11 de Maio de 2017 — Esperança

Rodrigo Bressane
Life After Suicide
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5 min readMay 11, 2017

Este artigo é parte da série “Como é tentar se matar e falhar”. Comece por ali, caso ainda não tenha lido.

Quinta-feira, Dia D + 34
Alta amanhã.

Acordei e fui direto ver o coordenador da clínica, nosso amigo Darth Vader, que tem me tratado bem. Me viu de longe e fez aquela cara de que meu pedido não ia colar. “Sua saída vai ter que ficar para amanhã”, disse. Falou de algumas formalidades, mas explicou que posso sair cedo, a partir das 7 da manhã, se eu quiser. Pensei em pedir pra sair às 6h59, mas lembrei do meu compromisso de ontem, de me contentar mais com as coisas.

Decidi não participar da palestra da manhã. Minha cabeça não está mais aqui. Aliás, não sei por onde ela anda. Se tem uma coisa que ela fez nestes quase 40 dias foi pensar. Muito.

Uma das minhas amigas de faculdade que escreve e-mails quilométricos (e que eu adoro), a Francis, me recomendou a releitura de O Alienista, de Machado de Assis. Eu, como faço com quase tudo que a Francis me fala (ela deve discordar), obedeci. E que experiência! Foi como assistir ao desenrolar de doidices do Bacamarte de dentro da Casa Verde. Me lembrou de quando assisti ao O Resgate do Soldado Ryan em Omaha Beach.

Outra amiga, também da faculdade, que me escreve e-mails com várias milhas náuticas (e que igualmente amo), a Kelen, um dia desses me mandou um áudio de 15 minutos. Levou horas para baixar com a Internet movida a hamster aqui da clínica. Quando finalmente consegui ouvir, foi como se ela fosse o próprio Ed Harris em O Show the Truman, assistindo aos meus movimentos, meu comportamento, meus sentimentos, por dias e dias. Um espelho mágico virado para a minha cara. Como esse áudio me ajudou.

Sheila, da mesma turma, é psicóloga e me fez entender muita coisa do meu comportamento. Meu deu dicas valiosíssimas de como não parecer mais doido do que já sou. Puxou minhas orelhas. Me deu broncas. Conversou comigo diariamente. Algumas coisas que me ensinou serão valiosas pro resto da vida.

Fui acompanhado de maneira comovente por uma multidão. Os textos deste diário foram lidos por mais de 15 mil pessoas (até hoje). Eu fui agraciado com centenas de mensagens positivas. Com palavras de compaixão, incentivo e força. E por cada uma delas sou imensamente grato. Sem falar nos tantos que entupiram minha playlist no Spotify com músicas ótimas pra eu ouvir por aqui.

E, na véspera de deixar Alcatraz Paulista, minha cabeça continua dando seus passeios. A mente já quer saber do trabalho que recomeça semana que vem. De coisas que precisam ser feitas ou revistas logo no primeiro dia. De afazeres. De acertos.

Penso também em pessoas com quem gostaria de reconectar. Meus pais e irmãos, por exemplo. Estamos brigados? Não. Só não existe conexão. Eu culpo Jesus. Eles culpam o fato de eu não gostar de Jesus, o que prova meu ponto. Se eu e minha família fôssemos os Beatles, Jesus seria nossa Yoko Ono. Com a diferença que a Yoko existe.

Penso muito no meu pai. A única pessoa da minha família com quem não falei desde o Dia D. Não trocamos uma palavra sequer. Ele mandou um recado apenas. Que eu fizesse a barba. “Ele está muito feio assim”, foi o encorajamento paternal. Eu dei uma ajeitada antes de vir para cá. Mas não sei se ele sabe.

Penso na pessoa que desatou meus nós no dia 7 de Abril. A mulher com quem passei 25 anos da minha vida. Me salvou do pior. E agora me tem vivo para se despedir, finalmente. Do ex-marido doido que ela amou um dia. O que faz dela igualmente doida. Casa Verde pros dois.

Penso nos meus filhos. E não sei o que pensar. Como ir de “pior pai” para “qualquer outra coisa pai”? Especialmente com a possibilidade de que eles estarão distantes de mim. Tenho algumas ideias. Mas a mente caminha longas distâncias.

Penso nas pessoas que conheci aqui. Alguns pacientes com quem fiz amizade. Alguns que só pude observar de longe. Como a senhora de voz gravíssima, destruída pelo cigarro, que se pinta todos os dias, numa maquiagem exagerada, quase uma personagem do Cirque du Soleil.

Como o Mr. Chess, que ontem, pela primeira vez, recusou minha oferta para uma partida. “Hoje eu quero ver como o fulano joga”, foi a resposta. Uma rejeição de Mr. Chess como despedida.

Tem o esquizofrênico que todo mundo adora, mas precisa de supervisão constante porque quebra o que vê pela frente.

Lembro das meninas da cozinha, da limpeza, da enfermaria. Uma delas, com o sorriso mais lindo que eu já vi. Daqueles que não se desfazem. A pessoa é feliz. Ponto.

E Maíra, a nutricionista, que é bonita, popular, legal com todos que vê pela frente e, agora, minha amiga no Facebook.

Depois de um tempo divagando por estas bandas, minha mente finalmente voltou-se para mim. Para quem eu sou, quem eu quero e posso ser. E, ao contrário de você, que me lê e me escreve, se tem alguém que não é gentil comigo, é a minha pobre caixola. Responde minhas questões sem um pingo de misericórdia e com pragmatismo mais que exagerado.

A mente me diz que sou um cara perdido no mundo, sem rumo. Uma espécie de homem ao mar. Me lembra que quero ser tudo o que escrevi nos últimos dias — dono do meu destino, responsável, aventureiro, apreciador das boas coisas da vida, simples, amante da felicidade. Por fim, me mostra o futuro. Quem eu serei realmente, anos depois de cruzar os portões azuis. E tudo que vejo é nada. Ou melhor, vejo uma enorme sala branca. E, nela, uma a garotinha de vermelho e semblante triste que me acompanha ultimamente em sonhos. Eu olho pra ela. Ela me olha de volta, não mais que um segundo. E eu só consigo pensar nela. Na garotinha de vermelho. Seu nome, Esperança.

Adorei ver os comentários direto no Medium. Por favor, continuem!

Amanhã tem mais. Eu criei uma lista de músicas que tenho ouvido enquanto estou internado. Para ouvir, assine minha playlist do Spotify “After Death”. Ela é colaborativa. Significa que, além de assinar, você pode contribuir com músicas que goste.

Se quiser falar comigo, escreva para rodrigo@bressane.com.

Seja gentil,
Rodrigo Bressane

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