Culturas Periféricas, no plural

Parte 2: periferia é periferia

Leila Evelyn
afrontadora
9 min readApr 4, 2019

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De quais culturas estamos falando quando nos referimos a complexidade da periferia de São Paulo

Reprodução internet: Facebook Instituto Du Gueto

Na última quarta-feira resolvi tirar da cabeça a ideia de publicar a minha parte favorita do meu trabalho de conclusão de curso, sobre culturas periféricas. Ainda não consigo descrever em palavras o tamanho do significado que o tema tem pra mim. Sou nascida e criada na Cidade Tiradentes, porém nunca estive tão próxima quanto gostaria dos meus companheiros de bairro, tampouco tive oportunidade de fazer parte de movimentos sociais como gostaria. Terminei o ensino médio e já pulei pra uma nova sala de aula, na faculdade tive acesso a teorias, pessoas e, principalmente, descobri muito sobre mim, minha origem.

Na primeira parte do texto falei sobre o contexto que coletivos periféricos enfrentam em seus desafios diários. É complicado demais conseguir atender a população de grandes carências, inclusive cultural. Afastadas, como eu, todos os dias essas pessoas se deslocam dos extremos e viajam até a região central da cidade de São Paulo para prestar serviços diversos, fazendo uso da própria casa como dormitório, muitas vezes sem tempo e cabeça para lazer.

Se você não leu a primeira parte PARA TUDO e vai me biscoitar:

https://medium.com/afrontadora/culturas-perif%C3%A9ricas-no-plural-69b26958aa54

Segundo estudo realizado pela GFK Consultoria, grande parte da população brasileira está insatisfeita com o tempo que gasta com o lazer. Na pesquisa, 28% dos entrevistados apontaram essa desaprovação. São diversos fatores que explicam a situação, entre eles, o de não ser comum para brasileiros consumir cultura, apesar da oferta e do poder aquisitivo. Se não é comum para pessoas com alto poder aquisitivo fazer o uso de cultura, para pessoas de baixa renda os dados são ainda mais preocupantes. Na abertura do Seminário Cultura e Desenvolvimento Sustentável (2015), a então Ministra da Cultura, Marta Suplicy, destacou que 90% da população brasileira não tem acesso à cultura para o desenvolvimento sustentável, relacionando esse tema com os eixos social, econômico e ambiental. Pensando nisso, coletivos proporcionarem atividades culturais gratuitas, ocupando espaços urbanos, utilizando-os para atividades culturais, com objetivo de mudar essa realidade a longo prazo, visando tornar comum aos habitantes de baixa renda locais as manifestações culturais, que hoje não são pertencentes ao cotidiano é de extrema importância e pode mudar vidas.

Sarau Sujo Infantil”, realizado no bairro Vila Yolanda II, no distrito da Cidade Tiradentes pelo Coletivo Du Gueto - Foto: Cléber Severino

Nessa segunda etapa vai ter umas teoria muito louca, mas CALMA, no fim eu juro que trago Racionais hehe. Enfim, vamo nessa!

Conforme salientamos até aqui, há grande mobilização ao redor de coletivos que provocam mudanças em comunidades. Juntos, grupos movimentam estruturas sociais e esse relacionamento representa o que JANOTTI JR. (2003, p. 119) denomina como comunidades de sentido:

São determinadas agregações de indivíduos que partilham interesses comuns, vivenciam determinados valores, gostos e afetos, privilegiam determinadas práticas de consumo, enfim, manifestam-se obedecendo a determinadas produções de sentido em espaços desterritorializados, por meio de processos midiáticos que utilizam referências globais da cultura atual. É a vivência desses sentidos, por meio do consumo de determinados objetos culturais, que permite a um indivíduo reconhecer seus pares, seja um skatista, um punk, um headbanger, um clubber, independentemente do território em que esses sentidos se manifestem.

Quando o autor diz “comunidades”, não está se referindo à acepção tradicional, que remeteria a espaço geográfico próximo e relações diretas com tradições, ele refere-se às redes sociais.

Estar envolvido em redes sociais é essencial e influencia diretamente a sobrevivência de coletivos, posto que, através dessas ligações — que na maior parte do tempo são conexões ocultas — conquistam reputação e abrangência gradual. Conforme se relacionam com a comunidade local, com coletivos parceiros, fornecedores, parceiros e etc., vão ampliando a rede de relacionamentos. Consequentemente adquirem relevância para com seus públicos estratégicos, para realizar mais atividades e potencializar a efetividade de suas ações.

A relação de redes sociais com Comunidades de Sentido se dá na formação de elos estruturais na vida social; em círculos de relacionamentos de cada indivíduo, “o principal critério considerado para a constituição de uma Comunidade de Sentido é o compartilhamento de determinados valores, gostos e afetos que ressaltam o ‘ideal comunitário’” (JANOTTI JR., 2003, p.119).

“As Comunidades de Sentido manifestam-se localmente mediante reunião de indivíduos em Grupamentos Urbanos” (idem, p.122), que exercem a posse de objetos culturais em um caminho não linear. Para o autor, o que define Grupamentos Urbanos é o seu pertencimento a Comunidades de Sentidos em paralelo a sua diferenciação enquanto produção de sentido localizada. E mais, afirma que manifestações culturais são empregadas por intermédio de produções de sentido presentes nas sociedades que dão origem ao conjunto de estudos das Comunidades de Sentido e dos Grupamentos Urbanos.

A cidade é tida como cenário, onde se vivenciam produções de sentido, de forma dominante, por Grupamentos Urbanos. “O tecido cultural atual é marcado por suas características hibridas” (idem, p.126). Dito isso, refletimos sobre a cidade de São Paulo, e em especial na Cidade Tiradentes, onde se percebe que a expansão urbana é uma das causas que intensificaram a hibridação cultural.

Assim, segundo JANOTTI JR. (2003), a urbe atual é palco de significativas mudanças nas condições de produção e de reconhecimento dos objetos culturais. Os grupamentos locais, herdeiros de tradições culturais altamente significativas e relações comunicacionais distantes de culturas nacionais e internacionais, foram substituídos por uma estrutura urbana em que o acesso a produtos culturais heterogêneos e a informações mundiais permitem um contato frequente com comunicações transnacionais. O que não sugere que as desigualdades de acesso às informações e cultura tenham acabado, mas sim que “amplas configurações híbridas fazem parte do cenário atual” (p. 126).

O conceito de cultura profundamente político e ideológico, segundo Chaui (2006), p. 130, reaparece no final do século XIX, quando “a antropologia precisou de um padrão para medir a evolução ou grau de progresso de uma cultura”. Evidenciado na Europa capitalista, esse padrão fez com que as sociedades passassem a ser avaliadas segundo a presença ou ausência dos elementos: Estado, mercado e escrita, que são oriundos do Ocidente; “e a ausência foi considerada sinal de falta de cultura ou de uma cultura pouco evoluída.”. Consequentemente, todas as sociedades que desenvolvessem formas de trocas, poder e comunicação diferente desses elementos eram definidos como “primitivas”. Na segunda metade do século XX, os antropólogos deixaram essa perspectiva, dando início à antropologia social e à antropologia política, nas quais cada cultura é singular e de estrutura específica.

Ainda segundo a autora, examinando como o Estado opera no Brasil, no tratamento da cultura, sua tendência é antidemocrática pelo modo em que a objetiva. Continua dizendo que tradicionalmente o Estado se apropria de toda criação social da cultura, com o subterfúgio de ampliar o campo cultural público, tornando-a cultura oficial, a fim de operar como doutrina e disseminar para toda a sociedade. Assim, o Estado se apresenta como “produtor de cultura, conferindo a ela generalidade nacional ao retirar das classes sociais antagônicas o lugar onde a cultura efetivamente se realiza.” (p.134). Seria o Estado, portanto, a classe dominadora, que tem obtenção legal de tudo o que pode ou não ser considerado como cultura. Para BOSI, dessa forma se perde uma rica experiência, pois quando duas culturas diferentes se defrontam como iguais que existem de diferentes formas, é uma para a outra como uma revelação; “mas essa experiência raramente acontece fora dos polos submissão — domínio. A cultura dominada perde os meios materiais de expressar sua originalidade.” (1987, p. 16).

No Brasil, após a década de 1980, houve uma proliferação das ONGs, disseminadas sob a inspiração de eventos como Rio-92, onde a comunidade política internacional admitiu ser necessário conciliar o desenvolvimento socioeconômico e a utilização de recursos naturais. A conferência no Brasil aconteceu vinte anos depois da primeira edição na Suécia, que desde então discute propostas para que progressos sejam sustentáveis.

Na conferência Rio-92 também foram incluídas propostas de respeito às culturas tradicionais e à diferença cultural.

No final dos anos 1980, ocorreu significativo movimento de retomada do interesse por cultura popular, que recentemente passou a ser categorizada como patrimônio imaterial. Conforme a Constituição Federal, art. 216:

Constitui patrimônio cultural brasileiro os bens da natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I — as formas de expressão. (p. 159)

No decorrer da história do país, foram inúmeras as tentativas de definir cultura popular tradicional, o que é uma tarefa complexa, por sua diversidade. Em 1989, na 25ª reunião da Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação e a Cultura (UNESCO), foi emitida uma recomendação sobre a vanguarda da cultura tradicional e popular. No documento define-se:

A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundada na tradição, expressa por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os ritos, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes. (p.2)

No Brasil, as dificuldades para jovens são grandes e as oportunidades são desiguais. É preciso considerar que as complicações são ainda mais pertinentes para jovens pobres, negros, mulheres e de orientação não heterossexual. As mensagens em grafites presentes nos muros se transformam em protestos contra supremacia política, que se contrapõem as representações hegemônicas e opressoras do Estado. Essa hegemonia, segundo CHAUI (2006, p. 22) é uma direção geral (política e cultural) da sociedade, um conjunto planejado de práticas, ideias, significações e valores que se confirmam uns aos outros e constituem um sentido absoluto, irrefutável.

Nesse sentido, “hegemonia é um sinônimo de cultura em sentido amplo e, sobretudo de cultura em sociedade de classes.”.

CARMO (2003, p. 180) considera grafite parte da cultura da rebeldia. Em sua obra fala brevemente sobre seu surgimento da expressão artística que se integra ao estilo de vida proporcionado pelo hip-hop

A arte no bico do spray é a expressão artística visual do hip-hop. Esse tipo de manifestação de rua surgiu espontaneamente no início dos anos 70 nas comunidades negras da cidade de Nova York. Inicialmente, num ato de transgressão e ousadia, pichavam os trens do metrô, com uma profusão de rabiscos indicando caligrafias de indivíduos ou gangues.

BERGAMIN (2015) nos atenta ao fato de que muitos jovens periféricos têm uma ligação com seu território de pertencimento, o que compõem sua relação com a cidade. Fatores econômicos, como aquecimento prolongado, novos comércios locais por conta do aumento do padrão de consumo, além de outros aspectos, podem justificar uma nova disposição dos jovens em permanecer nos bairros onde nasceram, mesmo quando ascendem socialmente.

Segundo CARMO (2003), no Brasil, a partir dos anos 90, a música de protesto voltou intensamente com um novo discurso e outra cadência. Um exemplo disso é grupo de rap Racionais MC’s, que tem grande aderência e causa identificação para moradores das regiões espraiadas da cidade de São Paulo, inclusive no extremo leste, como é o caso da Cidade Tiradentes.

Assim como nos primórdios do samba, que se originou de uma cultura marginal ligada aos setores populares, ocorre na atualidade o surgimento de um novo gênero musical que busca retratar, com fidelidade, dificuldades que a maioria da juventude pobre da periferia sofre no dia-a-dia. Ao cultivar “o ritmo dos excluídos”, os rappers tornam-se porta-vozes ou cronistas das injustiças sociais e dão visibilidade a seus problemas (p. 175).

A canção “Fórmula Mágica da Paz” foi composta e lançada pelo grupo RacionaisMC’s nos anos 90, e fala sobre o cotidiano e cenário caótico em que os jovens periféricos e negros estão inseridos até os dias de hoje. Apesar da falta de lazer, segurança, habitação, educação e ademais, há busca por identidade e de certa forma um tanto de orgulho.

Essa porra é um campo minado.

Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui

Mas aí, minha área é tudo o que eu tenho.

A minha vida é aqui, eu não consigo sair.

É muito fácil fugir, mas eu não vou.

Não vou trair quem eu fui, quem eu sou.

Eu gosto de onde eu vou e de onde eu vim,

Ensinamento da favela foi muito bom pra mim.

[…]

Não se acostume com esse cotidiano violento,

Que essa não é a sua vida, essa não é a minha vida.

Morô, mano? Procure a sua paz.

(RACIONAIS MC’s, 1997)

Para CARMO (2003, p. 175), “trata-se de uma cultura de resistência que oferece um excelente trato do Brasil contemporâneo”, isso porque esses jovens produzem críticas sociais com músicas, por compreender que o verdadeiro rap serve para defender ideias de preferência radicais. O autor continua dizendo que “o rap deu voz às tensões e às contradições do cenário público urbano” (p.179).

O coletivo Du Gueto, estudado por mim e meu grupo, movimento de cultura no bairro da Vila Yollanda II, também promove o Sarau Sujo e assim dá visibilidade para que qualquer indivíduo se expresse de maneira artística. Para além, os saraus reúnem pessoas de todas as idades para uma sociabilidade ligada à demonstração cultural e política na periferia. A região é rica de experimentações culturais, e movimentos sociais vem buscando a consolidação das experiências para revoluções políticas.

Bom, chegamos ao fim do segundo capítulo da série. No próximo, terceiro e último, falarei sobre o momento politico e programas públicos, suas contribuições e desamparos.

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Leila Evelyn
afrontadora

Me disseram que essa era a mídia social do textão, por esse e outros motivos, aqui estou. — 26 anos, Relações Públicas, produtora e várias fita.