Os filhos bastardos da meritocracia
A história da mercearia De Bortoli e seus renegados pela sociedade
O prato de arroz com feijão destoa dos potes de doce espalhados pelo balcão. Não há tempo para uma refeição tradicional, feita à mesa, na companhia da família e com direito à sesta. Sérgio Vernei Stanhaus é um homem de negócios, um comerciante que trabalha mesmo enquanto come, um filho de seu mérito. Ou pelo menos é assim que vejo ele. Uma garfada de alimento e duas paçocas vendidas, esse é o ritmo que a criançada da escola em frente à mercearia dita, quando a aula acaba, perto do meio-dia. Sérgio é um homem de negócios e essa é uma oportunidade indisperdiçável, mesmo que signifique comer no balcão.
Por essa época ele e sua esposa Odete já vivem do comércio há 33 anos. Com uma sinergia típica das comédias americanas, Odete é o estereótipo da mulher mandona. Firme, decidida e sem papas na língua, ela cuida do financeiro, emite notas fiscais e “xinga cliente caloteiro”. Já Sérgio é o carisma da relação: voz mansa, jeito carinhoso, faz fiado e sempre que pode ajuda quem passa.
Vindos de Pato Branco para Cascavel, começaram com um bar cujo esforço transfomou em um grande mercado, o Mercado Stanhaus. Tinham vários funcionários, uma lista grande de clientes e uma dinâmica completamente insustentável. Os dois filhos do casal, Eduardo e Leandro, eram pequenos e precisavam de cuidado, a lista dos fiados de Sérgio, mesmo com o constante alerta de Odete, só crescia e os próprios colaboradores tinham mãos rápidas demais para que a confiança existisse.
Sem mais aguentar, venderam tudo e compraram a mercearia que seria seu reino nos próximos 20 anos. Batizada de De Bortoli, o local, que antes se chamava “O Camboim”, assumiu o sobrenome de Odete e se tornou um bastião do trabalho duro no bairro Santo Onofre, na periferia de Cascavel, de frente para a escola municipal e da associação de moradores do bairro .
Independente da vontade do casal, o local se tornou um refúgio para pessoas que, assim como eles, tinham sido abandonadas à própria sorte pela meritocracia. Um espaço repleto de personagens insólitos para uns e um leito de indesejáveis para outros.
O recanto dos humilhados
A personalidade da mercearia de Sérgio e Odete é feita pelos seus clientes. Divididos entre as crianças da escola municipal, as senhoras que buscam os artigos de bazar e hortifrúti e os rejeitados pela sociedade em busca de alívio e refúgio que não acham em nenhum outro lugar.
Entre elas está Maria, uma catadora de latas aficionada no jogo do bicho e na beleza que existe em bailar. Ela dança entre a loucura que o passado lhe presenteou e o cenário em que vive. É difícil conhecer sua trajetória por meio da conversa, pois coisas tolas como o que já passou não a interessam e sua vida é baseada no que importa à ela, o futuro:
— Já abriu o bicho?! Tenho dois “real”, um aqui e um de haver com ele lá. Olha o cachorro ali, hoje vai dar cachorro!
Na matemática senil de Maria, que calcula quanto ganhará no jogo do bicho, as festas que irá participar e a quantidade de pessoas que morreram no bairro durante a semana, a morte é um denominador comum, talvez por isso ela crie uma realidade paralela que satisfaz seus desejos e anseios. Apesar do destrato dos outros, que a chamam de “louca”, “puta” e “nóia”, ali ela tem com quem conversar. Enquanto as latas são acumuladas no saco, retiradas de seu dono já quando o último gole termina, Maria conta que a vida é simples e somente “os grandes” ficam ricos.
— Se eu sou bonita assim sem dinheiro, imagina se eu fosse rica, piá! — conta a “lunática” durante sua dança eufórica de espera pelo jogo.
Já Cabelo fala de seu dia chateado:
— Eu tava mangueando ali loco. Na janela da caminhonete da mulher, tentando vender minhas paçoquinha, porque eu sou trabalhador, sabe? E chega os cara para pedir junto. A mulher fechou o vidro e se tivesse um calibre era capaz de me derrubar lá…
Cabelo se vê como trabalhador. Age como trabalhador. É trabalhador. Mas seu pote continua cheio e no final do mês nenhum salário irá cair na conta bancária que ele não tem.
Um qualquer da turma de bêbados fala que é impossível não comprarem doces de Jesus, enquanto outro interpela falando que Jesus de capuz, também é bandido.
Dentro daquele reino em que Sérgio e Odete são rei e rainha, um príncipe se destaca. Diferente de Eduardo e Leandro, ele não é um filho legítimo e sua idade é suficiente para ser pai do casal.
Jessé chegou na De Bortoli acolhido como todos os outros, alcoolista e catador de papelão, Sérgio fez a proposta:
— Você fica com a gente se parar de beber! A gente te dá casa e tudo, mas tem que parar com a pinga.
Ele aceitou a oportunidade. Trabalhando na mercearia, ganhou o quarto dos fundos mobiliado, a chance de se ver funcional novamente e a ajuda de que precisava para se livrar do vício.
— O Jessé não é funcionário, é da família, é como um filho nosso — brinca Odete rindo da diferença de idade entre os dois.
Jessé foi e voltou do alcoolismo e da De Bortoli, mas ancorou-se na sobriedade, e em seu feudo, quando recebeu o diagnóstico de câncer de próstata, com o qual vem convivendo.
O trabalho, condição necessária para se manter são, não para e ele segue com a resignação de “encontrar o rumo” só depois de velho.
O futuro dos bestializados
Sérgio já tem 57 anos, mas não possui perspectiva de se aposentar tão cedo.
— Na época do mercado ele não pagou o INSS, o contador era “jaguara”, acho que nem sabia que isso existia, agora ele tem que pagar mais uns anos ainda — explica Odete com seus 61 anos e já aposentada.
Ela adiciona que mesmo quando os dois estiverem com o aposento garantido, não será o suficiente para abandonar a vida de comerciante e que irão deixar tudo funcionando, enquanto for possível.
A pandemia do coronavírus fez com que as vendas diminuíssem e, com isso, a chance de tirar férias foi retirada deles:
— Estamos há dois anos sem parar em dezembro. Os parentes nem vêm mais pra cá porque sabem que tocamos direto. A gente tá cansado, tá exausto, mas vai fazer o quê, né?! — desabafa Odete.
Sérgio, por sua vez, não reclama, para ele “enquanto tiver saúde tá bom”. Com sua risada baixa e cansada, ele brinca até mesmo com o fato de que seu nome está nos serviços de proteção ao crédito:
— A própria gerente lá do banco me falou que eu já dei dinheiro demais pra eles, agora vou deixar lá, daqui uns anos eu acerto e tira esse juro, o que era 30 conto vira 3, daí eu acerto — Sérgio sorri manso, sem gastar muita força e sem reclamar.
Ele é um filho de seu mérito e garfada após garfada da sua refeição sem sesta, ele segue no ritmo das crianças, das donas de casa e dos bêbados.