O Dev de 40 anos

Felipe Rayel
afya
Published in
3 min readJul 21, 2023

Ele estava na varanda do apartamento conversando com Daniel, que veio de visita ao Brasil e quis encontrá-lo para saber como as coisas estavam. Se viram pela última vez 5 anos atrás, mas tinham se formado junto há muito tempo, depois trabalharam na mesma empresa e então cada um seguiu seu rumo.

Daniel trabalhava no vale do silício em uma big tech de dar inveja, recém-promovido a Gerente Sênior de Desenvolvimento Global de Engenharia para América Latina e das Galáxias.

Entre um gole e outro daquele drink fluorescente exótico que só ele sabia preparar, conversavam sobre hobbies e lembravam de histórias da época da faculdade.

Contou a Daniel, sem esconder a empolgação, sobre o novo sistema no qual estava trabalhando, sobre os desafios das novas tecnologias e tudo que teve que aprender desde que havia se formado. Até que Daniel perguntou:

— Mas você ainda é programador?

Dentro de sua cabeça, um teste nuclear se iniciava. 4, 3, 2, 1… Uma grande bola de fogo brilhante se expandiu formando uma nuvem em forma de cogumelo. A onda de choque arrastou árvores, veículos e casas por quilômetros de distância.

Aquela simples pergunta fez surgir dezenas de indagações em sua mente. Talvez não a pergunta toda, mas o detalhe do “ainda” fez toda a diferença. Ele não era programador e sim um desenvolvedor, um engenheiro de software, apesar de saber que, no fundo, eram apenas palavras que significavam a mesma coisa. Já o mercado dizia que quem desenvolve tem a visão do todo, enquanto o programador só escreve códigos. Mas a verdade é que, hoje em dia, quem não tem a visão do todo, só fica copiando código da internet.

Sim, ele ainda desenvolvia. Não por falta de opção, mas porque amava o que fazia. Era desenvolvedor Sênior e se orgulhava disso. Dividia seu tempo entre a programação e a mentoria de desenvolvedores mais novos. Escrevia código de olhos fechados e se gabava de ter começado em uma época que nem a Internet existia. Sobreviveu ao bug do milênio, ao hype das ferramentas de programação visual e dizia que assistentes como ChatGPT e Copilot deixariam os iniciantes com preguiça de resolver problemas.

Mas o questionamento de Daniel fazia sentido. Por que depois de tanto tempo ele ainda queria continuar escrevendo código? Essa questão sempre surge em algum momento da carreira de quem é desenvolvedor.

Escrever código é um ofício naturalmente operacional. Você tem que pôr a mão na massa, caso contrário, a coisa não acontece. Por isso, muitos desenvolvedores se sentem como operários de uma construção civil, assentando tijolos amarelos em uma estrada que nunca terá fim.

Só que não é bem assim, a começar pelo salário. Desenvolvedores experientes, que sabem resolver grandes problemas e estão sempre se atualizando, são tão bem valorizados quanto administradores. Além disso, existe uma infinidade de tecnologias por aí que mudam o tempo todo, e encontrar alguém capaz de assumir grandes responsabilidades técnicas não é tarefa fácil para as empresas.

Alguns desenvolvedores após chegar à Sênior, quando realmente ficam bons, decidem deixar a programação de lado. Escolhem seguir a carreira de gestão, ao sentirem que o que faziam não trazia mais a mesma satisfação de antes, ou pensam que só assim conseguirão progredir na carreira e ter melhores salários na Cidade das Esmeraldas.

Para resolver esse problema, foi criada a carreira em Y. Neste modelo de carreira, chega um momento no qual o desenvolvedor deve escolher se quer continuar se especializando ou quer seguir na área administrativa. E sempre haverá quem naturalmente tem o desejo de seguir a área de gestão, ao sentirem que suas habilidades se encaixariam melhor neste tipo de cargo.

Entretanto, há muitas profissões que são predominantemente técnicas e permitem a ascensão em cargos de especialista. Por exemplo, o médico: o cirurgião sempre precisa continuar estudando e praticando para aprimorar suas habilidades. Com o tempo, ele pode reduzir a quantidade de cirurgias e ensinar a prática aos médicos mais novos, sem, necessariamente, se tornar um administrador de hospital ou diretor de um centro cirúrgico.

Portanto, sim, ele era um desenvolvedor, e sentia que, se mudasse de área, viraria um espantalho. No entanto, quando estava programando, ele era o próprio Mágico de Oz.

--

--

Felipe Rayel
afya
Writer for

Engenheiro de software e escritor de histórias de ficção. Siga-me em https://www.getinkspired.com/pt/u/rayel/