10 de Maio de 2017 — O medo

Rodrigo Bressane
Life After Suicide
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5 min readMay 11, 2017

Este artigo é parte da série “Como é tentar se matar e falhar”. Comece por ali, caso ainda não tenha lido.

Quarta-feira, Dia D + 33
3 dias para a alta. Talvez 2.

Ontem não me deram os dois comprimidos que tomo para dormir. E eu nem percebi. Resultado? Passei a noite em claro, li a Enciclopédia Britânica duas vezes e ensaiei uma versão própria de Hamlet fazendo todas as personagens.

Lá pelas tantas, tomei coragem e caminhei o corredor sombrio da ala masculina da clínica até o ponto mais próximo da janela da enfermaria. Com o auxílio de um colega mais experiente, gritei o enfermeiro na calada da noite. Não queira saber como o processo pode ser tétrico.

Depois de acordar (julgando pelo tempo de resposta) o enfermeiro abriu a pequena janela e atendeu às minhas súplicas por algumas gotas do se necessário, remédio que eu já estava abandonando, mas nesta noite foi, de fato, muito necessário.

Bastaram 20 minutos para que eu deixasse de habitar essa dimensão. Fui sonhar em branco, que é um dos efeitos das gotas do sono. Outro efeito colateral eu descobri de manhã, com ninguém menos que o Imperador. Sim, o Dr. Juan em persona, na janela do quarto, já com a cabeça para dentro e batendo forte na parede. “Vamos acordar, rapazinho?”, bradou no famoso sotaque portenho.

A única resposta adequada depois de saltar da cama como se uma cascavel estivesse dormindo comigo seria “vamos”. Em vez disso, acabei soltando palavras sem o menor nexo numa língua inventada naquele instante, no calor do momento. Fiquei contente pelo “rapazinho”.

Tomei um banho rápido e subi para a palestra da manhã. Fui surpreendido no refeitório pela Maíra, nutricionista bonita e popular, me oferecendo um café da manhã overtime. Tive que aceitar. Comi bolo de fubá e docinho de leite cor de doce de outra coisa.

Aproveitei o ensejo pra anunciar minha saída em dois dias, aguardando pelo inevitável frenesi de choro, lamento, comoção infinita e o jorrar de lágrimas. Nada disso aconteceu, estranhamente. Entendi como um sinal para contar que ela é personagem nobre nos meus diários. A curiosidade acabou rendendo ums rabiscos dela no meu Moleskine com seu contato no Facebook. Serei amigo da Maíra!

A palestra da manhã foi conduzida pelo psicólogo Bad Cop, que puxou uma música do Tim Maia antes de começar. Cada vez que uma música de qualquer natureza é cantada numa palestra, o valor da apresentação cai 87%.

Novamente, Liberdade foi o assunto. Desta vez com conceitos de Aristóteles, Freud, Schopenhauer, Sartre e meu filósofo favorito, o Pai dos Burros, Sr. Aurélio. A conversa eventualmente caminhou para temas como “erro”, “livre arbítrio”, “autonomia” e outros.

Mas o meu assunto do dia é a consulta com o psiquiatra. Será ele o homem por trás da porta dos desesperados? O que grita “pegadinha” e me avisa que louco sou e louco fico?

“Rodrigo Bressane”, chamou uma monitora para tirar a minha dúvida de vez. “O doutor quer te ver”. A consulta foi rápida. Meu lítio está nos níveis terapêuticos, minha evolução geral foi excelente, nas palavras ditas e escritas pelo psiquiatra. Minha alta está confirmada e poderei sair na sexta. Como eu sou eu, tentei chorar uma saída amanhã, na quinta. Um chama o outro, que responde pro um. Disseram que vão tentar. Fico sabendo amanhã cedo. Oremos mais.

Continuando a lista de coisas pra mexer na vida daqui pra frente (última edição):

  1. Parar de beber: queria muito ter escrito “beber socialmente”. Mas eu preciso mesmo parar de beber. Depois de 10 anos de cirurgia bariátrica eu descobri, aqui na clínica, que a absorção de álcool no meu organismo é seis vezes maior que em uma pessoa normal (médicos e especialistas com informação diferente comentem, por favor). Seis fucking vezes. Isso explica 90% das coisas mais estúpidas que já fiz na minha vida. Tarde demais, infelizmente. Fato é que as cagadas homéricas da minha paupérrima jornada foram alcançadas por estar alcoolizado. Perdi o respeito dos meus filhos, o apreço de pessoas queridas, e destruí um relacionamento, temo eu, de forma irreparável. Não posso beber e não quero mais beber. Não sei ainda como executar esta tarefa. Mas estou aqui para aprender.
  2. Visitar a Europa mais vezes: quantas vezes? Muitas. O máximo que der. Dá pra ir infinitas? Quero infinitas. Não há um lugar no Velho Continente em que você não se sinta deslumbrado, seja pela memória, pela beleza da arquitetura, pelas pinceladas de grandes mestres, pela florista de bicicleta ou pelo vento no rosto do casal no café. A mágica européia, só lá. Agora, conecte esse item com aquele outro de viajar o mundo de moto. Sentiu o drama?
  3. Me contentar: com as coisas e situações, do jeito que são. Parar de tentar deixar o mundo do meu jeito. Apreciar as coisas da vida e do planeta no estado em que elas se encontram. Soltar pedras e pegar flores. Tá, até eu tenho raiva desse jeito que estou falando. Parece que quero viver em comunidade, pelado, fazendo artesanato. Tá aí uma ideia, não fosse pelo artesanato.
  4. Refletir sobre as consequências: de tudo. Do que vou fazer agora. Amanhã. Mês que vem. Usar esta reflexão para tomar decisões melhores. Isso deve valer para grandes coisas, como um contrato, a compra de uma casa. E para pequenas coisas, como “devo aceitar esse convite?”, “piercing no pinto é mesmo uma boa forma de expressão?”.
  5. Focar no meu tratamento: sei que não saio daqui muito melhor do que entrei. Este diário, as centenas de e-mails que recebi, as centenas de mensagens de amigos antigos, novos, adormecidos, foram um acontecimento maravilhoso. Mas saio daqui o mesmo Rodrigo, com a mesma cabeça, os mesmos parafusos soltos, tudo igual. Há uma diferença, entretanto: o propósito. Eu quero viver. Melhor que a vida passada. E vou cuidar para que isso aconteça.

Verdade é que hoje é um dia de medo. Sabe toda aquela vontade de sair deste lugar que eu sinto desde o primeiro dia? Juntou numa pilha de aflições. Pavor do que vou encontrar lá fora. De lembrar que do outro lado do portão azul as coisas permanecem como estavam no dia 7 de Abril. Talvez um tanto melhores. Quem sabe um tanto piores.

Aos poucos me voltam pensamentos dolorosos, imagens que eu queria esquecer, dores que eu não queria mais sentir. Justamente as coisas com as quais eu terei que lidar do portão pra fora. Eu sei que o Monstro não morre. Ele adormece, ele é domado. Mas morrer, ele não morre.

Em todos esses dias que eu escrevi, eu fui verdadeiro. Do meu jeito, exagerado às vezes, omisso em outras. Mas fui verdadeiro. Escrevi com lágrimas genuínas. Dores bem doídas. Não é agora que vou começar a mentir. Estou com medo. Em bom português, estou me cagando de medo e ansiedade. Este sou eu. Frágil como uma boneça de porcelana. Que a vida tenha misericórdia de mim.

Adorei ver os comentários direto no Medium. Por favor, continuem!

Amanhã tem mais. Eu criei uma lista de músicas que tenho ouvido enquanto estou internado. Para ouvir, assine minha playlist do Spotify “After Death”. Ela é colaborativa. Significa que, além de assinar, você pode contribuir com músicas que goste.

Se quiser falar comigo, escreva para rodrigo@bressane.com.

Seja gentil,
Rodrigo Bressane

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