Novo coronavírus pode atrasar fila de espera para transplantes renais

Nefrologistas acreditam que a oferta de órgãos será muito menor por conta da Covid-19

Shara Karoliny
Agência Comunitária de Notícias
8 min readMar 31, 2020

--

Em meio à pandemia, o tratamento de doenças crônicas é diretamente afetado. Os cuidados, já bastante delicados, precisam ser ampliados. Um cenário que não entra na estatística dos casos de coronavírus. Estima-se que, no Brasil, mais de dez milhões de pessoas tenham doença renal crônica. Dessas, 90 mil fazem hemodiálise. Esse número cresceu mais de 100% nos últimos 10 anos, de acordo com os dados da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN). Eles ainda apontam que, um a cada cinco homens e uma a cada quatro mulheres com idade entre 65 e 74 anos são afetados. A doença renal atinge 10% da população mundial, de todas as idades, mas principalmente idosos.

As modificações provocadas pelo contexto atual influenciam na condução dos procedimentos de tratamento. A população acometida de doença renal crônica faz parte do grupo de alto risco do novo coronavírus, e por isso precisam de cuidados em dobro, como explica o nefrologista Carlos Koga, especialista em doença renal. “Vários fatores influenciam o paciente renal crônico a ter uma baixa imunidade e ter maior risco em ter complicações com o coronavírus. A piora da função renal gera o acúmulo de toxinas, que levam ao comprometimento da imunidade, então todos os fatores associados à comorbidade, hipertensão, diabetes e pessoas mais idosas acabam tendo um acúmulo de toxinas que favorecem uma complicação muito maior.”

Existem quatro tipos de tratamentos para pessoas com doença renal crônica. Um deles é por meio de remédios, modificações na dieta e no estilo de vida, o que serve como tentativa de não piorar a função renal. A diálise peritoneal, também é uma forma de tratamento, é conhecida como “auto-diálise”, pois pode ser realizada por si, até mesmo em casa. Essa técnica utiliza a membrana peritoneal para fazer a filtragem do sangue, através de um cateter que é introduzido na parte inferior do adomem. Outro tipo de tratamento é a hemodiálise, procedimento que limpa e filtra o sangue, ou seja, faz o trabalho dos rins, através de uma máquina. Por fim, existe o transplante renal em que, por meio de uma cirurgia, o paciente recebe um rim de um doador.

Máquina onde é feita a hemodiálise. Foto: Fundação pró-rim

Os pacientes que fazem hemodiálise precisam sair de casa quase todos os dias para realizar o tratamento. As sessões são geralmente em uma sala compartilhada com vários outros pacientes. Com a necessidade de afastamento das pessoas, por conta do novo vírus, os profissionais precisam procurar meios para lidar com a essa realidade.

De acordo com a nefrologista Rubia Boaretto, especialista em transplante renal, com as condições dos laboratórios de diálise no Brasil, a separação dos pacientes é impossível. “Infelizmente não há como colocar cada paciente em uma sala separada, não tem condições de estrutura para isso. Não existem clínicas que consigam isolar todos os pacientes, algumas possuem leitos para manter alguns sozinhos, mas isso não é em todo lugar”.

Foto de Elizabeth durante a hemodiálise

Elizabeth Machado, conhecida como Bel, tem 38 anos e mora em Salvador. Bel tem falência renal e faz hemodiálise há três anos. Ela conta que, com a chegada do coronavírus, sua rotina está mudando quase todo dia. Os profissionais da clínica onde faz o tratamento estão sempre buscando seguir as recomendações para proteger os pacientes, mas, mesmo assim, está bem preocupada. “Eu me preocupo, porque infelizmente tô no grupo de risco, mas estou me cuidando, estou fazendo minha parte, lavando as mãos com mais frequência, meu sapato que veio da rua deixo lá fora, sempre busco melhorar todos esses cuidados, mas a gente teme, sim, porque esse vírus não é brincadeira”.

Como a imunidade de renais crônicos é baixa, os médicos de Bel alteraram toda sua alimentação, e ainda pediram para que evite o uso de anéis, relógios ou qualquer outro tipo de adereço. “Todos esses cuidados são necessários, minha imunidade não pode baixar, e eu tenho fé em Deus que vai ficar tudo bem, e eu sei que vou passar por esse período bem se seguir todos os protocolos”.

Novas recomendações

Diante desse cenário, a SBN publicou algumas diretrizes para as clínicas. Além do uso de máscaras, recomendam o distanciamento de aproximadamente 1,8 m² um do outro. A orientação para pacientes com sintomas de Covid-19 é que também façam a terapia com o uso de máscaras e, sempre que possível, no último turno, para evitar o contato com outras pessoas. “Essa é uma população com alto risco de contaminação, as recomendações que a gente faz para todos também é feita para eles, como a lavagem das mãos e manter a distância um do outro, isso para os pacientes e também para os profissionais. O que está mudando no momento é o uso obrigatório de máscaras cirúrgicas durante a terapia dialítica”, completa a neurologista.

Além dos tratamentos, a maioria dos pacientes está na fila de espera para o transplante renal. Porém, com o novo cenário as cirurgias foram comprometidas. O Ministério da Saúde recomenda que qualquer tipo de cirurgia eletiva (procedimento cirúrgico que pode aguardar ocasião mais propícia) seja adiada. Logo, o processo para a realização de transplante acabou ficando mais complexo, por conta de todos os cuidados.

A Associação Brasileira de Transplante de Órgãos divulgou algumas medidas a serem tomadas pelos profissionais da saúde em relação aos transplantes diante dessa situação:

Recomendações da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos

Os riscos ampliados do transplante

Segundo as recomendações da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), neste período de transmissão comunitária da Covid-19, as cirurgias de transplantes devem ser consideradas suspensas, exceto em casos de urgência ou se o paciente estiver priorizado para transplante e não tem outra opção de terapia renal a ser feita.

Todos os cuidados para o procedimento estão ainda maiores por conta dos fatores que envolvem esse processo. Como a própria recepção de um novo órgão, após a cirurgia, o receptor precisa de imunossupressão, o que deixa a imunidade ainda mais baixa e pode acabar prejudicando sua sobrevida.

Há possibilidade de que o tempo em fila de espera para o transplante aumente. “A doação no Brasil está muito escassa porque a nossa oferta de órgãos já é muito pequena e eu acredito que com tudo isso vai diminuir mais ainda, porque nós vamos ter uma oferta menor e uma seleção maior desses doadores, no caso de doadores falecidos. Já no caso dos doadores vivos, a tendência é suspender e esperar passar esse processo de infecção para poder transplantar, já que se trata de uma cirurgia eletiva”, aponta a nefrologista.

Pessoas suspeitas ou já confirmadas para infecções por coronavírus vão ser avaliadas de acordo com cada centro transplantador. Então, se o receptor estiver com o vírus, o profissional vai avaliar sua situação e a necessidade para então realizar a cirurgia. Com o risco de o vírus se disseminar ainda mais, os profissionais acreditam que, provavelmente, vai ocorrer um menor número de transplantes, principalmente com doadores vivos. Até o momento, as cirurgias só estão sendo realizadas em casos de falta de acesso vascular para hemodiálise.

Com os doadores falecidos, fica a critério do centro transplantador, de acordo com a necessidade, mas a tendência também é a redução, como diz Koga. “Acredito que isso vai ter um impacto na fila de transplante. Agora não conseguimos dimensionar o tamanho desse impacto, mas provavelmente pode haver um aumento no tempo de espera”.

A fila de espera por um transplante no Brasil é de mais de 45 mil pessoas, de acordo com os dados da Associação Brasileira de Transplante de órgãos. À espera de um rim, são mais de 25 mil pessoas.

À espera de um novo órgão

Foto de Felix Ferreira durante a hemodiálise

Félix Ferreira, de 61 anos, tem doença crônica renal e faz hemodiálise há quatro anos. Desde que descobriu a doença, espera por um rim. Depois de muito tempo acreditando estar na fila, descobriu que seu nome ainda não estava na lista do transplante. Apenas no começo de 2019, após três anos de tratamento, Félix apareceu na lista. “Eu sempre perguntava se estava na fila, ou qual era minha colocação, mas sempre me passavam para outra pessoa, aí um me jogava para o outro e ninguém sabia responder, até que decidi ir fazer o tratamento em Curitiba, onde viram que meu nome nem estava lá”.

Depois da descoberta, Félix foi atrás de seus direitos, voltou para Cascavel, e persistiu até ser colocado na fila e, então, continuou fazendo o tratamento.

Pacientes crônicos renais têm direito de passar por uma avaliação no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para avaliar a capacidade de trabalhar. Caso estejam impossibilitados, podem ser aposentados por invalidez e têm direito ao auxílio-doença. No entanto, muitas vezes, o INSS afirma que os pacientes têm condições de trabalhar, como no caso de Félix. “Eu faço hemodiálise três vezes por semana, e elas duram quatro horas, quando saio da clínica fico debilitado, fico com fraqueza e me sinto muito mal, e desse jeito é difícil trabalhar, mas mesmo assim o INSS diz que tenho condições de trabalhar”.

Com toda a realidade complicada para essas pessoas, em relação ao trabalho e até mesmo ao tratamento, o processo demorado para estar de fato na fila de espera do transplante, e principalmente para conseguir um órgão, faz com que os pacientes fiquem angustiados, especialmente agora, quando talvez precisem esperar ainda mais pelo tão esperado órgão. “Eu preciso de um rim novo, porque tenho vontade viver, assim eu não consigo trabalhar, não dá pra viajar, não dá pra comer direito e nem mesmo beber água, sem contar que não recebo nada do governo, então ficar sem trabalhar é muito difícil”, desabafa Félix.

No Brasil, em 2017, havia mais de 120 mil pacientes em tratamento substitutivo e apenas 31.226 estavam na fila de espera para o transplante renal, de acordo com o Censo Brasileiro de Diálise da Sociedade Brasileira. Entretanto, mesmo com o tratamento, a taxa de mortalidade desses pacientes é grande. Em 2019, mais de 25 mil pessoas foram a óbito devido à falência renal.

Por enquanto, não há dados que mostrem como essas pessoas serão afetadas. O que se sabe é que as terapias não podem parar. “O paciente que entra em terapia renal e precisa fazer hemodiálise, ele não tem como fazer em casa, ainda não existe essa possibilidade em nossa região. Esse paciente precisa da diálise se não morre. A interrupção é impraticável”, finaliza Rubia.

--

--