O que toca na alma

Conversas e reflexões sobre o que a música significa para cada uma de nós

Verônica Batista
agenciacamelia
10 min readAug 30, 2019

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Arte: Nina Exel

Nós últimos meses a gente compartilhou em nosso Instagram, no #MoodCamélia, algumas cantoras que gostamos muito. Fazer essa lista de mulheres artistas que nos inspiram foi também uma maneira muito prazerosa de falar sobre música e gerar essas conversas aqui dentro da agência. Isso nos permitiu refletir sobre como nós estamos ligadas à música também de um ponto de vista profissional, com dois projetos que passaram por aqui: o Portal MUD e a RAIA.

Quando a gente começou a trabalhar com esses projetos, primeiro com o Portal MUD, uma plataforma online para dançarinos — que têm desde o Museu da Dança até cursos livres, e depois com a RAIA, uma produtora musical que também faz o mapeamento de profissionais mulheres do mundo da música, fomos levadas a conhecer e entender todo esse universo de um outro ponto de vista.

“O impulso de fazer música é universal, caracteriza o ser humano assim como a linguagem, o falar “ Patrícia Vanzella

COMUNICAR O QUE SE OUVE

Conversando com a Roberta, uma das sócias da Camélia, ela disse que com esses projetos nós pudemos aprender duas coisas essenciais: “primeiro que nosso corpo é uma das ferramentas mais potentes que temos de experimentação do mundo, afinal, dançar é uma das maiores formas de liberdade. E segundo que a dança e a música são formas de contar história, ambas têm um papel político de extrema importância para a cultura e sociedade.”

Do ponto de vista da comunicação, poder criar estratégias, planejamentos e transformar arte em produto sem esvaziar sua essência é um aprendizado gigante. A Grazi, outra sócia da Camélia, contou que para ela “traduzir música e dança em identidade visual ou estratégia de comunicação é realmente uma honra. Não é porque o capital do projeto é tão conectivo que as pessoas vão se conectar instantaneamente, e se você quiser ser ouvido é necessário entender como comunicar, quando e porquê”.

AFINAL, O QUE É MÚSICA?

A música pode ser muita coisa: arte, expressão, trabalho, produto, uma vontade individual, um clamor coletivo, simplesmente música… Em entrevista ao Jornal Nexo, a pesquisadora Patrícia Vanzella, que coordena o projeto Neurociência e Música da UFABC (Universidade Federal do ABC), conta que “a música é uma coisa que a gente costuma pensar do ponto de vista das ciências humanas, como produto cultural. Mas o impulso de fazer música é universal, caracteriza o ser humano assim como a linguagem, o falar.”

“Aquela música que causa arrepio, que emociona mais, libera um neurotransmissor chamado dopamina e que está envolvido no sistema que a gente chama de recompensa, que, por sua vez, está envolvido em outros comportamentos motivadores como sexo, comida e algumas drogas”, conta a pesquisadora. Aliás, a entrevista toda é muito incrível, recomendamos a leitura.

E os estudos mais recentes têm olhado para a música como um fazer universal e inato, uma forma de expressão humana que se modificou ao longo do tempo mas que conecta pessoas em qualquer lugar do mundo. Mas, na minha opinião, cada pessoa se relaciona com a música de uma maneira diferente, e para escrever esse texto eu conversei com cada uma das mulheres que trabalham comigo aqui na Camélia e perguntei o que a música representa para elas. São experiências pessoais que se conectam com vivências históricas por meio de melodias, harmonias e ritmos.

A MÚSICA COMO COMUNICAÇÃO

Talvez uma das maneiras mais comuns de entender a música é como uma maneira de se comunicar. Quantas vezes a gente já não mandou uma música para alguém porque não sabíamos como dizer? A música também comunica o que estamos sentindo, mesmo quando (e, talvez, principalmente quando) não sabemos direito o que é. Conversando com a Nina, nossa designer, ela contou que uma das memórias mais antigas que tem é de cantar em casa:

Arte: Nina Exel

“Eu mal sabia falar e cantar já era a minha brincadeira favorita em casa. A primeira música que me lembro de cantar sem parar é “Canção da América”, do Milton Nascimento. Eu sempre ouvi os discos que minha mãe gostava e, por isso, meu gosto pela música se desenvolveu ao lado dela. Marisa Monte, Adriana Calcanhoto e até Maurício Manieri (confesso) estavam entre os CDs favoritos da minha mãe e, consequentemente, também se tornaram os meus. Até hoje, minhas músicas favoritas são aquelas que sei cantar, e quando conheço e gosto de uma nova, ouço em looping até saber a letra de cor e sentir cada verso entrar em mim. A música é, pra mim, a memória afetiva mais antiga que tenho e é esse lugar seguro onde eu me apego quando preciso lembrar de como há beleza também na tristeza que compõe esse mundão que a gente vive.”

A MÚSICA COMO MEMÓRIA

A memória é também uma relação recorrente que temos com a música, né? Os primeiros segundo de uma canção que nos transportam diretamente para uma lembrança ou um disco que nos lembra das viagens de carro em família, tem música que faz parte da trilha sonora da nossa vida. Foi isso que a Gi, nossa planejamento, contou:

Arte: Nina Exel

“Há um tempo atrás eu conheci a palavra Onism, que significa a sensação de frustração do quão pouco do mundo nós iremos experienciar. Mas não seria a música uma forma de ir pra outros lugares, outros narrativas?

Pessoalmente, a música me acompanhou em cada uma das minhas fases. Tanto das que eu efetivamente vivi quanto das que eu quis inventar. Acho que é por isso que, para mim, música é sobre memória, das que eu vivi, das que eu inventei e das que eu projeto para o futuro. Eu sinto que cada música me transporta para algum eu não explorado, me tira de quem eu sou no dia a dia e me leva pra quem eu gostaria de me tornar. Me leva para pessoas, para lugares que já estive, para lugares que quero estar, para a sala do jardim de infância, para o quarto da minha avó, para passeios no Parque da Boa Vista, para Paris, para um café em Nova York. A música é uma memória que me leva pro futuro. Criação de realidade que fala, né?”

A MÚSICA COMO EXPRESSÃO INDIVIDUAL

Então se a música nos ajuda a criar a realidade, também pode nos ajudar a entender quem somos, o que gostamos, o que queremos. Pelo menos foi assim pra Ju, nossa também designer e, diga-se de passagem, uma dançarina nata:

Arte: Nina Exel

“Eu lembro da música ter sido o meu primeiro passo para uma construção própria. Quando a gente é criança, tudo é muito novo e somos influenciados o tempo todo por tudo — e com a música não é diferente. Minha mãe ouve muito MPB e também Sarah Brightman, Andrea Bocceli e Josh Groban — um mix de clássico com pop-estilo-mãe, sabe? Já o meu pai tem uma relação distante com música, sempre foi algo pra ouvir apenas em viagens longas. E meu padrasto tem uma conexão mais profunda com a música, apesar de um pouco rígida — algumas bandas eram intocáveis como Rolling Stones e Supertramp, bandas que, por sinal, eu amo até hoje.

E no meio de tudo isso, eu não lembro bem como, descobri os Beatles, que por muito muito tempo foi a minha banda favorita. Comprei todos os álbuns, um box com 10 DVDs de um documentário extensíssimo sobre eles, fui ouvir a carreira solo de cada um, definir o meu Beatle preferido, etc. E foi a partir disso que consegui parar e pensar ‘Tá, eu escutei muito todas essas bandas, mas o que eu posso escolher continuar ouvindo a partir de agora?’, e com essa curiosidade e vontade de descobrir que eu cheguei em outros lugares, tive outras trocas, reparei que música é uma construção tremenda, tão excêntrica e que pode nos levar a novas coisas, sempre. Foi a primeira vez que descobri uma coisa sozinha e senti aquele quentinho no fundo do peito que significava ‘uau, isso é meu. Isso aqui sou eu’. Foi um primeiro sinal de independência da minha personalidade, como eu acho que acaba sendo pra muita gente.”

“A música é uma possibilidade de viagem no tempo” Grazi Shimizu

A MÚSICA COMO CONEXÃO

Quando a gente se entende um pouco melhor pode ficar mais fácil criar conexões com o outro, e a música, mais uma vez, entra nessa dança. Para a Grazi, sócia da Camélia, as canções ajudam a construir essas pontes entre o eu e o outro:

Arte: Nina Exel

“Quando eu era adolescente descobri que gostar das mesmas músicas fazia com que as pessoas se identificassem e andassem em grupos — e eu, que sempre busquei pertencer, acabei gostando de um monte de coisa meio estranha para pertencer, e isso possibilitou que eu interagisse com muita gente estranha e ótima. Já na faculdade tive a oportunidade de encontrar pessoas que amam música acima de quase tudo, e isso acabou, mais do que nunca, sendo um ponto de conexão entre as pessoas e eu. E essas relações foram muito sobre ouvir música juntos, conhecer coisas novas, descobrir novos gostos, e eu posso dizer que a música foi o que uniu os amigos que levo até hoje.

Acho que o que eu mais amo na música é a capacidade dela conectar uma sensação, uma cor, uma emoção a uma memória, e de com ela você poder resgatar tudo isso junto, seja bom ou ruim. Para mim, a música é uma possibilidade de viagem no tempo, tanto para o passado quanto para o futuro (às vezes, ouço uma música pela primeira vez e consigo me sentir no futuro ouvindo aquela música de novo e de novo, amo muito essa sensação). Em resumo: para mim, música é a possibilidade de manipulação e expansão do espaço-tempo.”

A MÚSICA COMO TERAPIA

Se conectar com os outros, com a gente mesma, com nosso passado e com nossos sentimentos é de um potencial transformador, e é por isso que entendo que a música também pode ser terapêutica de alguma forma. Foi sobre isso que a Ro, sócia da Camélia, falou:

Arte: Nina Exel

“A minha relação com a música é visceral. Para mim, ela é uma ferramenta de linguagem e de elaboração. Eu me relaciono através da música. Tenho o trecho de um tango tatuado nas costas. O tango que cresci ouvindo na casa do meu avô, o tango que tocava no filme preferido dele que assistimos todos os finais de semana juntos. Um tango que me leva de volta para o acolhimento e para memórias deliciosas do meu avô dançando tango de forma tão charmosa e encantadora, o quanto ele se entregava naquele momento. Quando ele faleceu, eu tatuei o trecho desse tango. O trecho que sempre me leva de volta para o colo dele, para a casa dele, para a voz dele e para as falas, conselhos e aprendizados que ele segue me dando. Eu cresci ouvindo vários tangos com ele, e é até engraçado porque acho que eu era a única menina de 20 e poucos anos que tinha um CD de tango no carro e colocava a todo volume quando estava muito feliz ou muito triste. Essa música move tudo dentro de mim.

Então, para mim, a música também funciona como uma ferramenta terapêutica. Tem algumas músicas específicas que nunca vou deixar de ouvir porque são elas que me trazem de volta para mim mesma, para dentro de mim, para as minhas feridas. E independentemente do momento que estou vivendo, da minha idade, dos problemas que estou passando, são essas músicas — as mesmas desde sempre — que me ajudam a elaborar meus processos.”

A MÚSICA COMO SENTIR

E então conversei com todas essas mulheres sobre suas relações com a música e, inevitavelmente, acabei olhando para minha história. Sempre que alguém me pergunta sobre a minha relação com música eu tenho respondido que não sou muito ligada a esse assunto, afinal, eu não conheço os principais discos ou maiores nomes da música brasileira, também não sei o nome dos integrantes das bandas que escuto, nunca sei que o artista X vai fazer show e menos ainda entender a diferença entre indie e new rock, ou entre qualquer estilo musical. Desde que saí da adolescência eu deixei de ter uma banda preferida e realmente gosto muito muito muito mesmo do silêncio. Eu gosto de fazer faxina em silêncio, de andar na rua ouvindo o barulho ao redor, de viajar de carro ouvindo o som do vento, trabalhar ouvindo só os meus pensamentos.

Mas aí eu tive que escrever esse texto e descobri que a história que eu tava contando pra mim mesma e pros outros era só uma parte da história toda. É verdade tudo isso que falei, mas também é verdade que eu cresci com o rádio de casa ligado na Nova Brasil FM ou na Kiss. É verdade que a coisa que eu mais amo na vida é ir em show e ver uma banda tocar. Assim como é verdade que eu sou uma grande fã de dançar um rockzinho ou um sambinha ou um mpbzinho ou qualquer coisa que não exija tanto molejo e coordenação motora.

Arte: Nina Exel

E aí que eu percebi que tenho, sim, uma trilha sonora da minha vida, e que várias músicas que escuto e me transportam diretamente para alguma lembrança lá longe, e eu, que choro fácil fácil, não consigo ouvir “Boa Esperança”, do Emicida ou “I don’t want to miss a thing”, do Aerosmith, sem deixar cair uma lágrima. Então assim, acho que na verdade eu sou muito ligada à música, e justamente naquilo que mais tenho dificuldade de me conectar, que é com a emoção livre, os sentimentos soltos e a racionalização em suspensão. A música é esse meu lugar do não-pensar, meu lugarzinho precioso do sentir, e só.

E se você quiser sentir um pouco, se conectar, se expressar, refletir, enfim… fizemos uma playlist no Spotify com todas as mulheres que indicamos no #MoodCamelia:

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