Palavras do isolamento: Agora

Ou aquilo que fica martelando no ritmo do relógio

Verônica Batista
agenciacamelia
2 min readJul 15, 2020

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Aquele relógio na parede não tinha nada a ver com a decoração meio industrial meio hipster meio rural do apartamento novo. Piso de taco, janelas amplas, um armário de metal preto e plantas espalhadas, seguindo tintim por tintim daquelas pastas cheias de referências de decoração. A única coisa que não veio das tantas pastas foi o relógio: quadrado, em molduras gigantes, ornamentadas e douradas, com uma cena bucólica e amarelada ao fundo.

Os ponteiros, também dourados, adornados e quase integralmente descascados são o toque final da triste decadência, principalmente considerando que eles não funcionam e que o ponteiro dos segundos fica se chacoalhando no mesmo lugar. Não há pilha AA que mude isso, é como se ele se negasse a sair do agora para viver em eterno protesto ao futuro, ancorado no mesmo instante 24 horas por dia, com pequenos solavancos que até parecem criar algum movimento, mas em vão.

O velho relógio de parede quebrado é a única coisa que ela tem da avó. Não que a avó tivesse muitas heranças para distribuir, mas a neta evitou a todo o custo a ridícula briga familiar por quinquilharias sem valor, pegando para si aquilo que nenhum outro primo ou tio quis. Levou o relógio pra casa, tirou a poeira da moldura e colocou pilhas novas, sem muito se importar com a vontade própria dos ponteiros. Pregou o objeto entre jiboias, um espelho e o quadro daquela artista descolada que vendia suas obras na rua na época em que a arte podia ir às ruas.

Ela gostava de gastar as horas vendo o ponteiro balançar no mesmo lugar, lembrava-se da teimosia da avó em atrasar o máximo que pôde o destino inevitável, balançando decadente no mesmo presente interminável.

A avó não tinha pressa do futuro, a neta também não. Talvez sentisse um amedrontamento, ou, quem sabe, um orgulhoso desdém. Se pudesse, seria como o ponteiro dos segundos, presa no agora com toda a poeira, decadência e aversão às pilhas novas. Se pudesse, viveria apenas agarrada eternamente nesse instante.

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