Na nossa estante

Gabi Bertolini
Agência Comunitária de Notícias
7 min readJun 21, 2021

Luz, celular posicionado, cronômetro regulado: AÇÃO!

Dez soldadinhos saem para jantar. A fome os move, um deles se engasgou. Então só restaram nove.

Eu podia senti-lo, ele estava logo atrás de mim. E se não fosse rápido o suficiente acabaria como os outros que vieram antes de mim. Os meus pulmões gritavam desesperadamente por uma pausa, mas não seria possível, não quando sabia que minha vida dependia disso. O vento balança as árvores agressivamente, como se dissessem Corra mais rápido.

No fim nunca saberei ao certo como isso terminou, ele conseguiu sobreviver ou acabou como os outros? Essa pequena narrativa foi inspirada em um dos famosos vídeos compartilhados no Tik Tok. A história de fato não é minha, ela, na verdade, existe, mas pertence a outra autora. E você pode descobrir se ele realmente sobreviveu, basta procurar pelo livro mundialmente conhecido como E não sobrou nenhum da famosa escritora Agatha Christie.

Quando foi que imaginamos que, para ter acesso a um livro, você não precisaria ir mais às bibliotecas ou livrarias, e que tudo o que você precisa ter era um celular e acesso à internet? Os tempos mudaram e a forma como consumimos diferentes conteúdos também. Com o começo da pandemia e do isolamento social em razão do novo coronavírus, atividades como a leitura passaram a fazer cada vez mais parte do cotidiano dos jovens.

E nesse meio tempo, um aplicativo em específico começou a ganhar espaço. Conhecido mundialmente como Tik Tok, o app chegou aos 1,23 bilhões de usuários ativos na rede social e já é o terceiro aplicativo mais popular do mundo. Criado em 2016 pela multinacional chinesa ByteDance com o nome de Douyin desde que ganhou sua versão internacional cresceu numa velocidade impressionante.

No Brasil, a rede social já soma um número bastante significativo de usuários: segundo levantamento realizado pela GlobalWebIndex, já são cerca de 7 milhões de brasileiros cadastrados na rede, compartilhando, curtindo e gravando conteúdos em vídeo diariamente.

Assim como a maioria das redes sociais, o app é “dividido” em nichos. Um deles é conhecido como booktok, criadores de conteúdos que começaram a compartilhar sugestões de livros e resenhas literárias no aplicativo.

Bruna Angel, de 18 anos, é uma “booktoker”. Ela começou a produzir conteúdos literários em abril do ano passado e, apesar da timidez, encontrou uma maneira de produzir conteúdo sem mostrar o rosto. “Comecei a produzir no tiktok conteúdos literários por volta de abril de 2020, por conta da quarentena, e sempre tive muita vontade de fazer algo sobre livros já que é algo que é uma parte essencial da minha vida.”

Mas nem sempre é fácil criar esses conteúdos, os bloqueios criativos e as duras críticas que faz a si mesma costumam afastar Bruna por um longo tempo das mídias sociais. “ Quando acaba acontecendo um comentário ou outro, acabo parando de postar as coisas e opto por dar um tempo das mídias sociais para poder lidar com aquilo sozinha. Sei que não é o melhor jeito de lidar, mas é o que funciona pra mim.”

Já Thaiana Jakubiu revela um método eficaz para afastar as críticas: toda vez que vai falar sobre algum livro considerado “polêmico” entre os leitores, ela busca pesquisar muito e escutar diversas opiniões para só depois produzir o conteúdo relacionado ao livro. “Eu sempre pesquiso muito sobre o livro antes de fazer uma resenha ou um vídeo sobre, para tentar não ter nenhum problema com ninguém e ter os meus pontos de vista.”

INFLUÊNCIA

Para a maioria das pessoas os livros têm sido uma forma de escape da realidade durante a pandemia, mas para outros acabou se tornando mais difícil de manter esse hábito. É aí que os influenciadores entram em ação, uma trend viralizou no aplicativo: você pega o enredo do livro e conta como se aquela fosse sua história e só no final do vídeo é revelado o nome do livro. De início pode parecer bobeira, mas o feito acaba por criar identificação entre os leitores, e até mesmo com aqueles que ainda não têm o hábito da leitura, levando muitas pessoas a lerem e até mesmo a comprarem o livro apenas porque assistiram o vídeo na plataforma.

Thaiana conta que quando produz um conteúdo sobre determinado livro é porque realmente gostou do enredo e quer que as pessoas conheçam a história também. Ela procura produzir conteúdos diferentes para gerar curiosidade na pessoa que está assistindo. E funciona? A resposta é sim! Thaiana recebe milhares de mensagens e comentários em seus vídeos de pessoas agradecendo pelos conteúdos, e foi graças a eles que voltaram ou começaram a ler. “Eu acho incrível poder ajudar outras pessoas, pois existem tantos livros maravilhosos hoje em dia e é sempre muito bom incentivar a leitura. Inclusive há amigos e familiares meus, que não gostavam de ler, e, de tanto eu falar, começaram. Já vieram algumas pessoas me agradecer por incentivar a leitura e eu fico sempre muito grata”.

O mesmo acontece com Bruna. Ela relata que até mesmo seus familiares retomaram as antigas leituras por conta dos seus vídeos. “Me sinto útil para algo e sinto que tô influenciando as pessoas a fazerem e terem um hábito essencial, pois conhecimento é algo que ninguém te tira e cada livro que você lê traz um aprendizado único.”

Entre páginas e videos, personagens e vida real, os personagens “queridinhos” do booktok ganham vida através dos “POV’s”, que quer dizer point of view (ponto de vista), tornando a experiência da leitura ainda mais prazerosa e instigante. Antes, as editoras e escritores se esforçaram para divulgar e vender histórias, agora os booktokers o fazem com maestria e simplicidade.

Ellen Picussa é estudante de jornalismo. Ler e contar histórias fazem parte da sua identidade não só profissional como pessoal. A estudante consome as produções da rede e afirma que suas leituras foram influenciadas pela comunidade do booktok, porque, para ela, é exatamente assim que se sente “Você comenta os vídeos como se você fosse uma velha amiga dessa pessoa que o postou, ela responde numa boa, os outros espectadores vão lá conversar com você e trocar opinião, indicar livros. E é uma coisa muito legal, porque é muito interativo e faz você amar ainda mais ser parte desse universo de leitores”. Um lugar de acolhimento para os amantes de livros, quase uma nova versão da Grande Família, onde o Seu Lineu são os clássicos da literatura, Dona Nenê os romances apaixonantes e o Augustinho aquele livro que amamos mas no fundinho sentimos vergonha de confessar.

Ellen conta ainda que a experiência da leitura se renovou. Através do booktok pode reviver suas histórias preferidas e se sentir parte do universo onde o enredo se passa. “É como se você saísse do mundo do mundo físico e você viajasse de novo para dentro do livro só que dessa vez de uma forma diferente, eu acho que é uma experiência maravilhosa”, finaliza.

Os livros nos permitem viver novas experiências e contar novas histórias, já fui Alice no país das Maravilhas, já fui filha de Hades, Zeus, e Poseidon. Também já fui a Hogwarts, chorei pela morte do Snape, aprendi a reconhecer Aslan no meu mundo. E quando quiser reviver essas histórias, basta viajar até a nossa “estante” e elas estarão lá, esperando por mim.

LIVRO NO BRASIL NÃO É COISA SÓ DE RICO

“Um país se faz com homens e livros”, disse Monteiro Lobato uma vez. Grandes escritores com grandes reflexões, porém, por mais que a leitura tenha se tornado mais acessível por conta da internet, manter o hábito de comprar livros tem se tornado difícil.

“Naquela manhã luminosa de novembro de 1807, espalhadas pelo cais do porto de Lisboa ficaram centenas de bagagens, esquecidas no tumulto da partida. Entre elas, estavam os caixotes com a prataria das igrejas e os livros da Biblioteca Real”. É assim que o jornalista e escritor Laurentino Gomes descreve, no livro “1808”, o início da viagem do príncipe-regente Dom João e da família real portuguesa ao Brasil. Neste pequeno ato é perceptível o descaso que acontece em relação aos livros ao longo da história do país. Os livros ficaram esquecidos naquele porto porque não eram considerados prioridade por aqueles que vieram pra cá.

O caso ganha ainda mais significado nos dias de hoje, quando uma reforma tributária proposta pelo governo prevê o fim da isenção de impostos para o mercado livreiro, medida que existe desde 1946 e que foi reforçada em 2004. Com a mudança, os livros devem sofrer uma taxação de 12%.

Além de causar protestos de representantes do setor e do público, as falas do Ministro Paulo Guedes causaram grande revolta nos produtores de conteúdos literários, e alguns deles chegaram a usar da sua influência para chamar a atenção para o que está acontecendo e divulgar baixos assinados contra a taxação do livro.

Comprar livros no Brasil hoje é caro. E nós sabemos que o mercado do livro não é nenhuma indústria milionária, e que se os senhores acham que esse mercado vai trazer muitos recursos para os cofres públicos, os senhores estão enganados. Sim, é uma indústria com potencial enorme, mas os senhores esqueceram que para isso é preciso incentivar a leitura e o consumo de livros.

E como dizia Paulo Freire “A educação muda as pessoas, e as pessoas transformam o mundo”, queremos mudar o mundo, podemos mudá-lo na verdade, mas precisamos da educação e da leitura, não de mais exclusões e desigualdades. Porque, caros políticos, a leitura é rica e não somente para ricos.

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