A Era dos Afetos

Estamos chegando ao fim da primeira década completamente digital da história, e o que nos afetou nesse período?

Verônica Batista
agenciacamelia
7 min readDec 13, 2019

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arte: Nina Exel

Afeto. No dicionário, “sentimento terno de afeição por pessoa ou animal; amizade.” Ou também “sentimento ou emoção em diferentes graus de complexidade, p.ex., amizade, amor, paixão etc.”. Como muitas palavras da nossa língua portuguesa, essa também vem do latim, affectus, “estado psíquico ou moral (bom ou mau), afeição etc.”. Gosto como sempre termina com etcétera. “Afeto, etc.”, porque realmente é difícil colocar um ponto final, os afetos estão por toda parte e estão presentes em nossa vida, quer a gente perceba ou não.

E nesta ampla gama de opções possíveis no “etc”, como não daria conta de falar de tudo — e nem tenho essa pretensão — escolhemos aqui na Camélia falar sobre aquilo que faz mais sentido para nós: o afeto na comunicação.

Mas, afinal de contas, o que é a comunicação afetiva?

“Acredito que comunicação afetiva é se relacionar, sempre, se perguntando ‘quem é esse outro com quem eu falo?’. É preciso começar pelo outro, já que o eu a gente compreende minimamente, e tentar criar um alinhamento das subjetividades desses indivíduos envolvidos. É agir para além da língua, da forma e da imagem para estar aberto ao outro e, juntos, criar a conversa”, explica Roberta, sócia da Camélia.

Comunicação afetiva é comunicação com ética, respeito e muito cuidado — Grazi

Grazi, outra sócia, também compartilhou sua visão sobre o assunto: “Pensando nos afetos como aquilo que nos afeta, que mexe com a gente, que aumenta ou diminui nossa vontade de agir, fazer comunicação afetiva é considerar os sentimentos das pessoas envolvidas no processo, desde o cliente até quem receberá as mensagens, e estar ciente desse poder que a comunicação tem: afetar o outro. Para mim, comunicação afetiva é comunicação com ética, respeito e muito cuidado”.

Os afetos que mobilizam

Para quem estuda ou já estudou teoria da comunicação, principalmente em publicidade, mobilizar as pessoas por meio de seus afetos é uma estratégia bem conhecida para se atingir um objetivo. E mesmo que você não tenha estudado comunicação, já deve ter ouvido a frase “o meio é a mensagem”, de Marshall McLuhan, que lá em 1964 já nos mostrava que tão importante quanto o conteúdo (e talvez até mais) é o meio pelo qual ele é comunicado.

E pra Roberta, esse meio pode ter se transformado nos últimos anos, mas ainda temos como escolher qual será a mensagem. “Antigamente nós éramos pequenas vilas, e depois, pequenas cidades, mas agora somos o mundo todo e precisamos de um artifício de comunicação que nos possibilite falar com o mundo todo. Antes, ir a pé até o vizinho para dar um recado funcionava, ou anunciar no jornal do bairro, falar por telefone… as pessoas conseguiam se reunir dessas formas e mesmo assim realizar transformações. Agora é preciso um alcance maior, e as redes funcionam muito bem para isso, lá podemos criar essas conversas que transformam”.

Aliás, estamos às vésperas de encerrar a primeira década integralmente digital da história do Homo Sapiens e basta dar uma olhada ao redor para percebermos que tanto os meios quanto as mensagens estão mais e mais mirando em nossos afetos.

“O termo ‘afetivo’ me remetia automaticamente a sentimentos positivos, mais próximos de carinho. Mas não é apenas sobre isso que ‘A Era dos Afetos’ trata. Olhando para o contexto da comunicação atual é fácil visualizar o como a comunicação social, abrangendo não só a publicidade e conteúdo de marca, mas também as mídias informativas (ou desinformativas), utiliza-se de afetos para a mobilização das pessoas. Quanta raiva podemos sentir ao ler um pequeno título de uma notícia falsa ou sensacionalista? Ou o quanto nos mantemos apáticos sendo impactados o tempo todo por manchetes que comunicam acontecimentos antidemocráticos, racistas, machistas, homofóbicos etc., absolutamente neutralizados, relativizados? Como comunicadora, sinto-me no dever de estar atenta a tudo isso”, aponta Grazi.

Um dos principais estudiosos da comunicação no Brasil, o professor Muniz Sodré, que também é presidente da Biblioteca Nacional e professor titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em uma entrevista à revista Pesquisa Fapesp também chamou a atenção para o uso dos afetos na mídia: “A raiva e o ódio são um afeto. A mídia neutraliza também as velhas tensões comunitárias afetivamente. Mas o modo de se acercar de nós é pela emoção, pela sensação, que diz respeito a entretenimento, a espetáculo e também ao próprio conhecimento que os bytes e os dígitos nos dão”.

A comunicação move nossos afetos, isso é um fato.

Mas não precisa ser um fardo.

Os afetos e as intenções

O saber é emancipador, por isso, conhecer e entender as lógicas por trás de tudo aquilo que consumimos, desde bens materiais até conteúdos digitais, nos empodera e dá autonomia. É essa a nossa defesa contra os estímulos que desejam mobilizar os afetos que nos fazem mal, seja gerando sentimentos angustiantes, criando necessidades inexistentes ou até mesmo afetando nossas relações com o outro. A comunicação move nossos afetos, isso é um fato. Mas não precisa ser um fardo.

“A Camélia, por exemplo, é um negócio que nasceu já com uma vontade muito grande de usar a comunicação para promover mudanças sociais. Desde que surgimos nosso plano foi conseguir se sustentar para poder apoiar projetos que resolvem questões sociais que achamos importantes para a sociedade”, explica Roberta. “A nossa ideia era a de subverter essa lógica de uma comunicação que serve ao mercado para usar a comunicação como uma ferramenta que pode provocar mudanças nesse sistema, e é aí que enxergamos o potencial da comunicação afetiva, a comunicação que olha o outro e o coloca dentro da conversa”.

E se o meio é a mensagem, a comunicação somos nós. É nesse caminho que acreditamos que a intenção no que comunicamos e na maneira como comunicamos é o que pode levar a mudanças significativas, ainda que lentas. Como diria minha terapeuta, “sem pausa e sem pressa”.

A gente pode focar nas pessoas ao invés das marcas, e podemos usar as plataformas das marcas para comunicar uma ideia possível de mundo — Roberta

As pequenas transformações

“Podemos deixar a comunicação na mão dos ambiciosos, poderosos, dos donos das grandes indústrias, dos donos dos meios de comunicação, de quem sempre teve esse controle, ou a gente pode pegar a Comunicação na mão e falar ‘é assim que vai ser feita agora’. E então conseguimos começar a fazer de uma forma que gere menos angústia, menos ansiedade, menos desejo e que não crie necessidades que não existem, que olhe para o indivíduo e suas singularidades e mostre que existe o caminho da consciência, que você deve poder escolher o que quiser, consciente de que sua escolha gera impacto, não só para você, mas também para a comunidade”, afirma Roberta.

“A gente pode, sendo nós mesmos parte da própria Indústria da Comunicação, direcionar qual o caminho queremos seguir. Podemos focar nas pessoas ao invés das marcas, e a gente pode usar as plataformas das marcas para comunicar uma ideia possível de mundo, esperando que as pessoas se afetem, que esse afeto gere reflexão e que a reflexão vire troca ao invés de consumo. Eu acho que existe um grande caminho entre a reflexão, o entendimento, a compreensão e o consumo, e aqui na Camélia a gente trabalha sempre focadas nos três primeiros pontos”, conclui.

E o que será que vem por aí?

Nessa época do ano eu sempre fico muito reflexiva — e provavelmente não sou a única. Imagine então quando o fim do ano coincide com o fim de uma década, aí tenho reflexões para mais de metro. Há dez anos eu usava o Orkut, MSN e fotolog. Meu celular não tinha câmera e eu não tinha ideia do que iria fazer com a minha vida. De lá pra cá comprei meu primeiro smartphone, abandonei o SMS para usar o WhatsApp, viciei no Instagram e xinguei muito no Twitter. A tecnologia não deu um salto, mas vários, e aí me lembro (mais uma vez) do Marshall McLuhan falando sobre o meio ser a mensagem lá em 1964.

Com os meios mudando tanto, em um ritmo tão acelerado, a última década mexeu profundamente com meus afetos, e pelo jeito os próximos dez anos continuaram nos oferecendo essa montanha russa de emoções.

Para Grazi, “as marcas e o mercado já estão muito implicados no futuro, e eu acredito que é pela comunicação afetiva que podemos responsabilizá-los pelo que lhes cabe e colocá-los para pensar e agir em cima disso. É também pela comunicação afetiva que tomo minha parte de responsabilidade, saio do pensamento de ‘é assim que as coisas são’ e guio minha atuação diária pelo ‘como eu quero que as coisas sejam’. A comunicação digital abriu e abre, cada vez mais, potenciais espaços de diálogo, mas, para mim, é enxergar a amplitude da comunicação afetiva e intencionar honesta e eticamente o que produzimos e publicamos que nos possibilita o privilégio de batalhar para que os diálogos deixem de ser apenas potência e aconteçam de fato, na prática”.

“Eu acho que, na próxima década, os meios de comunicação digital terão cada vez mais a chance de despertar conversas nos meios não digitais, e são essas conversas que vão continuar gerando as mudanças. Neste contexto, o nosso papel é o mesmo nos meios de comunicação digital e na sociedade. As redes sociais requerem a existência da sociedade, o que mudou é que antes essas redes eram presenciais e hoje são virtuais, mas quem tá aqui dentro somos nós, pessoas. Em qualquer meio, quem fala e quem ouve são pessoas, e não podemos nos esquecer nunca disso”, opina Roberta.

Assim, seja bem-vinda, nova década. Pode entrar, com muito afeto!

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