território de pertencimento e o orgulho que os motiva a resistir.

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Leila Evelyn
afrontadora

Me disseram que essa era a mídia social do textão, por esse e outros motivos, aqui estou. — 28 anos, Relações Públicas, produtora e várias fita.