Palavras do isolamento: Confusão

Quando os sonhos ultrapassam as noites e costuram os dias

Verônica Batista
agenciacamelia
3 min readJul 17, 2020

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Sexta-feira, dezessete de julho de dois mil e quantos, mesmo? Hoje está um dia frio e nublado, típico do início do inverno por aqui. Se bem que já não sei mais quando começam as estações do ano, ou se é que elas ainda existem, tudo parece tão igual. Eu trabalhava numa livraria que foi transportada inteira, de navio, tal qual uma peça de lego, para o outro lado do Atlântico. No meu sonho, digo. Mas aí a livraria virou um trem, não sei exatamente como, nem se era mesmo um trem, as lembranças dos sonhos estão muito confusas e não tenho certeza se sonhei ou se aconteceu. Não me lembro mais quando essa situação começou e já não consigo confiar nessas páginas matinais para me guiar no trajeto de lucidez. Talvez eu devesse desenhar ao invés de tentar escrever, imitar os grandes nomes do surrealismo. Li em algum lugar que Frida Kahlo, quando expôs pela primeira vez na Europa, foi chamada de surrealista, logo ela que fazia autorretratos e pintava a realidade latinoamericana. Quando a realidade é esse surrealismo todo, era de se esperar que os sonhos fossem outra coisa? Mas o problema da escrita é que ela pressupõe a linearidade, letra após letra, sílaba após sílaba, palavra após palavra, e não se esqueça das vírgulas e pontos finais. Cada coisa tem seu lugar e eu não sei mais onde estou. Acho que contava sobre o sonho dessa noite, uma confusão sem fim. No trem que atravessa o Atlântico de barco estava eu trabalhando vendendo livros, nem em sonhos tenho descanso, nem ali as palavras deixam de me perseguir, nesta noite em particular fizeram complô com as cores vivas que me fazem sentir moribunda. Escuto um carro passar longe, na avenida, rasgando o silêncio das manhãs e calando até mesmo as maritacas. Há quantos dias não passa um veículo sequer? Penso se o carro, no meio do caminho, virou um ônibus, ou talvez um trem ou até mesmo um avião. Não é de hoje que uma coisa vira outra bem na nossa frente e a gente nem se espanta mais. Sinto o vento gelado tocar meu rosto, salgado e com cheiro de fumaça, como uma tentativa de me acordar sutil e determinadamente. Esses dias foi aniversário de Frida. Ela me disse que pintava a si mesma porque era o assunto que conhecia melhor. Queria também me conhecer bem o bastante para escrever linhas coesas, para sonhar sonhos brandos e me encontrar em meio à confusão. Mas não sei que ano estou vivendo ou qual sonho sonhei noite passada. Pelo que me lembro, a livraria desembarcou noutro continente, e meus livros falavam, andavam e imploravam para serem lidos. Não sei se antes ou depois desta viagem alguém atendeu ao chamado, abriu um livro e foi engolido pelas páginas, uma imagem viva, vermelha e com odor violento do sangue que rasgou minhas narinas e acordou-me num pulo. Bebi água, também salgada, enquanto via a paisagem passar rápida pela janela do trem-navio. Voltei a dormir com pressa pois tenho um encontro marcado com Frida, foi aniversário dela e teremos festa surrealista.

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