A Saga do Rei Momo em Terras Cariocas

Igor Bon
AGÊNCIA MULTIMÍDIA
12 min readJun 9, 2016

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Carnaval: há quem diga ser a festa da carne. Alguns defendem inclusive, que, no Brasil, o dia dos namorados não é comemorado no dia 14 de fevereiro, como nos Estados Unidos, apenas para que a data não caia no meio da folia. O IBGE garante: a população brasileira só tem a ganhar com a festa. Da sexta até a quarta de cinzas, a máxima defendida pela Unidos do Viradouro, em 1998, é absolutamente verdadeira: o amor está no ar e vai conquistar seu coração.

No entanto, — e nesse momento peço que não sejamos reducionistas — enganam-se os que pensam ser simples entender o maior dos movimentos sociais brasileiros. A saga do Rei Momo em terras cariocas não se resume aos prazeres da carne. Freud não seria capaz de descrever as ligações libidinais dos cariocas, por exemplo, tamanha a complexidade do assunto. MAS O QUE?, pergunta o leitor. Explico: para o pai da psicanálise, ligações libidinais não denotam apenas relações com interesse sexual. O velho Freud as descreve como derivações do sentimento de amor. O leitor há de concordar que o amor está até mesmo nas menores coisas da vida.

No Rio de Janeiro, a fauna e flora do carnaval são mais diversificadas. Além dos tradicionais blocos de rua, guardiões dos amores inesperados, acontecem os desfiles das Escolas de Samba na Marquês de Sapucaí. Os cariocas curtem as 24 horas do carnaval. Durante o dia, cada paralelepípedo da velha cidade se arrepia seguindo o Bola preta e outros mais. Pela noite, sobe o estandarte do sanatório geral e a Presidente Vargas se enche de cores nas concentrações de escolas como Portela, Salgueiro e Mangueira. A epidemia chamada carnaval acelera corações pelos pavilhões verde e rosa, vermelho e branco, por espuma e confete e até por futuros casamentos. Ouvir histórias de carnaval é sentar na primeira fileira da classe para entender o porquê de sístoles e diástoles acontecerem por motivos tão distintos.

QUANDO A SIRENE TOCAR

“Meu coração vai a mil
Quando a Sirene tocar ” (Grande Rio 2010)

Os que já desfilaram entenderão essa emoção. Quando se está na beira da entrada da Sapucaí, o nervosismo chega ao auge. O primeiro segmento a pisar na avenida é justamente o coração da escola: a bateria. No ano de 2010, a Acadêmicos da Rocinha terminava seu desfile e a bateria medalha de ouro, da Estácio de Sá estava pronta para iniciar o show do Morro São Carlos. Até o ano anterior, menores de idade não desfilavam entre os ritmistas da escola principal. Na virada da década, no entanto, seria diferente. Entre os “pequenos”, recém-chegados, estava Ian Martins, de 16 anos. No meio de tantos marmanjos com anos de experiência no assunto, o garoto faria seu primeiro desfile pela escola do coração. O nervosismo, atingindo níveis nunca antes registrados, seria descontado na caixa de guerra, instrumento tocado por Ian.

O momento mais aguardado chegara. A bateria entrava em fileiras. Pela frente, arquibancadas lotadas e os 700 metros de comprimento da avenida mais importante do mundo. A sirene toca; a hora é essa. Começam os gritos apaixonados e intimidadores: AQUI É ESTÁCIO. Nesse clima, a bateria começa a tocar e leva o setor 1 a loucura. Os gritos das arquibancadas emocionam e acontece o imprevisível mais previsível de todos: o estreante, de apenas 16 anos, desanda a chorar. Nessas horas não há colo de mãe que resolva, o que mais se deseja é continuar chorando. Os ritmistas entraram no primeiro recuo, o intérprete cantou o samba de exaltação da escola, que diz: “a saudade apertou e eu voltei para ficar do teu lado”. Ian ainda chorava, mas agora abraçado por todos os marmanjos que o cercavam. Parecia que o menino estava voltando à escola depois de um período afastado. Sempre fora Estácio, disso não havia dúvida. O choro era de felicidade, a espera havia acabado. Saudade só depois da última cabine de jurados.

TRIÂNGULO AMOROSO

quem diga que não existe amor verdadeiro entre mais de duas pessoas. É compreensível que se advogue a favor de formas de relacionamento mais tradicionais. No entanto, já diria Nelson Rodrigues: “nada nos humilha mais do que a coragem alheia”. Não se inicia um triângulo amoroso sem muita coragem e isso, caro leitor, há sempre de ser valorizado. O leitor tem todo o direito de ficar curioso, a história de Lucas e Carol faz jus ao suspense. Os dois se conheceram na Unidos de Vila Isabel, ambos ritmistas da escola. Ele toca surdo, ela chocalho. Ele tranquilo, ela de gênio forte. Ela 10 anos mais velha do que ele. O leitor mais apressado diria que os opostos se atraem. Talvez não seja esse o caso.

Da quadra da escola de samba do bairro de Noel, as conversas evoluíram para o facebook. No início, a idade parecia um problema, mas o feitiço da Vila pegou o casal. Começaram a namorar cedo e terminaram mais cedo ainda: 1 semana. O relacionamento não resistiu a dois ensaios da escola. As discussões depois dos ensaios não tinham fim. Durante 1 mês ficaram separados e, então, reataram o namoro. Dessa vez, no entanto, os termos estavam mais claros: Lucas, Carol e Vila Isabel, convivência em harmonia. Os dois não conseguiram viver sem a escola e, por conta disso, voltaram a namorar. A família de Carolina Perez é criada na escola, seu pai, inclusive, autor de sambas enredo que foram para a avenida. Lucas Barreiros é patinho feio na família de salgueirenses.

Só há uma coisa que Carol ama tanto quanto Lucas: a Vila Isabel. A recíproca é verdadeira, segundo o rapaz. O carnaval agora dura o ano todo, começando nas disputas de samba, passando pelos ensaios e culminando no desfile. Eles garantem que a fórmula dá certo, as vezes brigam, mas nunca por conta da escola. Essa, pelo contrário, é o refúgio do relacionamento. Quando algo não está indo bem, o destino é sempre a quadra da azul e branco de Noel. São Paulo dá leite, Minas dá café e Vila Isabel dá amor. Afinal, quem nasce na Vila nem sequer vacila ao abraçar o samba.

No Ritmo do Amor

Não é preciso dedicar horas de buscas aprofundadas para encontrar grandes histórias envolvendo a época mais charmosa do ano. De fato, o carnaval é perfeito para protagonizar momentos únicos que serão lembrados não só por um mês, mas talvez por uma vida toda. Não era para menos, esses dias de folia são responsáveis por quebrar a rotina das pessoas, é chegada a hora dos pés fincados em escritórios, em feiras, em casa, os pés que cansam seus donos durante o ano inteiro se espreguiçarem fora do sapato e seus corpos se despirem em fantasias carnavalescas.

A cada batucada do tamborim e som grave do bumbo os corações batem mais forte, os olhos brilham como estrelas e vidas explodem emoção nessas passarelas dos blocos e avenidas. É um arrepio que dá na nuca, que sobe à cabeça e desce pelo corpo como chuva de purpurina pra rebolar a carcaça das senhoras e senhores, das crianças e doutores, dos ambulantes de cerveja, dos gringos, dos negros e amadores. O emocionante do carnaval é quando vingam as histórias de amor depois da folia, apesar de o mundo dizer o contrário nessa época do ano.

Quem nunca ouviu aquela famosa frase, “To nem aí, hoje é carnal”, ou “é dia de passar o rodo em geral”. Vamos combinar a ideia de que “ninguém é de ninguém” já começa um pouquinho antes dos dias de festa, o clima eufórico está presente nas semanas quentes de verão regadas a “loiras geladas” e altos sambas. É só sobre o hedonismo que escutamos quando os blocos saem e a cachaça, o suor e a serpentina tomam conta das ruas. É carnaval! Subtexto? “Amor sem compromisso.” Mas é preciso dizer que, entre o “vem ni mim que eu to facinho” e a ressaca dos confetes, há sempre um momento em que uma foliã ou um folião pensam: “Hum… daqui poderia nascer algo a mais”. Ou não? Será que existe espaço para um amor no carnaval? Ou relacionamentos duradouros só começam na chegada de março?

AMOR E CRISE NA FOLIA

Os contos de amor não param por aí. A história da vez é de João Botelho e Ana Carolina Camelo, dois jovens que começaram a namorar no primeiro dia de fevereiro de 2015, exatamente no mês do carnaval. Eles não seguiram à risca aquela famosa frase de que “ninguém é de ninguém”, e assumiram um compromisso amoroso justamente no período onde muitas pessoas terminam seus relacionamentos. Eles foram à contramão desse “clichê”, algo que para muitos é um tanto quanto arriscado. Apesar do medo de se deixarem levar pelo ritmo de alegria e desleixo que o carnaval envolve, ambos curtiram os blocos juntos e as festas serviram até para unir ainda mais o casal, pois foram determinantes para que os dois vivessem novas histórias interessantes juntos.

Já o ano de 2016 não teve o mesmo início que eles planejavam, por conta de brigas e desentendimentos, eles decidiram terminar no final de janeiro, perto do início do período de folia, servindo de fuga para os dois se livrarem das mágoas e jogarem todas as emoções para o alto, afinal, era carnaval. Dessa vez a data mais charmosa do ano mudou de função, não serviu para unir o casal, se tornou uma maneira de os dois liberarem o estresse acumulado e repensarem sobre as suas decisões.

Os dois curtiram o carnaval separados e deram a “sorte” de não se esbarrarem em um mesmo bloco. Os dias passavam e alegria momentânea já se transformava em saudade. Na segunda-feira de carnaval, estava Carol na Praça São Salvador, Rio de Janeiro, e uma amiga que ela tem em comum com João chamou os dois para um mesmo local. Foi quando os dois se esbarraram e tiveram que ficar no mesmo grupo, porém, nunca direcionando a palavra ao outro evitando se aproximarem, mas a troca de olhares era constante. Em um momento naquela noite, João acabou encontrando outra ex-namorada e os dois começaram a conversar. Aí já viu, Carol não conseguia desgrudar os olhos daquela conversa e de longe olhava fixamente para os dois, enquanto os amigos dele não pararam de zombar da situação, provando que nem nesses extremos casos o espírito carnavalesco dá uma trégua.

Já estava tarde, e todos decidiram se deslocar para as suas casas. Quando ambos chegaram, foram direto pegar seus celulares para ver se por acaso algum dos dois havia mandado alguma mensagem, cada vez ficava mais difícil esconder o sentimento. Orgulhosos, ninguém mandou nada. Os dois estavam online pelo WhatsApp e depois daquelas trocas de olhares intensas na São Salvador, João decidiu agir e mandou uma mensagem. Foi quando o sentimento começou a bater novamente. Os dois conversaram por horas e combinaram de se encontrar no dia seguinte para conversarem a sós. Carol foi até a casa de João para que pudessem resolver toda aquela situação. Com mais algum tempo de conversa, os dois não conseguiram esconder o sentimento um do outro que ainda aflorava, o amor deles era tão grande que nem para tentar curtir “a vida de solteiro” eles conseguiram, sempre que podiam perguntavam a outras pessoas o que o outro estava fazendo, aprontando ou demonstrando. João e Carol tiveram esse empecilho um pouco antes do carnaval, mas mesmo assim voltaram a namorar na época da festa. Mais uma vez a data foi significante para unir os dois.

João e Carol no carnaval de 2015

Os erros de gravação

Nem todas as histórias de carnaval dão certo. Uma parte do charme da festa está justamente nas situações inusitadas. Todo folião que se preze já viveu um daqueles dias em que tudo dá errado. Mesmo os erros são divertidos. Estes talvez sejam os contos mais divertidos do mês de fevereiro. Uma das qualidades do amante de carnaval é a de se divertir até quando as coisas não ocorrem forma planejada. Os perrengues cariocas não podem ser em vão. Estes jornalistas honrarão todos eles. Para isso, nada melhor do que conferir na voz dos desastrados os melhores infortúnios de suas vidas.

A pior fantasia

Rodar, rodei

Não são apenas os solteiros que conseguem se divertir no período de folia, embora seja chocante pra alguns, o carnaval também reserva momentos para os casais apaixonados, muitas histórias de amor, ou o fortalecimento do mesmo, ocorrem nessa época do ano. Aí que entra a história de Ana Carla, atualmente com 50 anos, que passou o carnaval de 1991 com seu namorado Mauro Soido, que atualmente já beira os 51 anos de idade.

Tinha tudo para ser apenas mais um feriado normal na vida dos dois pombinhos, mas eles resolveram fazer diferente, decidiram encarar um desfile de escola de samba na Sapucaí. Haja disposição para o casal que abdicou dos programas “clichês” de namorados para viver uma aventura diferente. O que eles não sabiam é que iriam enfrentar certos problemas na primeira experiência dentro do maior espetáculo da terra.

Como já era de se esperar caro leitor, o carnaval do ano de 1991 enfrentou o tradicional calor tropical carioca, um obstáculo a mais para Mauro e Ana Carla, mas que não era suficiente para diminuir a alegria e empolgação de estarem desfilando pela primeira vez. O convite para essa participação foi feito pelo irmão de Ana, Claudio, que desde sempre foi envolvido com unhas e dentes em escolas de samba. Naquela época ele era uma importante figura da Império Serrano e conseguiu uma brecha para que sua irmã e seu cunhado participassem. Só que havia um pequeno detalhe, a escola passava por uma crise financeira e não conseguiu investir em equipamentos ou em fantasias de qualidade, resumindo, a escola estava uma bagunça.

A Império seria a última do dia a desfilar, a empolgação dos dois já se transformava em cansaço e irritação, mas aí entra aquela famosa frase, “to nem aí, é carnaval”, ajudando de alguma forma Mauro e Ana Carla a se manterem acordados e animados. O momento do desfile estava chegando e o casal ainda não tinha ideia de qual fantasia iriam vestir ou em que ala iriam desfilar, a organização estava um caos. Após horas de expectativa chegam enfim as vestimentas, a fantasia era um estandarte enorme que ainda levava um ferro no meio da roupa para que ela não se desfizesse no meio da avenida. Fora o calor, que praticamente dobrava quando se vestia a fantasia, era impossível mexer os braços ou pernas após estar completamente vestido, tudo dava errado. De repente várias pessoas da ala começam a sentir coceiras em todo o lugar do corpo, mas ninguém conseguia mexer os braços, era um tal de coça para lá, coça para cá, cada um coçando o outro.

Desfilar com aquela roupa já era um desafio, para piorar começou a chover assim que a Império Serrano Pisou na Avenida, nem o público presente era contagiado pela Escola. Embora as coisas não estivessem dando muito certo, Mauro e Ana Carla não conseguiam parar de rir, estava tudo dando muito errado para ser verdade. Em uma última tentativa frustrada para animar o público, Ana passou talvez por um dos momentos mais constrangedores de sua vida. Aconteceu quando ela tentou pedir para um grupo, do qual ela percebeu que estavam todos sentados e aparentemente desanimados, para que levantassem e demonstrassem o mínimo de alegria com o desfile da escola. O que ela não havia notado é que aquele grupo de pessoas sentadas era a ala dos cadeirantes da escola, o que transformou a cena em uma das mais hilárias das quais ela se lembra. Com sorte nenhum dos deficientes ficou ofendido com o erro.

No final do desfile, as pernas já não se aguentavam mais e a disposição já tinha ido embora, o que não sumiu foi a história para ser contada. Naquele ano, como não deve ser novidade, a Império Serrano foi rebaixada, porém, ela proporcionou momentos que ficaram marcados na história de Mauro e Ana Carla e foi significante para fortalecer ainda mais o companheirismo e o amor do casal, que acabou se casando no ano seguinte.

Olha a paradinha

Das cinzas pude perceber

Chega a quarta-feira de cinzas. É o fim de mais um carnaval. A apuração define as escolas campeãs, os últimos blocos desfilam embriagados com a ressaca mais festeira do mundo. Para aqueles que, como Jorge Aragão, não entenderam o enredo desse samba, amor, ano que vem haverá outra chance. Não importa o que aconteça, o carnaval sempre renasce das cinzas. Ano após ano. E as novas histórias, recheadas de amor, seja lá de qual forma-cor-religião, serão contadas por gerações de foliões, que, de sexta até quarta, botam o bloco na rua e transformam a vida em alegoria. Por mais confetes e serpentinas, por mais pavilhões coloridos rodando na avenida e também pelas ressacas pós-bloco, pelos carros emperrados na beirada do setor 1: mantenhamos a tradição. História de carnaval, qual a sua?

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