“La Bella polenta”

Paulo Rodrigues
Agência Comunitária de Notícias
6 min readSep 21, 2021

A história e a cultura por trás do tradicional prato da Nonna

O caldeirão de ferro fundido se assenta no fogão a lenha já cheio de água salgada, enquanto isso o cheiro da madeira queimando passeia pela cozinha avisando: comida boa vem por aí! Pouco a pouco a farinha de milho é adicionada à mistura enquanto a mão forte da Nonna mexe a colher de pau sem parar. Com o tempo, o que era um caldo amarelo sem brilho vai ganhando a forma pastosa que a tradição pede. A fumaça, já sem graça pela competição, se esconde e deixa o cheiro da massa se espalhar por toda a casa, alegrando a “piazada”. Fubá, sal, água, paciência e muito, muito braço mesmo. Essa é a receita da tradicional polenta.

A um primeiro olhar, a pasta feita de farinha de milho pode não parecer nada demais, mas, além do sabor, muita história e tradição compõem o prato. Sua origem se estende até o império romano, como conta a professora de gastronomia e chef Sandra Maria Borçoi: “ A papa ‘pullentum’ era o prato mais consumido pelos soldados e era apreciado no norte da Itália, região com clima mais frio”.

Entretanto, apesar das origens do prato estarem na Itália, seu principal ingrediente, nas receitas atuais, é a farinha de milho, planta naturalmente americana e que faz parte da produção agrícola indígena. A explicação por trás disso é o período das Grandes Navegações do século XV : “A polenta, originalmente, era feita à base de farinha de aveia, trigo sarraceno e outros cereais. O milho só chegou na Europa depois do século XV, apresentado pelos espanhóis aos italianos. A planta se adaptou melhor no norte italiano, onde a base da alimentação era constituída pela papa de cereais. A partir da substituição pela farinha de milho, o prato passou a ser reproduzido dessa maneira”, conta Sandra.

Mas a imagem de prato saboroso e tradicional ainda iria demorar para surgir no imaginário popular. No início, a polenta era um prato necessário para a subsistência de uma população carente. A professora, jornalista e especialista em cultura italiana Wânia Beloni aponta quais classes tinham como costume o consumo da preparação: “Considerado um prato pobre, a polenta representava um alimento de base na alimentação dos italianos da região norte do país. Muitos foram vítimas da pelagra [doença rara causada pela deficiência de vitamina B3], pois só comiam polenta. No entanto, foi esse prato que os salvou da carência alimentar”.

Fluxos migratórios e a polenta

Como aponta a antropóloga Júlia Dalla Costa em sua pesquisa de conclusão de curso pela Universidade de Brasília, no período entre 1870 e 1970, cerca de 26 milhões de italianos deixaram sua terra natal procurando por melhores condições de vida. Desses, estima-se que um milhão e meio de pessoas tenham vindo para o Brasil. Tais imigrantes, na sua maioria, eram originários da região do Vêneto, a terra de origem da polenta.

As colônias se formaram principalmente no interior dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Com o tempo e o crescimento populacional, os descendentes desses imigrantes continuaram o fluxo migratório. Colonizando outras regiões menos ocupadas e com terras mais baratas do país, essas populações se encaminharam para os estados do Norte, Centro-Oeste e também para o interior do Paraná.

Nesse contexto de mudanças, a polenta vai sendo ressignificada e outros modos de consumo, além da simples subsistência, ganham espaço. A professora Wânia Beloni fala que as interações com o prato, desenvolvidas principalmente na região Sul, acabam tornando nossa polenta algo completamente diferente do que se praticava na Itália: “A polenta preparada aqui no Brasil é muito diferente da italiana. Aqui, além de fazermos polenta mole com molho de frango ou carne moída, é um hábito ainda forte na casa de muitos ítalo descendentes comerem a polenta brustolada [tostada na chapa do fogão a lenha] com queijo, salame, leite, etc. Ainda hoje muitos consomem o prato no café da manhã, um hábito entre os imigrantes, mas que não se vê hoje na Itália”, comenta Wânia.

O jeitinho brasileiro e a resistência cultural

Com tantos anos separando os imigrantes de sua terra natal, é natural que mudanças substanciais na forma de se fazer a polenta ocorressem. Wânia Beloni aponta que , mesmo com adaptações, o prato se tornou, para essa população, um símbolo de sua força, tradição e também de uma refeição saborosa, o que ela chama de comida de herança. “A polenta, sobretudo no sul do Brasil, é um símbolo não apenas da gastronomia italiana, mas da italianidade, da afetividade e da nostalgia de muitos descendentes em relação à própria origem, à cultura trazida pelos ancestrais”, esclarece Wânia.

Esses hábitos gastronômicos servem de liga para conectar e transmitir a cultura entre as gerações. Sandra Maria Borçoi esclarece que a polenta estava relacionada com os rituais do dia a dia desse povo: “Quando eu era criança, nos anos 90, vivi um universo italiano muito forte com minha avó e bisavó, onde a polenta não podia faltar. Quando meus tios-avôs se encontravam para saborear brodo nos memoráveis ‘serão’, sempre cantávamos a música italiana da Bella Polenta”.

Algo que os dois povos, brasileiros e italianos, possuem em comum é a habilidade de fazer uma boa festa. Naturalmente, por todo o país surgiram eventos para celebrar o prato: “Além de fazer parte da alimentação de muitos taliani [membros da comunidade que se dedica a preservar a cultura dos imigrantes italianos no Brasil], há muitas festas típicas em diversos estados brasileiros. Temos Festa da Polenta em: Santa Tereza do Oeste/PR, Guarapuava/PR, Marema/SC, Venda Nova do Imigrante/ES, Festa da Polenta de Santa Olímpia em Piracicaba/SP, Polentaço em Monte Belo do Sul/RS, Magnar di Polenta em Flores da Cunha/RS, Sagra della Polenta em Urussanga/SC”, conta Wânia Beloni.

Essa celebração em torno dos tempos de luta se mostra como a maneira que a população imigrante e seus descendentes acharam para valorizar seu esforço e preservar as características que tornavam eles um povo, tendo em vista a saída de sua terra natal.

O jovem no Brasil leva a polenta a sério?

Mas e com o advento da tecnologia e a presença de pratos prontos ao toque do celular, os jovens ainda se interessam pela comida de herança? Para a chef Sandra, esse bem querer com a polenta está aos poucos desaparecendo: “Geralmente a importância do preparo da polenta entre os jovens é o da lembrança de infância, comida simples de vó, mas acredito que essa cultura esteja se perdendo pelo ritmo de vida, pelos hábitos adquiridos. Quando falo sobre esse movimento histórico, percebo que a grande maioria dos alunos, independente de descendência, demonstra surpresa”.

Já Wânia aponta a existência de retiros onde a italianidade pode crescer e resistir à modernidade: “Para mim, o verdadeiro preparo da polenta de imigração italiana é aquela feita na panela de ferro, no fogão a lenha… Feita com muita calma. Meus alunos de italiano preparam muito bem esse prato. Tenho uma turma de conversação há mais de dez anos e nos invernos, anteriores a pandemia, sempre preparamos a polenta desse modo” Não sabemos o futuro da relação entre a polenta e os brasileiros. Mas estando ou não a caminho do ostracismo, já são mais de 150 anos de um relacionamento muito saboroso e que deixará boas memórias para a “piazada”.

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