21 de Junho de 2017 — Paris veio a mim

Rodrigo Bressane
Life After Suicide
Published in
4 min readJun 21, 2017

Este artigo é parte da série “Como é tentar se matar e falhar”. Comece por ali, caso ainda não tenha lido.

Um mendigo me abraçou. Na calada da noite. Sob a luz vermelha de um semáforo. Roupa de mendigo, sujeira de mendigo, cabelo de mendigo, perebas de mendigo e bafo de mendigo. Me abraçou de jeito. Aos meus ouvidos, sussurrou duas ou três frases num dialeto de mendigo. Incompreensível. Em seguida, em português claro, pediu-me de presente uma Harley como a minha. Expliquei que só tinha aquela “e olhe lá”.

Me cumprimentou e partiu ao ouvir a doce melodia da sirene da Guarda Municipal, ligada exclusivamente para ele. O mendigo despediu-se com a certeza de ter deixado o melhor abraço que podia. Eu concordo. Foi um ótimo abraço. Recebido e lançado nos anais da memória. Porque estou mudando. Tentando melhorar. E para este novo eu, abraço de mendigo vale dois pontos, ao invés de ponto algum, como já foi o caso num passado nada remoto.

Crescer dói. Depois de velho, mais ainda. Aos 40, sou um vasilhame de infantilidade finalmente dando sinais de que vai quebrar. Minhas trincas são teimosas, mas cederão, eventualmente.

A maturidade que chega quer me tomar muitas coisas. Cheia de boas intenções a danada. Levou, há 80 dias, qualquer traço de apreço pelo álcool. Há quase três meses que não bebo. É pouco, mas é muito. São 80 dias a mais que dia nenhum. Pretendo não beber por mais três meses, depois seis, e doze, até o infinito.

A pinga nunca foi minha amiga. Me encantava no primeiro gole. Me envergonhava no segundo e derrubava nos demais. Me fez perder de tudo. Começando pela compostura. Terminando com o respeito, afeto, carinho e amor de muitos. Perdi gente ruim. Perdi gente boa. Perdi o que podia. Perdi o que não podia. Tudo coisa do meu enrosco ébrio, que acabou a tempo de salvar minha vida, mas tarde demais para salvar o resto.

E aqui estou. Dando lugar a ela. Essa tal maturidade. Que ainda não me convenceu a abrir mão de tudo, fraquinho que sou. Gosto de chorar quando vejo beleza. Na música, na arte, nos livros, nos versos, na natureza. Gosto do pranto da saudade. Um gosto besta, eu sei. Saudade dói. A maturidade, suspeito, pretende tirar isso de mim. Espero que não consiga.

Troquei de terapeuta. Você queria “O Doutor”. Eu também. Não vai dar certo. Queria explicar, mas falta-me o ânimo. Portanto, vamos esquecer deste assunto e focar no fato de que há uma nova terapeuta. Em quatro consultas ela já acha que eu gosto da dor. Que preciso dela para viver. Deve estar certa. É a única explicação pra eu me segurar em coisas que me trazem sofrimento. Culpa da minha queda de braços com a maturidade.

Estou gostando da terapia. Nas duas primeiras consultas falei quase 100% do tempo. Nas duas últimas falei 98% do tempo. Falar tanto me aflige um pouco, confesso. Me dá a impressão de que eu deveria ouvir um pouco também. Mas deve ser assim que funciona. Minha experiência com terapia é mínima. Esta semana volto para falar mais um pouco. Não sei avaliar o resultado, por isso vou dizer que está excelente.

Tenho uma psiquiatra. Ela se veste maravilhosamente bem. Tem um corte de cabelo incrível. Eu reparo nestas coisas e quase sempre avalio a competência de todo mundo pela aparência. Está certo? Claro que não. Mas a essa altura do campeonato você já me conhece e sabe que não sai coisa boa daqui. O importante é que ela me receitou novos remédios e tenho me sentido melhor. Exceto pelo fato de que minha visão caminha para o Limbo. Mas ainda não consegui associar as coisas. Vamos aguardar.

Recebi uma ligação do meu amigo francês, o Christian. Ele é francês por dentro e por fora. Francês completo, com opcionais de fábrica. Mas é brasileiro também e, por isso, sabe o que é um perrengue Tupiniquim. De um café nos arredores do Arco do Triunfo me chamou para um papo de amigo. Queria me oferecer palavras de conforto, incentivo, “fica firme” e todos os derivados destas. Ele é um grande camarada. Um cabra do bem.

Eu, que não sou tão do bem assim, me distraí com dois minutos de conversa. É que, no áudio da nossa ligação, notei que ao fundo havia o background do Christian: Paris. Com a canção dos grandes prazeres da Terra. Desliguei o canal auricular que ouvia o Christian e me dediquei ao deleite daquela música incontroversa. O bater de taças, o girar da colher na xícara de café, o casal conversando à esquerda, o movimento de quadris da garçonete, o rapaz bonito para quem os quadris se mexeram e, finalmente, a garota loira de rabo de cavalo, olhos azuis como nunca se viu e o sorriso de uma fada. Um anjo se exibindo às conexões elétricas da minha cabeça, usando a chamada do Christian como transporte para um espaço azul, branco e vermelho do meu peito.

Naquele instante, enquanto o pobre Christian falava com paredes do interior paulista, eu fui a Paris. Me reencontrei com a cidade, seus cheiros, sabores e vislumbres. Lá fiquei por um bom tempo antes de aterrisar do êxtase, me esbofetear a cara, explicar tudo ao amigo e pensar que passou da hora de tomar um café com ele. Devo-lhe esta cortesia.

Minha vida está normalizando. Aos poucos. E com isso, estranhamente, perdendo a graça. Quanto mais estável, mais inócua. Com o tempo e os remédios, a depressão sumiu. Mas não veio nada pro lugar. Ficou um espaço em branco, sem função, anestesiado. Esperando, quem sabe, pela visita do anjo de olhos claros e sorriso arrebatador. Ou o abraço de um mendigo sorridente num semáforo qualquer.

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