Os independentes

Escritores sem editoras cuidam desde o processo de criação até a logística de venda das obras

Mariane Souza com sua obra, Sangrando em Aquarela. ARQUIVO PESSOAL

Em frente ao computador, com cabelo amarrado, um copo de água e bagagens de milhares de repetições das músicas do cantor Jão e leituras das poesias de Amanda Lovelace, Mariane de Jesus Souza escreveu mais uma de suas obras, com várias poesias, Sangrando em Aquarela. E, diferente das outras, nunca publicadas, resolveu tornar mais próximo o sonho de ter um livro publicado. “Mandei muitos e-mails com um resumo do meu trabalho para cada editora que encontrei, esperando uma oportunidade, mas a maioria das respostas vieram com orçamentos absurdos, sem propostas para comprarem os direitos”.

Com o salário de estagiária, um marido companheiro e uma pilha de parcelas para pagar, Mariane se tornou mais uma, senão a primeira, escritora independente, com um livro físico, em processo de publicação de Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo. “Consegui encontrar uma editora no Rio de Janeiro que me mandou um valor mais em conta, que eu tinha condições de bancar, e ter, finalmente, meu livro”.

Mas então veio a pandemia do novo coronavírus. E foi como um grande balde de água fria. Os planos para o lançamento do livro já não poderiam se concretizar. “Tinha fechado parceria com uma livraria para fazer meu lançamento por lá, e eu já me imaginava assinando os livros, tirando fotos com as pessoas, até tinha escolhido quais roupas usar, mas nada disso pôde acontecer”.

A preocupação passou a ser, então, com a venda dos livros, que dependia, em grande parte, do lançamento para divulgação. “Eu não sabia como começar a vender os livros, tinha várias caixas ali e não tinha ideia do que fazer. Não sabia usar aplicativos para pagamentos on-line e nem tinha parado para pensar que precisaria saber de tudo isso quando fechei negócio com a editora”. Mas Mariane, muito ativa nas redes sociais, começou por lá. Com um vídeo no Instagram, ela iniciou o processo de marketing para vender Sangrando em Aquarela. “O vídeo foi repostado por várias pessoas, muita gente me ajudou nesse processo. E aquele simples pedido de ajuda chegou à 17 mil visualizações. Foi muito surreal”. E foi assim que as vendas começaram, grande parte delas pela internet.

A saída de partir para as redes sociais e criar um vínculo com as vendas on-line foi uma vantagem para Mariane, principalmente como escritora independente. Levantamento mensal da Growth from Knowledge (GFK), em parceria com a Associação Nacional de Livrarias (ANL), apontou que o faturamento das vendas físicas de livros em março teve queda de 18,3%, e em abril chegou a atingir o pico de 33% na diminuição do lucro. Em contrapartida, o mercado on-line tem sido o responsável por 40 a 45% do faturamento de algumas empresas, segundo a ANL.

Com o processo de vendas alavancando, Mariane garante que o faturamento, mesmo com o baixo custo do livro, foi de grande ajuda. “Em muitas situações, às vezes, não tínhamos alguma coisa para comer, ou queríamos ter um momento de lazer, e surgia a venda de um livro e salvava a gente”. E as entregas de Sangrando em Aquarela não ficaram apenas em São Paulo, chegaram a ultrapassar até mesmo os limites da região Sudeste, alcançando diversos estados brasileiros. “Foi uma surpresa para mim, até porque o público que começou a comprar o livro fugia do que eu pensava ser. Muitos homens, muitas vezes jovens, fizeram pedidos e colocavam frases dos textos nas legendas de fotos nas redes sociais. Para mim, foi muito gratificante”.

Depois da primeira autopublicação, Mariane não quer parar por aí e deseja seguir no ramo independente. “Já tenho alguns projetos em mente, mas meu maior desejo é publicar um dos meus romances. Desde o início era esse o plano, mas, no fim das contas, decidi começar com Sangrando em Aquarela”.

“Me perguntaram o por quê de sempre sorrir, como se nada pudesse me ferir ou desestabilizar. Porque eu sempre estava alegre e nunca sangrava com a dor. Novamente eu sorri enquanto lágrimas invisíveis caíram dos meus olhos”

- Algumas pessoas sangram em aquarela

Mariane Souza, Sangrando em Aquarela

Das fanfics às editoras

Juliana Dantas já ficou na lista dos mais vendidos do Kindle diversas vezes, e também na lista de mais vendidos da Veja. ARQUIVO/DIVULGAÇÃO

A trajetória na escrita de Juliana Dantas começou em 2006 no mundo das fanfics. Com uma história inspirada no seriado Lost, a escritora ganhou seus primeiros leitores. “Depois de Lost, passei a escrever sobre outros seriados e livros que tinham mais fãs. E assim como E. L. James, de Cinquenta Tons de Cinza, também escrevi sobre a saga Crepúsculo, o que me rendeu ainda mais leitores”.

Mas, a realidade de publicar de forma independente uma de suas histórias ainda estava muito longe. Todas as fanfics eram escritas como forma de entretenimento, sem nenhuma expectativa. “Um dia uma amiga falou que eu deveria colocar meus livros no Kindle, mas eu não acreditava que um eBook poderia dar em alguma coisa. As pessoas sempre preferem ler em livros físicos, e como trabalhava em editoras conhecia todo esse processo de publicação e sabia o quão difícil era entrar”.

E foi em uma Bienal do Livro que Juliana Dantas viu já existia gente que não só vivia, como fazia sucesso, com a publicação de eBooks. “Estava com uma amiga passeando pelo evento e tinha uma fila de gente esperando para pegar autógrafos em um stand que não tinha livros disponíveis e os escritores eram completamente desconhecidos por mim. Perguntei o que era aquilo e minha amiga disse que eram os fãs de livros do Kindle”.

O Kindle Direct Publishing é uma extensão da Amazon para publicações e leituras de livros digitais, e trabalha com o formato de assinaturas e empréstimos de obras literárias. Seguindo as análises da empresa, os autores independentes costumam ser de grande destaque na plataforma, até mesmo durante a pandemia. “Em média, 30 dos 100 livros mais vendidos da Loja Kindle semanalmente são obras autopublicadas pela ferramenta”. E, além disso, para incentivar a leitura dentro de um país onde a média é de apenas 2 livros ao ano e no qual 30% da população nunca comprou um livro, a Amazon tem apoiado iniciativas de editoras e autores independentes. “Para eBooks como um todo, a Amazon apoiou iniciativas de autores e editoras oferecerem suas obras gratuitamente”.

DIVULGAÇÃO.

Foi aí que Juliana Dantas resolveu ponderar o assunto e enfim estreou na plataforma da Amazon em 2016, com o livro O Leão de Wall Street.

O sucesso do primeiro livro publicado foi crescendo e alcançou um número de pessoas inesperado, mas, ainda assim, Juliana Dantas continuava com um “pé atrás” sobre o faturamento na plataforma. “Eu estava em um emprego que não gostava, e queria muito sair. As pessoas me diziam para largar o que fazia e viver dos meus livros no Kindle, mas eu não conseguia acreditar que isso seria uma fonte de renda em tempo integral. Só vinha na minha cabeça ‘isso não paga meus boletos!’”.

Apesar disso, a escritora dentro de Juliana continuou publicando os livros na plataforma. Na segunda tentativa veio a insegurança: o livro não teve leituras suficientes. “Foi um fracasso total, senti que o sucesso do primeiro livro tivesse sido anulado com a falta de leituras deste, mas ainda assim resolvi continuar publicando meus eBooks, já que tinha uma lista de histórias já escritas”.

Já no terceiro livro, o sucesso foi estrondoso. Sem publicidade nenhuma, o título entrou para os mais vendidos. “Fui percebendo que o dinheiro estava entrando, e como eu tinha várias histórias guardadas, fui publicando e tentando pedir nos grupos de leitura para o pessoal ler. Até que resolvi sair do meu emprego e tirar um tempo pra mim”.

Os planos não eram viver da escrita, a dúvida do incerto continuava rondando. “Conforme ia publicando os livros, percebia que alguns vendiam muito, outros nem tanto, e que o mercado era assim mesmo. E que viver da escrita seria uma possibilidade, mas dependeria de muito trabalho e disciplina”.

Hoje, com mais de 40 títulos publicados no Kindle, Juliana conseguiu realizar também algumas publicações por editoras. “Tenho livros publicados pela Editora Harper Collins, com o selo Harlequin, minha grande conquista, e também tenho pela DVS Editora e Editora Pandorga”. Ela, inclusive, teve os direitos de sua série Julie & Simon comprados pela produtora Lupi para uma adaptação audiovisual. “Sei que todo o processo de produção audiovisual no Brasil é mais limitado, mas foi uma grande conquista para mim, como escritora, dar vida e cores aos meus personagens”.

Durante todo esse caminho, Juliana percebeu que viver da escrita é maravilhoso, mas dá muito trabalho. “Amo o que faço. Mas, sei que dependo de muito trabalho. Acho que hoje trabalho muito mais que quando estava na editora. Para muita gente, ser escritor e viver disso parece ser fácil, e na verdade não é. Eu sou minha própria empresa, dependo somente de mim mesma para continuar ganhando dinheiro e publicando meus livros. Dependo de mim para o marketing, dependo de mim para a escrita, publicação, escolha de capa, assessoria, e fazer o trabalho nas mídias sociais”.

No fim das contas, Juliana aprendeu que o sucesso é dependente e não se alcança sozinho. “Sou uma escritora comercial. Tenho 90 milhões de páginas lidas no Kindle. E aprendi, nessa trajetória, que mais que depender de mim mesma para fazer o meu trabalho, dependo dos meus leitores para continuar o meu trabalho”.

Em 2019, o Kindle Direct Publishing atingiu a marca de mais de 100 mil obras autopublicadas no Brasil desde o seu lançamento, em dezembro de 2012.

“Tudo morre. Apenas alguns antes que outros — ele diz — Quando eu era criança e contemplava o céu, eu queria estar lá. Ser uma estrela. Se as estrelas dão origem a tudo o que é vivo, quando a gente morre pode ser que voltemos para o espaço de novo. Voltamos a ser uma estrela.”

Juliana Dantas, As infinitas possibilidade do nunca

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