Encarceradas

Catherine Kuehl
Agência Amanajé
Published in
30 min readMar 30, 2021

Histórias de mulheres no Presídio Regional de Joinville

Elas são 42 mil que, depois da janta, vão se deitar nos presídios e penitenciárias do Brasil. Não apenas dormem, como acordam, trabalham, leem livros, tomam banho de sol, lavam roupas, recebem visitas, riem, choram e sentem saudades. Essas mulheres representam 5,83% da população carcerária brasileira.

Pode parecer pouco em comparação aos homens, mas esse número já foi ainda menor. Elas eram cerca de 5.600, em 2000. Desde lá, a quantidade de presas no país subiu 656%. O crescimento da população masculina não chegou nem na metade disso, 293% — eram 196 mil, em 2000, e agora são 665 mil.

O sistema prisional brasileiro não estava e não está preparado para um crescimento da população feminina nessa proporção, apenas 7% dos estabelecimentos penais são destinados às mulheres. Outros 16% são mistos, com alas e celas divididas por gênero. O resultado são celas superlotadas e falta de estrutura adequada para as necessidades femininas. O Presídio Regional de Joinville é um exemplo.

As presas ficam em uma antiga ala masculina, reformada para recebê-las provisoriamente, até que a penitenciária feminina fique pronta. Com obras atrasadas, a inauguração antes planejada para 2019 foi adiada. Enquanto isso, as mulheres continuam no presídio misto em uma ala improvisada.

“Encarceradas” conta histórias de mulheres que passaram pelo sistema prisional. São relatos sobre o que as levou a condenação, como é o dia a dia no presídio e os desafios de voltar à liberdade. Por entender que as presas e ex-presas são fontes em estado de vulnerabilidade, esta reportagem utiliza de nomes fictícios para protegê-las de possíveis discriminações.

ANTES

Elas constam do mesmo lugar e são da mesma cor

“Senhora, quero voltar para a cela”, Luísa (nome fictício) pede baixinho, sem fazer contato visual com a psicóloga. A presa esfrega os dedos. É o único movimento que consegue fazer com as mãos unidas pelas algemas. Nas canelas, mais algemas. Essas, estão separadas por uma corrente com cerca de 30 centímetros de comprimento, para permitir que sua portadora consiga andar. A calça e camiseta alaranjadas a identificam como reeducanda do presídio.

A psicóloga explica que não tem ninguém para acompanhá-la de volta ao pavilhão. Há pouco, outra presa teria “surtado”. A profissional não deu detalhes, nem apontou a natureza do surto. Logo em seguida, uma visitante foi pega tentando entrar com um smartphone escondido. Precisou ser levada para a delegacia. Os dois eventos aconteceram quase que em simultâneo e ocuparam todas as agentes carcerárias de plantão.

Luísa escuta a explicação e assente. Estamos em uma sala, com chão de taquinhos de madeira, no prédio administrativo do Presídio Regional de Joinville, localizado na rua 6 de Janeiro, no bairro Paranaguamirim, zona sul de Joinville. Pela janela, encaro o céu azul sem nuvens. Clima atípico na região. Não há sinal de vento que possa amenizar o calor úmido da primavera.

Cercado por uma densa massa verde formada pela Mata Atlântica, o presídio fica em um dos bairros mais periféricos da cidade. Para chegar ao centro, é necessário pegar dois ônibus, em uma viagem que dura, mais ou menos, uma hora. De carro, não leva nem meia hora. Isso, se o trem não atrapalhar. Os trilhos atravessam a área urbana de Joinville.

O Presídio Regional de Joinville não atendeu aos meus pedidos de informar os dados das mulheres da ala feminina. Os números solicitados se referem à faixa etária, raça ou etnia, estado civil, escolaridade, quantidade de filhos, crimes e natureza da prisão — que pode ser sem condenação, sentenciadas a regime aberto, sentenciadas a regime semiaberto e sentenciadas a regime fechado. O juiz João Marcos Buch, titular da Vara de Execuções Penais de Joinville, explica que a administração do presídio não possui tal refinamento dos dados.

No entanto, Buch caracteriza a mulher presa como jovem, negra, com filhos e vulnerável econômica e socialmente. “É uma seletividade que vem de um histórico racista e machista. Características de uma sociedade polarizada e violenta, decorrente da escravatura brasileira, que nunca foi superada”, contextualiza.

A advogada Cynthia Maria Pinto da Luz, presidente do Conselho Carcerário de Joinville, reforça as palavras do juiz. “São mulheres pobres, carentes, originadas em famílias que têm sérios problemas econômicos e sociais. Mulheres que não têm qualificação para trabalho, que não conseguiram estudar, que, normalmente, têm muitos filhos”, descreve. A advogada chama a atenção para as mulheres que assumem os postos dos maridos e companheiros que já foram retirados do crime, seja porque estão presos ou mortos.

Os números gerais, do Brasil e por estado, são acessíveis. Coletados pelo Sistema Penitenciário Nacional, os dados são organizados e divulgados no Levantamento de Informações Penitenciárias, mais conhecido pela sua sigla, Infopen, Organizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), que faz parte do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Sobre a população carcerária feminina, a segunda edição do Infopen Mulheres, divulgada em março de 2018, mostra que o perfil das presas em Joinville se repete no âmbito estadual e, também, nacional.

Assim como Luísa, que estudou até a oitava série, metade das mulheres presas no Brasil têm baixa escolaridade. Em Santa Catarina, esse número é ainda maior.

55% não têm o ensino fundamental completo. Além disso, Luísa é casada. Assim como 42% das apenadas em Santa Catarina. O estado se diferencia do restante do país em relação ao estado civil das mulheres. No restante do país, dois terços das presas estão solteiras.

A pele de Luísa, com seu tom que lembra a madeira do Jatobá, a faz, mais uma vez, representante do perfil da presa brasileira. Mais da metade da população brasileira é negra. Em 2016, 55% se consideram de cor negra ou parda e, no sistema prisional, não é diferente. Negras e negros são a maioria da população feminina e masculina. A proporção é que destoa. As negras, nos presídios e penitenciárias, representam 62%.

Isso quer dizer que 3 em cada 5 mulheres presas são negras. A diferença é grande, entretanto, é maior em Santa Catarina. No estado, 15% das pessoas se reconhecem preta ou parda. Na população carcerária catarinense, esse número sobe para 38%. Ou seja, uma em cada três presas é negra.

A maternidade também é uma das características em comum entre Luísa e a maioria das apenadas. Ela é mãe de três moças e dois rapazes. O que a coloca junto das 37% que possuem três ou mais filhos. No sistema prisional do Brasil, o incomum é ter menos de dois filhos. Mais raro ainda é não ser mãe. Apenas uma em cada quatro presas não possui filhos.

Os filhos de Luísa são de pais diferentes. Ela sempre namorou. Um dos namorados que Luísa teve se chamava Pedro (nome fictício). Ele não é pai de nenhum dos filhos dela. Na verdade, o relacionamento foi um dos mais breves de sua vida, durou oito meses. Ele a agredia.

Toda vez que Pedro batia nela, Luíza abria um boletim de ocorrência. Às vezes, nada acontecia. Outras vezes, o agressor ficava preso por alguns dias. Depois era solto e voltava a procurar a namorada. Chegou a arrombar a porta da frente. Ela começou a sentir que não tinha saída. Pedro repetia que se ela não fosse dele, não seria de mais ninguém.

Mesmo mudando de casa, ele a encontrava. Luísa começou a revidar. Em uma das agressões mais sérias, Pedro a acertou com pedras. Luísa se defendeu com um galho grosso e seco de árvore. Deslocou o cotovelo dele. A briga aconteceu na rua, em plena luz do dia. Achou que depois de tê-lo machucado o suficiente para acabar no hospital, ele iria se afastar. Enganou-se.

Pedro voltou com as ameaças. O sentimento de que não havia saída retornou a assombrar a cabeça de Luísa. Ela não tinha medo de morrer, mas temia pelos filhos. Pensava neles crescendo sem mãe. Essa não podia ser uma opção. Como o Estado não tinha ajudado antes, Luísa descartou recorrer a mais um boletim de ocorrência.

Ela sabia que a solução que tinha encontrado a levaria para a cadeia de novo. Já havia estado lá por tráfico de drogas. Como forma de complementar a renda familiar, Luísa revendia drogas. Foi pega, porque o rapaz para quem vendeu uma pedra de crack foi abordado na rua pela polícia.

Quando perguntaram onde tinha conseguido a droga, ele entregou Luísa, que foi presa em flagrante. Como era ré primária, e o crime pelo qual respondia não era violento nem de grave ameaça, ficou seis meses no presídio.

Três em cada cinco mulheres presas no Brasil respondem a acusações de tráfico de drogas. A proporção é a mesma em Santa Catarina. Depois do tráfico, os outros dois delitos mais populares são roubo e furto, considerados crimes contra o patrimônio.

Isso quer dizer que os crimes que levam as mulheres para a cadeia, em sua maioria, não são os contra a vida, que representa menos de 10% das apenadas. Procurei uma advogada para entender o que esses números revelam sobre a realidade do nosso sistema penal.

Ana Paula Backes, além de advogada, escreveu o seu trabalho de conclusão de curso sobre maternidade no sistema carcerário. Em sua avaliação, os dados demonstram, de certa forma, a incapacidade do sistema de justiça em priorizar a preservação da vida, uma vez que toda a mobilização gira em torno do processamento dos crimes ligados ao patrimônio.

Outro indicador que ajuda a entender a realidade do encarceramento é a taxa de aprisionamento, por levar em consideração o crescimento da população do país. A taxa é calculada a partir do número de pessoas privadas de liberdade para cada 100 mil habitantes.

A taxa de aprisionamento de mulheres no Brasil teve um salto a partir de 2005, quando estava em 13,8. Um ano depois, entrou em vigor a Lei n° 11.343, também conhecida como Lei de Drogas, que substituiu a antiga de 1976. Em 2016, o dado mais recente disponível, a taxa chegou a 40,6. A antropóloga, Juliana Borges, em seu livro “Encarceramento em Massa”, defendeu que a Lei de Drogas teve impacto direto no hiperencarceramento do país.

Ela destaca que a lei faz distinção entre usuário e traficante. “O usuário não pode mais ser preso em flagrante e responde em penas alternativas, além da assinatura de um termo circunstanciado”, escreveu. Para o traficante, a pena ficou mais dura. “Com punição de 5 a 15 anos, os condenados por tráfico não podem beneficiar-se de extinções de penas”, elucidou.

Em uma primeira interpretação, pode parecer que a Lei de Drogas suaviza a pena para usuários. Entretanto, a advogada Ana Paula Backes afirma que não foi isso que aconteceu. A lei trazia a ideia de descriminalização do uso de entorpecentes e, como consequência, o fim do encarceramento de usuários de drogas. Porém, desde a criação da lei, as prisões por tráfico foram responsáveis por grande parte do aumento da população prisional brasileira.

O juiz João Marcos Buch explica que a Lei de Drogas veio com a possibilidade maior de enquadramento da mulher por associação. Ela passou a ser criminalizada secundariamente ao tráfico que o homem — geralmente, seu companheiro — pratica no lar.

Em geral, o homem trafica para sustentar a família. Ele vende na própria casa, o que faz aumentar o fluxo de pessoas e acaba chamando a atenção da polícia, que começa a investigar. A mulher nem sempre sabe da atividade do marido. Mesmo quando sabe, não há muita alternativa, já que ela também se beneficia do dinheiro.

Quando a polícia faz a batida no local, não é raro que o homem não esteja e os policiais encontrem a mulher, que é levada como traficante. Buch provoca uma reflexão sobre a eficiência da lei. “O fato de as mulheres passarem a serem presas não reduziu o índice de crimes envolvendo o tráfico de drogas e muito menos o consumo de drogas no Brasil.”

Ana Paula conta que, após cumprir a pena, grande parte das mulheres estará mais desconectada de sua rede de amigos e de seus familiares. “Elas terão mais chances de abusar de drogas, sofrer de distúrbios mentais, ser estigmatizadas pela sociedade, além de menos acesso à educação e qualificação profissional”, elenca a advogada. Cada um desses elementos aumenta as chances de reincidência.

A segunda vez que Luísa foi julgada, não foi por tráfico. Antes de cometer o crime, ela já sabia que seria presa. Mesmo assim, seguiu com o planejado. Tinha um pensamento na cabeça: “se o estado não a protegia, ela teria que resolver com as próprias mãos”. Mesmo depois de ter cumprido quase metade da pena, Luísa não se arrepende.

De todas as tatuagens que tem, entre nomes de familiares e desenhos que acha bonito, uma se destaca, não apenas pelo tamanho, mas pelo significado. O crânio atravessado por uma adaga, representa o homicídio que cometeu.

Naquele dia, como qualquer outro, Luísa trabalhou. No fim do expediente, antes de sair, pegou duas facas e colocou na bolsa. Foi ao encontro do namorado. Quando deu a primeira facada sentiu que arrancava um pedaço de si mesma. Na segunda facada, apagou. Não tem memória do que aconteceu até a polícia chegar e gritar para ela sair de cima dele.

Os policiais a derrubaram no chão para pôr as algemas. Quando a colocaram de pé de novo, Luísa chutou a cabeça do agressor para se certificar de que estava morto. Assim como Luísa havia deduzido, seus cinco filhos ficaram aos cuidados da avó materna. A filha mais velha e os pais de Luísa vão visitá-la a cada quinze dias.

As filhas mais novas não vão. Luísa explica que é pela idade, prefere aguentar a saudade do que ver as filhas conhecendo aquele lugar. Os filhos não conseguem perdoar o crime e não falam com a mãe.

O crime foi a opção que encontrou para solucionar a ausência do estado. Define-se como uma pessoa calma. Ter aguentado oito meses de agressões, para ela, é prova suficiente de que tem muita paciência. Porém, se algum outro homem tentar bater, ela jura que mata de novo. Contou-me toda a história do crime muito lúcida, não há sofrimento em seu olhar.

Como ainda tem metade da pena para cumprir, não pensa muito na liberdade. Quando a psicóloga volta para avisar que Luísa finalmente pode voltar para a cela. Ela se levanta, agradece por eu ter escutado a sua história e vai saindo devagar da sala, arrastando os chinelos no assoalho.

Luísa volta para a sua cela de uns 12 metros quadrados, onde vive com mais outras 12 presas. O cômodo não possui janelas, apenas uma porta de metal com uma abertura com o tamanho ideal para passar marmitas. Uma das paredes de concreto possui três camas de beliche embutido.

O banheiro é composto pelo chuveiro e — uma novidade — pela privada. Até poucos meses atrás, as necessidades eram feitas num buraco no chão, chamado popularmente de cloaca. As 13 colegas de cela vestem alaranjado. Mas nem todas as presas do presídio usam a mesma cor ou vivem nas mesmas condições.

DURANTE

Rotinas marcadas por ócio e solidão

Maria (nome fictício) acorda, são 7h. Abre os olhos e encara a parede branca. Olha para baixo, vê três colegas de quarto dormindo em colchões estendidos no chão. Maria divide o treliche, feito de concreto embutido na parede, com outras duas presas. Privilégio que conquistou por ser uma das reclusas com mais tempo de “casinha”, forma carinhosa como chama o presídio.

Logo cedo, passa o “regalia” que “paga” a comida, acompanhado de um agente carcerário. Dentro do presídio, foi criado um dialeto próprio, com gírias que pertencem àquele universo. Como se referir à presa e preso que possui trabalho interno de “regalia”, e usar o verbo “pagar” para caracterizar a entrega das marmitas, de cela em cela.

Maria toma o seu café preto de estômago vazio, ritual que repete todos os dias. Não tem o costume de comer pela manhã. Prefere esperar pelo almoço. Junto de Maria, mais cinco mulheres dividem a cela. É mais do que a lotação para o qual o cômodo foi projetado.

Ainda assim, entre as celas do Presídio Regional de Joinville, é uma das que possui o nível de superlotação mais baixo. A ala feminina foi projetada para oferecer cerca de 60 vagas. No dia 22 de outubro de 2019, tinha 93 mulheres. Maria fica no alojamento interno, local para as presas que precisam de cuidados especiais, como grávidas, doentes e idosas. O espaço fica separado dos pavilhões, próximo ao prédio administrativo.

A cela onde vive tem cerca de 12 metros quadrados, é equipada com uma única televisão, comprada e trazida pelos parentes, e um ventilador para cada presa. Os eletrodomésticos possuem dupla função: nos dias de sol, aliviam o calor; nos dias de chuva, ajudam a secar as roupas estendidas em varais improvisados dentro da cela.

Maria veste seu uniforme verde. Cor que indica que ela é uma “regalia da frente”. As outras presas usam roupas na cor alaranjado. Ou seja, por causa do bom comportamento e por não representar uma ameaça, ela pode trabalhar junto com os funcionários do presídio. Maria é uma exceção, o restante das presas não têm contato direto com o setor administrativo.

A comunicação entre presas e funcionários do presídio — seja para pedir por consulta médica, avisar que o chuveiro estragou, ou até mesmo para saber como anda o seu processo — se dá por meio de papel. Os recados são escritos no Memorando, entretanto, as presas preferem chamar de “Demorando”.

Munida de sua caneta, item liberado nos pavilhões do presídio, mas apenas as de tinta azul ou verde, uma presa quando quer se comunicar, precisa pedir um Memorando para uma agente carcerária. As que sabem escrever ajudam as analfabetas na tarefa de preencher a folhinha de papel de tamanho A5, que tem um cabeçalho composto por espaços para o nome e matrícula da presa e setor de destino do pedido, o resto é coberto com linhas, onde elas podem escrever o recado. A resposta também chega por Memorando.

Às 8h30, começa a limpeza no prédio administrativo. Desde o dia 9 de janeiro de 2019, ela segue essa rotina de faxineira. A cada três dias de trabalho, diminui um dia de cárcere. O trabalho lhe agrada, gosta das pessoas do administrativo que a tratam bem. O ofício lhe é familiar. Desde muito nova, já trabalhava como diarista, profissão que manteve até ser presa pela segunda vez.

O expediente de Maria é interrompido, pouco antes do almoço, bem quando ela ia começar a limpeza dos banheiros. Chamaram-na para conversar comigo numa sala. As linhas profundas nas mãos de Maria entregam os longos anos de trabalho braçal, consequência do pouco estudo. Maria frequentou a escola até a terceira série, ou quarto ano, como é chamado hoje.

Os cabelos compridos, que ela mantém amarrados durante a faxina, têm tantos fios brancos quanto negros. Com 54 anos, se senta com as costas curvadas na minha frente. Conta sua história fitando as próprias mãos, estratégia que usa para não precisar me olhar nos olhos. Por quase uma hora, ela me conta como foi condenada na primeira e na segunda vez. Nos dois casos, diz que foi presa injustamente. A primeira por causa das filhas e a segunda por culpa do marido.

Diferente dos homens que podem trabalhar em diferentes locais, como na cozinha e na limpeza externa, faxineira é a única vaga disponível para as mulheres. Questionei o juiz João Marcos Buch sobre a falta de opções.

Para o magistrado, a situação das mulheres no presídio é delicada. Inicialmente construído para receber apenas homens, foi só a partir de 2001 que o Presídio Regional de Joinville inaugurou a ala feminina. Na época, a capacidade era para 40 mulheres.

Buch aponta que a mulher encarcerada precisa ter o ambiente dela. Porém, muito longe do ideal, o advogado revela que “a mulher é tratada como homem dentro do sistema prisional. A prisão não foi feita para ninguém, muito menos para as mulheres. A questão de gênero, no sistema prisional, é uma segunda penalização que sofrem”.

17% das unidades prisionais no Brasil são mistas, e onde a maior parte das mulheres estão. Apenas 7% são presídios e penitenciárias exclusivas para mulheres. O presídio feminino da cidade está em construção. A inauguração estava prevista para o terceiro trimestre de 2019. Entretanto, as obras estão atrasadas.

De 2001 para cá, a ala feminina aumentou, virou dois pavilhões, A e B. Um para cada uma das facções que controlam o presídio, PGC e PCC. Cynthia Maria Pinto da Luz, advogada e presidente do Conselho Carcerário de Joinville, conta que as facções não só têm influência como controle. A advogada considera o presídio Regional de Joinville totalmente faccionado. “As pessoas presas quando entram, independentemente do crime que tenham cometido, são obrigadas a aderir a uma facção, até por uma questão de sobrevivência dentro do sistema.”

Maria é mãe de três mulheres. A mais velha, de 31 anos, estudou, casou e teve filhos. As duas mais novas experimentaram crack e gostaram. Elas usavam em casa, às vezes chamavam os amigos. Como a mãe trabalhava o dia inteiro fora, como diarista, elas não se importaram de não avisá-la.

Um dia, a polícia bateu na casa. Revistaram os cômodos e acharam a filha do meio fumando junto de dois amigos. Os três foram presos, cada um com 10 pedras. Perguntaram quem era o dono da casa, ao que Maria respondeu que era ela mesma. Foi levada junto por tráfico de drogas.

A segunda vez que “caiu”, foi por homicídio. As lembranças do crime são um tanto imprecisas. Maria não conta de forma linear os acontecimentos daquele dia. O marido dela era amigo do namorado da moça que foi assassinada. Maria chegou a conhecê-la, mas não tinham convívio. No dia, o marido pediu que fosse ao encontro dele e do amigo. Diz que não imaginava o que planejavam fazer.

Maria não chegou a ver a moça. Nem sabe se foi o namorado dela ou o seu marido que a matou. Ela afirma que não fazia ideia do que estava acontecendo. Mesmo assim, foi presa por associação. O marido foi condenado também e cumpre pena no mesmo presídio. O amigo fugiu e nunca foi pego.

Maria pode ver o marido a cada 15 dias. Além disso, uma vez por mês, uma das filhas vai até o presídio para visitar a mãe.

33% dos presídios mistos possuem local apropriado para receber visita social. Os com espaço para visita íntima, a parcela é parecida, 34% tem um cômodo para os casais. Ou seja, apenas um a cada três presídios mistos tem como garantir as visitações.

No levantamento feito durante o primeiro semestre de 2016, nas unidades prisionais femininas e mistas, cada presa foi visitada por cerca de 5,9 pessoas. Já nos presídios e penitenciárias masculinas a média de visitantes por preso foi de 7,8.

Perguntei para a advogada Cynthia Maria Pinto da Luz, a presidente do conselho carcerário, o que impede as mulheres de receberem tantas visitas quanto os homens. A advogada explica que é uma consequência da nossa sociedade machista. As mulheres não são facilmente perdoadas pela família e pelo companheiro. Elas, diferentemente dos homens, também não acham que merecem o perdão.

Para entender os impactos do isolamento, eu procurei um profissional da área de psicologia. Quem atendeu aos meus pedidos foi o psicólogo do Centro de Direitos Humanos, Nasser Haidar Barbosa. Ele concorda com Cynthia, explica que o baixo nível de visitação é efeito da cultura misógina, que trata a mulher como um ser inferior ao homem.

Nasser afirma que o fenômeno do encarceramento em mulheres e homens é sentido e vivenciado de maneiras diferentes. “Ainda que do meu ponto de vista, como quem trabalha com direitos humanos, ele seja sempre muito ruim, para as mulheres eu entendo que venha a ser pior”, constata.

O psicólogo conta que o encarceramento deixa marcas na construção do nosso eu e na forma de nos enxergarmos em relação ao mundo. Especialmente para as mulheres, o período na prisão deixa marcas do abandono e da solidão. Por outro lado, as mulheres não costumam abandonar os homens depois de presos.

Não há apenas um motivo para isso. Um exemplo são as mães que não abandonam os filhos. Para Nasser, tem relação com a culpa cristã, que pesa sobre as mulheres, mas não pesa sobre os homens. Ele se refere ao endeusamento da figura materna, como santas capazes de suportar tudo pelos filhos. Mas lembra que nem sempre é possível aguentar. Porém, existe uma pressão social para que as mulheres ajam como se fosse.

Pressão essa que as esposas também sofrem para não abandonar os maridos. Diferentemente dos homens que não são julgados pela troca constante de parcerias, as mulheres são ensinadas a romantizar as relações amorosas. Essa diferença de pensamento entre gêneros tem relação com a misoginia, que pode ser explicada como repulsa à mulher.

“Aqui fora, a mulher é tratada como descartável muitas vezes. Esse ser descartável tem a ver com o uso e abuso do corpo da mulher sem o desejo dela”, contextualiza o psicólogo. A situação de abandono, que causa a solidão, tem a ver com uma reprodução mais dura, intensa e explícita desse tratamento.

Além disso, há as mulheres que se relacionam com membros das facções, que possuem regras rígidas sobre a fidelidade delas. Essas mulheres vão às visitas também por medo de sofrer as consequências. Nasser me trouxe ainda outro ponto, para quem quer fazer a visita é muito difícil. Precisa de fato de muita força de vontade, de muita briga pra continuar. Eu fui ver o quão difícil é.

Descobri que não é qualquer pessoa que pode ir na visita, a prioridade é para pai, mãe, filhos, cônjuges e enteados. No último caso, precisa ter a autorização dos pais biológicos, registrada em cartório. Se nenhum desses familiares vier às visitas, abre a oportunidade para avós, tios, primos, sobrinhos, sogra ou amigos visitarem.

Os visitantes têm registro no presídio. Todos precisam ter a carteirinha, que pode ser solicitada depois da presa ter cumprido, pelo menos, cinco dias no presídio. Os documentos são entregues na portaria a partir das 10h, até às 11h30. Posteriormente, voltam a receber das 15h até às 18h. Os documentos solicitados são:

  • Foto 3x4 (com exceção dos filhos com menos de um ano).
  • Cópia do CPF (com exceção dos visitantes com menos de 18 anos).
  • Cópia do RG (com exceção dos visitantes com menos de 12 anos).
  • Cópia da Certidão de Nascimento (apenas para menores de 12 anos).
  • Cópia da primeira página da Caderneta de Vacinação (apenas para menores de 5 anos).
  • Cópia do comprovante de residência no nome da visita, dos pais da visita ou dos pais da presa.
  • Cópia do contrato de aluguel, ou declaração de residência registrada em cartório (apenas se morar em casa alugada).
  • Cópia da Certidão de Casamento, ou Declaração de União Estável, registrada em cartório e assinada por duas testemunhas.
  • Número de telefone para contato.

Depois de duas semanas, se todas as cópias dos documentos estiverem corretas, a carteirinha pode ser retirada. Todos os dias são distribuídas senhas para visitas, às 7h50 e às 12h50. Para entrar no presídio, as visitas precisam estar vestidas com uma camiseta branca sem gola, calça de moletom cinza e chinelos. Cada presidiária pode receber até duas pessoas por dia.

O Presídio Regional de Joinville possui scanner, uma grande caixa de metal, onde a pessoa entra e fica parada enquanto uma esteira rolante a faz atravessar pelos sensores lentamente.

O scanner livra as visitas de passarem pela revista vexatória. Como é conhecida o tipo de revista em que a pessoa é examinada nua — inclusive ânus e vagina — , nem crianças e bebês são poupados.

Após 30 dias da primeira visita social, a conjugal é liberada. Em casos como o de Maria, em que o marido também cumpre pena, as visitas conjugais são organizadas pela própria administração.

As visitas trazem mantimentos, para complementar a alimentação e ajudar na limpeza e higiene, além de itens de lazer. Cada pessoa pode entrar com 10 itens da lista, sem contar as roupas. Entre os permitidos estão rabo quente pequeno, vassoura, balde e saco de lixo. Para a higiene pessoal podem, por exemplo, seis rolos de papel higiênico, uma escova de dentes, cinco sabonetes, xampu e desodorante só entra se o frasco for transparente.

Entre as comidas liberadas estão dois pães fatiados, mas não pode ser caseiro nem sovado, 300g de queijo, 300g de mortadela ou salame italiano, duas barras de 90g de chocolate, três pacotes de Miojo e um refrigerante, desde que não seja Coca-Cola ou Fanta Uva.

Tudo é tirado da embalagem para vistoria feita pelas profissionais que cuidam da portaria. A filha de Maria é a responsável por comprar e trazer os produtos nas visitas. Nos meses que ela não consegue vir, Maria passa sem.

O presídio até fornece um kit, com sabonete, papel higiênico, xampu, absorventes, sabão em pó, entre outros itens de higiene e limpeza. No entanto, é preciso planejamento para fazer durar. Maria conta que o xampu deixa os cabelos secos e o sabão em pó estraga as roupas. Por isso, evita usar os produtos do kit.

As roupas podem ser lavadas num tanque, que para Maria, parece tirado de uma casa de bonecas, “de tão pequeno que é”. As mulheres se organizam para dividir o tanque e todas conseguirem lavar as roupas. A faxina da cela também é coletiva. Cada dia uma é responsável pela limpeza.

Às 11h, Maria volta para a cela. É o horário de receber a marmita do almoço. O “regalia” passa “pagando” a comida. As presas se reúnem na cela ou no corredor para comer de colher. Maria não gosta da comida que é servida.

O cardápio varia entre ensopado de porco, ovos e peixe, que Maria detesta. Como acompanhamento, arroz, feijão e macarrão. A salada vem em um pacote separado. As marmitas são preparadas na penitenciária industrial, que fica ao lado do presídio. Na cozinha do presídio, a comida preparada pelos presos “regalia” vai para os funcionários.

Maria tem um tempo para descansar antes de voltar ao trabalho. Ela aproveita o intervalo para ficar na cela. Faz bem para Maria não ter que passar o dia inteiro entre dormitório e banho de sol. Outras presas, como as duas que estão grávidas e dividem cela com Maria, ficam no ócio.

Os banhos de sol acontecem ou de manhã, às 8h30, ou à tarde, às 14h30. Como as membros das facções não podem se misturar, para evitar brigas, as presas nunca saem juntas para o pátio. A movimentação é sempre feita pelas agentes carcerárias.

As agentes carcerárias são funcionárias do Departamento de Administração Prisional (Deap), que faz parte da Secretaria de Estado da Administração Prisional e Socioeducativa, que, por sua vez, responde para o governo do estado.

As profissionais entram na função por concurso público ou por processo seletivo, para as vagas temporárias. Helena (nome fictício), está estudando para passar no concurso, mas já trabalha como agente carcerária temporária há um ano e quatro meses. Loira, alta e jovem, Helena tem a voz firme e autoritária.

O contato que Helena tem com as presas é mínimo, a chamam de “senhora”, tratamento dado às funcionárias do presídio. Quer dizer, quase sempre. Às vezes as presas se irritam e acabam se exaltando.

Helena entende que o cárcere é difícil de aguentar, ainda mais na situação da ala feminina do Presídio Regional de Joinville. Na qual o governo não fornece tudo que elas precisam, e onde quase não têm acesso a direitos como educação e trabalho. No entanto, defende que a disciplina precisa ser mantida.

Helena trabalha por plantão, são 24 horas no presídio, para 72 horas de descanso. Os agentes carcerários possuem acomodações, com camas, armários, banheiros e refeitório. Para prevenir assédios de ambos os lados, as agentes mulheres lidam apenas com as presas mulheres.

Entre as funções das agentes estão recolher e entregar os Memorandos, operar o scanner para vistorias, controlar as visitas, manter a ordem nos pavilhões e acompanhar a movimentação dentro e fora do presídio, como o percurso entre a cela e a Unidade Básica de Saúde (UBS).

Desde 2016, o presídio conta com uma Unidade Básica de Saúde e uma equipe formada por dentista, clínico geral, psicólogo, farmacêutico, terapeuta ocupacional e equipe de enfermagem. Os atendimentos acontecem às terças-feiras, intercalando entre os dois pavilhões. Os pedidos são feitos por meio de Memorando.

A UBS é equipada para realizar exames, atendimentos de emergência, pré-natal e acompanhamentos médicos. Oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o atendimento é gratuito, assim como os remédios. As cirurgias e atendimentos com especialistas ocorrem fora da UBS. O presídio dispõem de uma ambulância para o translado.

As presas reclamam da demora no atendimento e da falta de remédios. A enfermeira que coordena a UBS rebate que os casos mais urgentes ganham prioridade, mas que todas as presas recebem atendimento. Em comparação às outras UBSs da cidade, a enfermeira defende que a espera na fila, dentro do presídio, é bem mais curta. Sobre os remédios, ela explica que se não tem no SUS, também não terá na UBS.

No final da tarde, lá pelas 5h30 Maria encerra o expediente. Volta para o dormitório, toma um banho no chuveiro que fica junto do banheiro da cela e espera pela marmita com a janta. Antes de dormir, ainda dá tempo de assistir um pouco de televisão.

Maria não pensa muito no futuro, não tem muitos planos, mas tem muitas incertezas, como a dúvida de continuar com seu marido ou não. Às vezes, pensa que quer ficar com ele, muitas vezes, pensa que não. Com tantas inquietações surgindo em sua cabeça, a certeza mais antiga não se abala por nada. Assim que estiver em liberdade, vai visitar a filha do meio para finalmente conhecer o netinho.

DEPOIS

O mais difícil é serem aceitas de volta à sociedade

Cabelos crespos e negros, alguns fios já brancos, emolduram o rosto de feições delicadas de Bruna (nome fictício).

A fala pausada e baixinha, de um português correto, combina com o porte miúdo, os gestos contidos e o semblante sereno. Os olhos fundos são os únicos a destoar e servem de sinal para o que esta mulher de quase 40 anos já passou.

Hoje, Bruna está no primeiro ano do ensino superior, ninguém da turma sabe onde ela esteve em boa parte dos dias de 2012 e voltou em 2013, para sair apenas em 2016. Não sabem porque ela não contou, prefere manter segredo. A escolha é por precaução, tem medo de sofrer com um possível preconceito dos colegas.

No trabalho, o medo do preconceito se soma ao de ser demitida. Lá, também ninguém sabe. Mesmo com a decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) de que exigir certidão de antecedentes criminais dos candidatos à vaga de emprego caracteriza lesão moral, as presas sofrem com o estigma.

A advogada Ana Paula Backes explica que só é permitido a exigência da apresentação da certidão em casos previstos por lei, como em razão da natureza do ofício ou do grau especial de confiança. Ela cita como exemplos cuidadores de menores, idosos e pessoas com deficiência, motoristas rodoviários de cargas e trabalhadores que atuam com armas.

Cynthia Maria Pinto da Luz, advogada e presidente do Conselho Carcerário de Joinville, conta que é quase impossível conseguir um emprego. “Poucas pessoas conseguem se recolocar no mercado de trabalho. Geralmente são as que contam com a boa vontade de algum empresário, ou de algum parente, que oferece esse emprego.”

Assim como 62% das presidiárias no Brasil, Bruna foi condenada por tráfico de drogas. Foi presa em flagrante, junto com o marido, no próprio lar. Os dois filhos, que na época tinham 9 e 7 anos, assistiram a polícia levar a mãe e o padrasto algemados. Foram encontradas 20 pedras de crack na casa da família.

Bruna conta que nunca tinha se envolvido com drogas. Na verdade, as drogas foram um dos motivos para ter se separado do primeiro marido e pai de seus dois filhos. O ex-companheiro era usuário e vendia para sustentar o vício. Naquele tempo, ela temia que a relação do pai de seus filhos com as drogas pudesse trazer problemas. Anos mais tarde, o medo se concretizou.

Num dia de 2012, recebeu uma chamada do pai das crianças. Ele ligava do presídio com um celular ilegal. Pediu para falar com o filho mais velho e, depois, com o atual marido. Bruna achou estranho, mas ignorou o pressentimento e passou a ligação. Ela não ficou sabendo na hora, mas o ex queria a ajuda do atual com o pagamento de uma dívida.

Os dois combinaram que o marido de Bruna receberia a droga e guardaria em casa até que o responsável pela venda aparecesse para buscar. Era para ser coisa de um dia. Recebeu a encomenda na quinta-feira. A sexta-feira chegou e terminou, sem sinal do suposto vendedor. No sábado, a polícia bateu na porta de casa.

Sorte de Bruna que a cunhada morava no andar de baixo do sobrado e acolheu os sobrinhos e a cadela de estimação da família. Porque, quando Bruna cruzou a porta de casa, só voltou depois de seis meses. Seu marido também foi preso.

O casal contratou um advogado que cuidou do caso. Quando saíram, as orientações que receberam foram de conseguirem empregos e tentarem levar uma vida normal. O advogado avisaria quando fosse preciso ir até o Fórum para assinar seus nomes, forma de comprovar que os apenados continuam morando na cidade, um dos possíveis requisitos para o cumprimento em liberdade condicional.

O marido voltou para o emprego de antes, e Bruna conseguiu uma vaga de meio período como diarista. O horário reduzido permitia que ela passasse as tardes com a mãe já idosa que não tinha mais condições de limpar e cuidar da casa sozinha. Os dois seguiram o conselho do advogado e voltaram a levar uma vida normal. Foram seis meses de calmaria.

Até que uma viatura da polícia estacionou na frente da casa da mãe de Bruna. A aposentada recebeu os policiais no portão e passou mal ao ouvir que levariam a filha presa novamente. A condenação dela havia sido recorrida. Bruna voltou para o Presídio Regional de Joinville. Dessa vez, para ficar quase três anos.

A sensação de tempo perdido, para Bruna, foi uma das piores partes do cotidiano no presídio. Muitas sofriam com o tédio. Em Joinville, a única atividade para redução de pena, além dos trabalhos internos de faxineira, é o programa “Despertar pela Leitura”.

O presídio conta com uma professora formada em Letras, durante quatro dias na semana, que coordena o programa. As presidiárias podem pegar um livro na biblioteca por mês. São 20 dias para dedicar a leitura e mais dez dias para produzir uma resenha.

A biblioteca possui no acervo cerca de 1.300 livros. Só em setembro, mais de 600 livros foram emprestados para o programa. As resenhas são encaminhadas para a Univille, Universidade da Região de Joinville, onde são corrigidas por professores e acadêmicos do curso de Letras. A escrita correta, dentro das regras gramaticais, não é cobrada, mas sim, se ficar explícito que a presa leu o livro, assim ela diminui quatro dias de pena.

1% das mulheres estão envolvidas em atividades educacionais para remissão de pena nas unidades prisionais catarinenses. Abaixo da média nacional, de 4%. Porém, Santa Catarina não está tão distante da maioria dos estados.

Rio Grande do Sul e Distrito Federal também têm 1%. Já outros 15 estados sequer alcançam 1%. Na verdade, só dois estados se destacam e puxam a média nacional para cima, Piauí, com 21%, e Tocantins, com 30%. Outra forma de reduzir a pena é pelo trabalho.

9.377 presas trabalham no Brasil, só em Santa Catarina são 241. Isso representa 24% da população carcerária feminina nacional e 16% da catarinense. Seguindo a tendência nacional nos presídios mistos, dos quais 83% não possuem oficina de trabalho, a ala feminina do Presídio Regional de Joinville não tem local específico de trabalho.

As presidiárias que conseguem um emprego em troca de remissão de pena trabalham como faxineiras nas dependências do Presídio Regional de Joinville. Bruna não sossegou até conseguir um trabalho. Ela virou a exceção no meio de ociosas.

Logo, conseguiu uma vaga na cozinha. Atualmente, as presas não trabalham mais na cozinha do Presídio Regional de Joinville, apenas os homens. Assim como Bruna, 87% das presas brasileiras que trabalham possuem funções internas nos presídios e penitenciárias, segundo o Infopen, Sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro, realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

As vagas internas são todas atividades de trabalho realizadas dentro do ambiente da unidade, como resultado de parcerias com empresas, ONG’s, poder público e outros parceiros. Também incluem as atividades de apoio à administração do próprio estabelecimento penal.

Para o Juiz, João Marcos Buch, prisão nenhuma ressocializa. “O que a gente tem que trabalhar é numa tentativa de redução de danos”, afirma. Na opinião de Buch, por melhor que seja a prisão — por exemplo, com trabalho e educação para todas — , mesmo assim, deveria ser usada como última alternativa, e não a primeira como o estado brasileiro faz.

Na situação em que as mulheres do Presídio Regional de Joinville vivem, em que o acesso ao trabalho e à educação é para poucas, nem sempre há artigos de higiene pessoal e remédios para todas, o juiz enfatiza que as presidiárias ficam num estado de desespero.

Cynthia conta que quando as presas pensam no futuro é com desesperança e medo. Elas não acham que exista outra opção que permita sonhar com uma vida diferente. De acordo com o psicólogo Nasser Haidar Barbosa, pessoas em situação de privação de direito e de dignidade negada, como acontece no sistema prisional, desenvolvem doenças como depressão, ansiedade e pânico. Quando elas saem, é comum sentirem estresse pós traumático pelo período em que viveram com pressão constante, de ameaça, medo e solidão.

Para Buch, o cenário ideal seria, antes do direito penal chegar, ter o direito social, direito econômico, bem-estar e as políticas públicas inclusivas. Se chegar ao direito penal, aplicar as alternativas penais, como prestação de serviços à comunidade. Ou seja, medidas que evitam o cárcere.

Cynthia reforça que é uma situação de segurança pública. “Quando a pessoa vê que a sua própria vida não tem nenhum valor dentro do sistema prisional, evidentemente que quando retornar ela também não dará valor à vida dos outros”, exemplifica. A advogada constata que não se trata de sentir pena, mas sim, fazer com que se cumpra o que diz a lei de execução penal para que as pessoas cumpram a pena com dignidade.

2% representa a parcela de mulheres cursando o ensino superior nos presídios de Santa Catarina. No Brasil, não chega a 1%. Bruna queria cursar o ensino superior, ela chegou a prestar o vestibular para o IFSC, dentro do presídio. Contudo, não conseguiu saber se havia passado. “Não teve como”, deu como resposta quando perguntei por que ela não tinha visto o resultado.

Persistente que é, Bruna insistiu nos estudos. Se não poderia fazer a graduação, que, pelo menos, a liberassem para o curso profissionalizante. Fez a solicitação para o juiz e aguardou. A resposta veio quando o curso de secretariado já havia começado há semanas. Não podia deixar a chance passar. Foi mesmo assim. Resolveu o atraso com aulas extras de reforço.

Um dia na semana, ela tinha autorização para sair do presídio, pegar um ônibus em direção ao centro e ir estudar. Porém, tinha hora certa para voltar. Ninguém da turma sabia, só o professor. Não ter celular era visto com certa desconfiança pelos colegas, ao que Bruna driblava com a falsa explicação de que, para ter um momento de paz, preferia não levar o aparelho para a sala. Os trabalhos que exigiam o uso de computador eram feitos apenas nos laboratórios do curso.

Mesmo com o certificado de secretariado e a experiência de já ter trabalhado com faxina e produção, Bruna não arranjou um emprego logo que conseguiu a liberdade. Um pouco antes de sair da prisão, a mãe dela começou a entregar currículos pela filha. “Eles não davam emprego, diziam que não pegavam ex-detenta”, conta.

O trabalho veio com uma carta de recomendação do juiz João Marcos Buch. Ela conseguiu uma vaga em uma empresa com histórico de empregar egressos do presídio. Foi a oportunidade que precisava para colocar a vida nos eixos e voltar a estudar. Bruna prestou o vestibular do IFSC de novo.

Não passou. Como o curso tinha as aulas à noite, as vagas estavam mais concorridas. Bruna não desistiu. Um ano depois, abriu vestibular de novo para o curso que ela queria. Dessa vez, com turmas vespertinas. Passou, finalmente iria realizar o sonho de conquistar o diploma de ensino superior.

Já faz alguns anos que Bruna está em liberdade. Aquele emprego que conseguiu com a carta de recomendação do juiz, ela já trocou por outro melhor. Nos planos, com os olhos voltados para o futuro, estão a formatura e uma vida dentro da legalidade. O passado não há como apagar, e ela nem quer esquecer. Mas certas histórias ficam melhor em segredo.

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