Culturas Periféricas, no plural

Parte I: a vida é um desafio

Leila Evelyn
afrontadora
5 min readMar 27, 2019

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Longe dos grandes centros, a periferia encontra brechas

Reprodução da internet: Facebook Instituto Du Gueto

Na faculdade, do ano de 2017 a 2018, tive a honra de integrar uma agência experimental do caralh*, a Agência Nós. Juntos desenvolvemos um Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “Du gueto às Relações Públicas: a comunicação a favor do desenvolvimento sociocultural da Cidade Tiradentes”. O cliente atendido foi o coletivo cultural Du Gueto, do qual falarei um pouco mais em breve, desenvolvemos um plano de comunicação com base na natureza do movimento. Estudamos as culturas periféricas, para compreender o contexto e atender as necessidades com o máximo de assertividade.

Confesso que esse foi o capítulo ao qual mais me dediquei, por interesse pessoal. Modéstia a parte, ficou bom demais e, por isso, com apoio do grupo, decidi dedicar um espacinho por aqui para uma série: textos que dividem em fragmentos boa parte do que dissecamos sobre as múltiplas culturas periféricas e seus meios de resistência.

Segundo o Censo 2010, a cidade de São Paulo tem 96 distritos, onde 57 destes estão em periferias. Em 2015, o Canal Futura apresentou o documentário “O crescimento das cidades e da periferização”, onde especialistas em urbanização afirmam que as cidades brasileiras — em sua maioria — crescem de forma espraiada, ou seja, horizontalmente. Não há, nesse tipo de cidade, planejamento urbano, sobretudo nas periferias. O documentário reforça, através de depoimentos, a tese de que a maioria das cidades no Brasil não permite a permanência de classes menos favorecidas em regiões supervalorizadas. É a chamada “gentrificação” ou “periferização” criada pelas forças de especulação imobiliária, que implicam na retirada de moradores mais pobres dos centros e regiões com supervalorização aquisitiva. Essas pessoas passam a habitar bairros afastados do centro pelo menor custo de moradia.

Baseando-se no Censo 2010, PASTERNAK e D’OTTAVIANO (2016) publicaram um artigo sobre favelas no Brasil e em São Paulo, falando sobre o acesso às moradias da população favelada. As autoras afirmam que, entre 2000 e 2010, a taxa de crescimento anual do parque domiciliar brasileiro foi de 0,57%, enquanto a dos domicílios favelados atingiu 6,93%. Destacamos a região sudeste, onde percebemos crescimento alarmante, conforme tabela abaixo:

Tabela 2 — Domicílios totais e favelados, por grande região do Brasil. Fonte: Favelas do Brasil e São Paulo.

Ainda segundo as autoras, a região metropolitana de São Paulo apresenta a maior concentração de favelas do Brasil: 27% do total de favelas e 19% da população favelada brasileira. No município de São Paulo, a taxa de crescimento da população paulistana, até 2000, era nitidamente periférica. De todo modo, o município se distingue por apresentar “uma favelização predominantemente periférica”, ou seja, às margens da capital paulista, longe do centro da cidade.

Podemos descrever a cidade de São Paulo, a partir dos estudos acima, dividindo em dois círculos, conforme demonstraremos na imagem a seguir. Na região central temos o círculo que concentra serviços e riquezas, e outro, em torno do central, com difícil acesso à infraestrutura.

Figura 11 — Mapa da Cidade de São Paulo. Criado por: Agência Nós Relações Públicas.

Assim, para que as pessoas tenham acesso à cultura, por exemplo, alguns grupos desenvolvem maneiras de articular atividades culturais na periferia. São perceptíveis as interferências das práticas coletivas realizadas por jovens em busca de aproximar das periferias, territórios socialmente excluídos, movimentos artísticos. Estes se articulam em torno de diferentes linguagens artísticas e tecnológicas, diversas culturas — teatro, danças, grafite, internet, fotografia, vídeo, poesia, etc.

[…]

Um Artista a serviço

Da comunidade, do país,

Que armado da verdade,

Por si só,

Exercita a revolução.

(Sérgio Vaz, 2007)

Temos como exemplo do que tratamos acima o “Você repórter da periferia”, idealizado e realizado pelo coletivo Desenrola e não me enrola. O programa rendeu um documentário em 2014, ano em que foi contemplado pelo programa VAI, desde então, oferece educomunicação para jovens da periferia, o que contribui na formação de cidadãos mais conscientes e integrados com a realidade sociopolítica do país. Com aulas teóricas e práticas de jornalismo comunitário e cultural, os alunos, com orientação profissional, realizam reportagens escritas e em vídeo sobre diversas iniciativas espalhadas pelas periferias da cidade de São Paulo.

O Desenrola também disponibiliza, no M’Boi Mirim atividade de coworking para outros coletivos, para que esses também sejam agentes de comunicação pelos bairros, posto que graças a tecnologia qualquer pessoa tem potencial para apurar, divulgar e interagir, ou seja, quem antes tinha suas pautas ignoradas pelos canais mainstream, hoje tem voz.

O movimento cultural Cooperifa, assim como o coletivo anterior, atua difundindo informações da periferia para a periferia. Através de atividades poéticas, tais como “Cinema na laje”, “Chuva de livros”, “Várzea poética”, “Poesia no ar”, “Mostra cultural” e saraus em escolas, realiza intervenção cultural na zona sul de São Paulo e região. Nasceu no galpão de uma fábrica na BR-116, em Taboão da Serra, em 2001. Surgiu da parceria entre Sérgio Vaz e Marcos Pezão, com a ideia de suprir a carência de espaços culturais.

“Movimento dos sem palco, um local onde pessoas de vários lugares com objetivos comuns pudessem partilhar do milagre da poesia” (Vaz, 2008, p.117, apud XAVIER, 2013, p. 15). Em entrevista ao Itaú Cultural, em 2008, Sérgio Vaz afirma que não é sua intenção tirar os jovens das drogas, tampouco ser visto como um super-herói, mas sim compartilhar literatura e formar cidadãos, dar visibilidade aos invisibilizados.

Inspirados na Cooperifa nascem movimentos semelhantes em toda cidade de São Paulo. Na Brasilândia, no “Bar do Carlita”, ocorre o sarau Poesia na Brasa, desde julho de 2008. Bem como o Sarau dos Loucos, que desde 2011 promove encontros na Cohab Fazenda do Carmo (Cidade Tiradentes) e Sarau do Capão, que desde janeiro de 2017 utiliza o espaço da Fábrica de Cultura do Capão Redondo para realização de saraus mensais.

Dentre estes grupos que viabilizam atividades culturais, está o Du Gueto, estudado por nós no TCC. O coletivo foi idealizado por dois jovens que habitam no distrito da Cidade Tiradentes e, assim como outros movimentos, manifestam seus conhecimentos, adquiridos também por suas experiências subjetivas, a fim de realizar transformações sociais no distrito. Prosperam atividades artísticas alicerçados no relacionamento com outros movimentos sociais.

Com o fortalecimento de coletivos e grupos juvenis como Du Gueto, que reúne diversos coletivos da cidade de São Paulo, há uma provocação para mobilização social em torno de causas. A custo de muito suor, esses grupos buscam referência local e territorial como estratégia de resistência.

No próximo texto trarei mais sobre o que são às culturas das quais estamos falando quando tratamos a complexidade das periferias, com enfoque na cidade de São Paulo (suas definições, teorias, história e etc). Logo depois, na terceira e última parte da série, escreverei sobre as dificuldades enfrentadas por movimentos culturais graças também a situação sócio-política da cidade e país.

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Leila Evelyn
afrontadora

Me disseram que essa era a mídia social do textão, por esse e outros motivos, aqui estou. — 28 anos, Relações Públicas, produtora e várias fita.