24 de Maio de 2017 — O Doutor

Rodrigo Bressane
Life After Suicide
Published in
5 min readMay 25, 2017

Este artigo é parte da série “Como é tentar se matar e falhar”. Comece por ali, caso ainda não tenha lido.

“Eu gostaria muito que você fosse ver o Rubens”, me sugeriu o doutor Irapuan, meu amigo. Mais de uma vez. Falou no começo, falou no meio e falou no fim — ou mais recentemente, se preferir. O Rubens, no caso, é o Dr. Rubens, um psiquiatra e psicanalista “pica das galáxias” de São Paulo. Mas não é só, apressado leitor. Segure sua poltrona, seu banquinho de madeira, sua cadeira empenada da Tok&Stok. O Dr. Rubens, veja você, é justamente quem recomendou aos meus amados amigos e familiares a clínica psiquiátrica, a deliciosa Alcatraz Paulista, que me acolheu com tanto amor. Hoje, livre que sou, fui a São Paulo. Para ver o Dr. Rubens.

Cheguei ao consultório com 10 minutos de antecedência. Pouca coisa me dá tanto prazer quanto chegar antes aos compromissos. Pouca coisa me enche tanto de angústia quanto chegar depois. Fui atendido pela moça simpática que, junto com as usuais palavras de boas vindas, me entregou uma prancheta orientando para que eu preenchesse um formulário. Nem vi o Dr. Rubens e já entreguei uma dezena de informações. Todas com letra de forma, que é como escrevo quando estou agitado. Quando estou calmo também. Primeira tarefa cumprida e fui encaminhado para a sala de espera, para onde me dirigi, calmamente, enquanto tentava abrir o papel grudento de um Halls de 1987 que achei no bolso, perto do dinheiro para o pagamento da consulta.

A saleta apertada tinha alguns livros, um filtro de galão com roupinha de renda, algumas poltronas e, na parede, um quadro sobre o Bispo do Rosário, um brasileiro com passado na marinha, carreira de pugilista e uma série de alucinações místicas que o fizeram hóspede perpétuo de um manicômio aqui, outro ali. E assim, trancado em seus delírios, tornou-se um dos mais importantes artistas contemporâneos do Brasil, com mais de mil obras reconhecidas mundo afora. Pensei nas pessoas que conheci na clínica, especialmente as que viviam seus universos próprios. Pensei no Mr. Chess. Me bateu saudade.

Antes que eu pudesse me emocionar notei que, apesar da vitória com o papel do Halls, 83% da bala ficou grudada em meus dedos. E estava quase na hora de entrar para a consulta. Peguei um copo de plástico, um tantinho de água filtrada do galão rendado, improvisei uma pia e voilà, mãos limpas, macias e pequenas. Bem a tempo de apertar as do Dr. Rubens, que acabava de abrir a porta do consultório para me receber. Mãos de quem tem estrada. Mãos de quem é “pica das galáxias”, como me avisaram. Mãos de quem recomenda clínica.

A entrada no consultório me fez perceber que eu tinha dois objetivos imediatos. Primeiro, decifrar a figura do Dr. Rubens, o que eu já faria de qualquer forma. Segundo, compreender o ambiente em que eu acabara de entrar. Resolvi começar pelo último, tal a complexidade do lugar. Começando pelos livros, uma mar deles, espalhados por todos os cantos. Se cabia um livro, havia um livro. De algum lugar, ecoava música clássica do primeiro time. À volta, objetos dos mais variados. Quase uma feira do mercado de pulgas. Vi caixa de som, uma pia minúscula, menor que uma mão de bebê, vi até uma estrela do PT cuidadosamente ajustada contra um beiral da parede. Imagino que deve ter sido recebida do próprio Lula no dia da fundação do partido. Ou faz parte da juventude do doutor. Não deu pra descobrir hoje.

Descrever o Dr Rubens é mais fácil. Imagine um cosplay perfeito de Albert Einstein, já de cabelos brancos, mas cheio de vida. É isso. Imaginou com precisão. Agora vista-o com camisa branca, calça jeans e sapatos marrons que aguentam o tranco. Está aí o Dr. Rubens. Um sujeito por quem eu tive imediata empatia, o que fez todo meu rancor pela história da clínica desaparecer. Menos um assunto pra conversar. Ótimo.

A consulta foi um papo. Como eu imaginei que fosse. Ele pediu café pros dois. O dele com adoçante. O meu, puro, porque eu tenho sérios problemas mentais, mas não sou bárbaro. Pediu que falasse de mim. Comecei e com três palavras fui interrompido. “Você está falando como os médicos falam”, advertiu. “Quero ouvir você de verdade”. Expliquei que sou jornalista por formação e passei a minha vida editando aquilo que eu falo. Ele elaborou uma hipótese. De que eu teria feito jornalismo por gostar de editar e não o contrário. Eu gostei da hipótese, mas ofereci a verdadeira razão de ter escolhido o curso. “Meu sonho era falar no rádio”, contei. “Passei a infância e adolescência com um rádio de ondas curtas debaixo do travesseiro”, expliquei, descobrindo que ouvia rádios que ele também ouvia.

Desse ponto o papo fluiu. Falamos de motociclismo. Falei da minha Harley. Ele da BMW. Falei do tempo na clínica. Falei do Mr Chess, do diário, das experiências que consegui captar enquanto estava internado. Falei de Deus, da falta dele. Falei de Einstein, de Freud. Falei mais de mim, dos meus dramas, das minhas fraquezas, das dores, de tudo que coube falar no momento. “Me interessei por você”, ele disse num determinado ponto. “Vamos ter que conversar muito”, emendou, assegurando que seria de grande riqueza para ele manter esses diálogos comigo (pensei em cobrar).

Me senti muito bem com tudo o que aconteceu. Teria facilmente conversado com ele por toda a eternidade. Que aliás, é o que ele quer. Sugeriu dois encontros por semana, até quando eu não sei, ou seja, ad infinitum. Minha cabeça imediatamente processou duas informações. Primeiro, que maravilha! Segundo, valor da consulta vezes dois, vezes quatro, vezes doze, vezes eternidade, puta que pariu, fodeu. Combinamos de discutir pormenores num outro encontro, fomos dar uma olhada na moto e nos despedimos.

Voltei para o escritório bem. Sentindo que o encontro com o Dr. Rubens havia sido proveitoso, exatamente como meu amigo Irapuan avisou. O Dr. Rubens pode, acreditei, acertar meus parafusos. E eu estava realmente melhor. Mais leve. Certamente há boa dose de placebo nisso, mas coloquei a mão no peito e senti que um bom pedaço da dor dos dias anteriores não estava mais lá. Depois coloquei a mão no bolso e senti o volume do maço de dinheiro. Esqueci de pagar pela consulta.

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