“Ame o seu trabalho e…”: será que isso é possível?

Entrevista com Julia Bock e Roberta Ozi sobre a romantização do trabalho

Verônica Batista
agenciacamelia
10 min readJul 15, 2019

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Quando assisti ao vídeo “Porque desromantizar a maternidade”, que a youtuber Hel Mother lançou em 2017, uma chavinha virou na minha cabeça — eu não sou mãe, mas vi naquele relato muito das tantas mães que conheço, inclusive da minha, e isso me fez olhar para diversos aspectos da minha vida me perguntando: “será que eu estou romantizando isso?”

Mas o que é, afinal de contas, romantizar?

Essa ideia vem do Romantismo, um movimento artístico que surge no século XIX para se opor ao Iluminismo. Em linhas gerais, o Romantismo preza pela expressão das subjetividades, por um sentimentalismo exacerbado, pela valorização da individualidade e por uma idealização profunda dos mais variados temas. Olhando para esse contexto histórico, fica um pouco mais fácil entender sobre as romantizações do mundo moderno, não é?

Aí o Romantismo deu lugar ao Realismo, que deu lugar ao Modernismo, que se diluiu no mundo contemporâneo em um movimento artístico ainda sem nome e meio sem forma. Se a cultura se transformou tanto é porque a sociedade está em constante transformação, mas será que, ao passar de um momento sociocultural para outro, realmente deixamos todo o passado para trás? Ouso dizer que não.

Agora, vamos imaginar que um desses artistas do Século XIX viesse parar bem aqui, hoje: ele seria ou não um famoso youtuber?

Vem comigo nessa linha de pensamento: durante o Romantismo, os artistas da época valorizavam o individualismo, idealizavam as relações e enalteciam os sentimentos — não qualquer um deles, mas principalmente os sentimentos mais sofridos e dolorosos. Agora, vamos imaginar que um desses artistas do Século XIX viesse parar bem aqui, hoje: ele seria ou não um famoso youtuber?

A romantização do trabalho

Brincadeiras à parte, acredito que continuamos a romantizar uma série de elementos da nossa vida: a maternidade, algumas relações tóxicas e (agora sim chegamos no assunto principal desse texto) o trabalho. E mais uma vez vou dizer algo aqui que não é nenhuma novidade — uma das frases muito populares no Linkedin é atribuída a um filósofo chinês chamado Confúcio, que viveu cerca de 500 anos antes de Cristo: “escolha um trabalho que você ame e não terá de trabalhar um único dia de sua vida”.

Não conseguimos comprovar se Confúcio disse ou não esse hit dos coachs de desenvolvimento e carreira, mas alguém um pouco mais moderno e um tanto mais popular falou algo muito parecido em 2005, Steve Jobs, em seu famoso discurso aos formandos da Universidade de Stanford: “A única forma de se fazer um ótimo trabalho é amar o que você faz. Se você ainda não encontrou o que é, não sossegue.”

E eu, como a boa fã de Mamilos que sou, vou tentar refletir sobre a romantização do trabalho da maneira mais empática possível, na intuição de “construir pontes e não provar pontos”. Para isso, conversei com duas mulheres que admiro muito: Julia Bock, cineasta e sócia do Aldeia 445, um coworking e espaço de eventos (e a casinha da Agência Camélia), e com Roberta Ozi, publicitária e sócia da Agência Camélia.

Mas essa conversa só é possível tendo em mente que algumas pessoas têm o privilégio de poder escolher com o quê elas querem trabalhar ou que podem escolher mudar de trabalho — e aí, podendo escolher algo, é possível falar sobre trabalhar por amor e/ou romantizar o trabalho.

Verônica: Se apresentem, contem um pouquinho sobre a trajetória profissional de vocês.

Julia Bock: A partir de algum momento, que eu não sei bem quando foi, eu resolvi ser atriz, então fui estudar teatro na faculdade. Na minha família nunca teve uma questão imposta sobre o trabalho, a conversa sempre foi no sentido do “faça o que te faz feliz”, e eu fui fazendo. Porém, o meu caminho me levou para o cinema, mas não como atriz e sim como produtora mesmo. Meu sonho era trabalhar com o Beto Brant e eu consegui, então foi nesse ponto que o cinema me sequestrou, e trabalhei com isso por muitos anos, até que engravidei, e precisava de uma rotina mais leve e estável que o cinema não tem. E aí eu estava nessa de começar abrir portas para outras coisas, e nessas aberturas de portas apareceu o Aldeia 445, e apesar de não ter abandonado o cinema, porque eu tenho a minha produtora que está rodando uma série de projetos, hoje eu também sou apaixonada pela minha planilha de controle de receita aqui do Aldeia.

Roberta Ozi: Minha família é bem tradicional nesse quesito do trabalho, então era muito mais focado na escolha do “fazer uma boa faculdade” do que na escolha da carreira em si. E como a comunicação era algo que eu sempre gostei e eu sabia que o caminho era por ali, fui lá e fiz publicidade. E foi uma boa escolha para mim, porque mais do que ser apaixonada pela comunicação, eu sou apaixonada por relações, e a publicidade me abriu muitas portas nesse sentido. E então começou minha trajetória em agências, eu tive a oportunidade de trabalhar com projetos muito incríveis e com clientes que admiro muito, como a Natura, e fui caminhando na direção de encontrar lugares, clientes e pessoas que me possibilitassem viver mais alinhada ao meu propósito. Assim fui parar em uma agência pequena onde eu conheci a Grazi, a outra sócia da Agência Camélia, e a partir daí tudo mudou, virei empreendedora, que era uma coisa que eu nunca achei que fosse capaz, achava que não tinha nada a ver comigo, mas hoje eu percebo que estou cada vez mais próxima daquele meu desejo de quando tinha 17 anos e decidi fazer publicidade: transformar, através da comunicação, das relações, tudo o que for possível.

V.: Vocês acham que é possível e necessário amar o trabalho?

J.: Eu acho que trabalhar com o que ama é ter no trabalho um espaço de realização, é ver o trabalho como uma oportunidade de prazer na vida e não só de sobrevivência ou de obrigação, é quando o trabalho move paixões, mesmo que seja um pedaço daquilo, por exemplo: 80% do que eu faço não é exatamente aquilo que eu sonhei em fazer, mas tem 20% que me realiza, que está na minha vida como um prazer, uma coisa que me dá tesão.

E eu acho que isso tem lugar quando a gente contrapõe a lógica do trabalhar pra ser milionário, por exemplo. Se eu fosse dar uma palestra motivacional, eu diria que quanto mais dinheiro a gente ganha, mais a gente vai criando uma estrutura de vida que precisa daquele dinheiro, e uma hora você não consegue mais ver outro tipo de vida sem aquilo tudo, e aí você fica preso fazendo um negócio que você odeia, ou trabalhando num lugar que te faz mal, apenas para sustentar esse estilo de vida.

R.: E eu também acho que às vezes essa paixão pelo trabalho está no resultado que ele gera e não tanto no trabalho em si. Ver que o que você faz, seja lá o que for, gerou algum impacto positivo, pode te deixar feliz, te satisfazer.

Pra mim, amar o trabalho é muito mais sobre o que o isso causa em nós do que sobre o trabalho em si, as tarefas do dia a dia. As relações com as pessoas, as novas informações, um olhar pro diferente… tudo isso é o que alimenta o “amar o trabalho” muito mais do que a área, o segmento, seu escopo. E eu acho que é isso que precisa estar alinhado com as coisas que te fazem feliz em ser quem você é, sabe?

V.: As configurações e relações de trabalho estão mudando muito, e em várias áreas a linha que separa quem a gente é do que a gente faz é muito tênue. Na opinião de vocês, o trabalho pode nos definir?

J.: Acho que algumas vezes eu sou muito o meu trabalho, mas normalmente quando eu amo aquilo que faço, e pelo menos eu acho que isso é uma relação mais saudável entre o “profissional” e o “pessoal”. Então, se o seu trabalho é algo que você ama, e ele te coloca em contato com projetos e pessoas interessantes, como é o caso do Aldeia na minha vida, então sim, atualmente o trabalho me define. Mas eu faço questão de ter uma parte que não se encaixa, que é fora daqui, porque eu sei que a vida é mais do que isso.

Mas eu também acho que é importante saber que não é sempre assim, e nem pra sempre. Às vezes você tem um trabalho que você ama, mas passa um tempo e isso não satisfaz mais, e eu acho que precisamos estar atentos para conseguir enxergar isso e saber a hora de sair, de mudar sempre que isso for uma possibilidade.

R.: Uma coisa que eu acho muito importante é olhar pra gente. Entender o que a gente gosta e não gosta, o que nos faz bem e não faz, e como o trabalho é a maior parte do nosso dia, então se a gente olhar pra gente e entender dentro desse trabalho o que a gente gosta e o que a gente não gosta e o porquê, então acho que a gente consegue achar prazer seja lá onde for porque conseguimos identificar onde o nosso prazer está.

Eu também acho que é muito importante não entrar no automático, e como o trabalho é onde gastamos a maior parte do nosso dia, então precisamos saber olhar pra ele e questionar isso frequentemente. Por exemplo: “eu odeio o meu chefe” ou “odeio meu trabalho”, mas alguma coisa lá dentro você gosta? É o salário? Se é isso, então isso pode te deixar feliz quando você está fazendo uma escolha de estar ali pelo salário. “Ah, não é o dinheiro, não é o meu chefe, mas é aquele papo que eu bato com aquela pessoa quando eu tomo um café”, então é isso, eu escolho ir pra esse trabalho pra bater o papo com aquela pessoa, e tente olhar pra isso com mais cuidado e fazer desses momentos mais especiais, assim todo o resto pode começar a fazer mais sentido.

A gente supõe que quem está empreendendo faz isso porque teve uma sacada muito genial e que vai dar muito dinheiro, mas também existem muitas pessoas que estão empreendendo por necessidade de viver. — Roberta Ozi.

V.: O Steve Jobs disse: “A única forma de se fazer um ótimo trabalho é amar o que você faz. Se você ainda não encontrou o que é, não sossegue”. O que vocês acham de afirmações desse tipo?

Julia: Acho que vale dizer que tudo o que estamos falando sobre trabalhar com o que ama, e poder fazer essa escolha é um puta dum privilégio, e nós somos claramente privilegiadas, a gente pôde escolher, mudar, recomeçar e entrar em crise com a profissão. E pensando nas pessoas que podem fazer essa escolha, eu acho que muita gente não aproveita essa escolha como poderia, o que é uma pena, porque na minha opinião quando você trabalha com algo que ama, e mais do que isso, quando você ama aquilo que você faz, o resultado é muito melhor para a pessoa e para o mundo.

R.: E eu acho que o próprio empreendedorismo acaba reforçando muito esse tipo de pensamento. A gente supõe que quem está empreendendo faz isso porque teve uma sacada muito genial e que vai dar muito dinheiro, mas também existem muitas pessoas que estão empreendendo por necessidade de viver, criando e empreendendo porque é o único jeito de ganhar um dinheiro, porque o estão fora do mercado e foi empreendendo que encontraram um trabalho. Por isso eu acho que o próprio empreendedorismo, nessa ideia de ser algo como “eu vou fazer o que eu amo porque eu acredito muito” também pode trazer uma consequência ruim. Na minha opinião, essas frases que acabam se tornando um mantra elas podem ser verdadeiras em alguns casos, mas sorte a sua se você puder ser essa pessoa.

V.: É muito comum romantizar o trabalho, seja partindo do ponto que amar o trabalho é algo fundamental para ser uma pessoa feliz, ou seja quando você gosta do que você trabalha e espera que isso vai te fazer ser uma pessoa plena. Olhando para a vivência de vocês, quais são os desafios de trabalhar com algo que se ama?

R.: Eu vejo dois grandes desafios: o primeiro foi conseguir equilibrar o espaço do trabalho com as outras coisas, então no começo eu larguei mão de sair, dos amigos, da família. E aí chegou num ponto em que eu entendi que desequilibrou e aprender a colocar as coisas no lugar foi e ainda é um desafio diário. Acho que acaba até sendo comum dentro do empreendedorismo o trabalho virar a sua vida, então é um desafio não ser engolida pelo que você ama.

E o outro desafio foi descobrir que mesmo fazendo o que amo, tem coisas que eu não amo, e essas coisas são muito importantes para o meu trabalho. E quanto a isso não tem como fugir, acho que a gente nunca vai estar completamente realizado em tudo o que faz parte do nosso trabalho, e talvez aqui seja um lugar muito romantizado mesmo.

J.: Meu pai, que é orientador vocacional, sempre traz o exemplo das pessoas que gostam muito de bichos e vão cursar veterinária, pois é muito comum algumas dessas pessoas se frustrarem com a carreira porque o trabalho não tem a ver com o que ela imaginava. Às vezes a paixão está num lugar que a gente não imagina, e muitas vezes o mundo também não imagina, ainda mais nesse momento em que novas profissões surgem o tempo todo.

É importante saber que, quando você está em uma coisa que você ama muito, a frustração também pode ser maior, e foi isso que o teatro acabou se tornando pra mim. Com certeza foi a coisa que eu mais amei fazer na minha vida, mas, ao mesmo tempo, tomar um não num teste, ir descobrindo que talvez você seja melhor em outras coisas do que naquilo que você imaginava, isso pode ser bem frustrante.

Para expandir o assunto:

  • A crônica de Ricardo Terto, “Ninguém nasce desempregado”, que fala sobre uma realidade que é bem diferente destas que foram apresentadas no texto;
  • O episódio #199 do podcast Mamilos, “Futuro do Trabalho”, que reflete sobre as mudanças nas relações de trabalho e as novas profissões;
  • O episódio “Você não é o seu crachá”, do podcast Boa noite internet, que vai contar a história de pessoas que mudaram de emprego;
  • Essa matéria da Revista Trip, “Você é o seu trabalho?”, com a visão de diversas mulheres fodas sobre essa questão;

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