Palavras do isolamento: Nuance

O delicado limite entre o terror e o alívio em se mudar

Graziele Shimizu
agenciacamelia
3 min readJul 22, 2020

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Em torno de sua cabeça, uma revoada de pássaros tornava-se cada vez maior. As asas batiam cada vez mais próximas de seu rosto e o som se amplificava a cada momento. Fixou o olhar no sol tentando se distrair do pavor de que aquelas aves entrassem uma a uma pelo seus ouvidos e cantassem eternamente dentro de seu crânio. Sentou-se num único e repentino movimento, abriu os olhos, fechou ainda sem respirar e se jogou de volta no travesseiro: pelo quarto dia seguido despertava de um pesadelo hitchcockiano sem nunca ter assistido a qualquer um de seus filmes.

O terror das manhãs não era coisa nova. Desde que se mudou para o centro da cidade, logo no comecinho da quarentena, todo dia era assim: acordar de assalto, coração na boca, os pulmões subitamente inflados. Com o dia já claro, geralmente despertava de sonhos em que motos buzinam sem parar, como se o som fosse um feitiço que pudesse espremê-las ainda mais nos minúsculos espaços entre os carros; de madrugada, era comum seus sonhos incorporarem os gritos vindos da rua, como o da mulher que certa noite esgoelava ‘Maria! Maria!’ tão alto que, por alguns instantes oníricos, a fez duvidar do próprio nome. Seria ela própria a Maria escondida nessa caixa de concreto, como andava fazendo com tudo e todos, para nunca mais ser encontrada?

Se antes da pandemia já era de poucos amigos, estava certa que após esse período não sobraria nenhum. Bateu recorde: mais de 50 mensagens não lidas no Whatsapp. No fim de semana havia decidido responder todas, queria começar a semana zerada de pendências, mas o único retorno que deu foi a uma amiga, ignorando o conteúdo da mensagem original e mandando de volta um imenso devaneio sobre como conversar virtualmente é uma merda. Chegou a abrir a pasta de figurinhas pra mandar um foda-se ilustrado e cínico como resposta à mulher do curso online de modelo vivo, único contato que tinha com pessoas ultimamente, explicando longa e prolixamente o porquê não devemos usar o termo ‘pandemia mundial’, que é pleonasmo, que pandemia já se trata de uma epidemia mundial. Desistiu. Criar conflitos em meio a uma pandemia era tão descabido quanto o ‘oi, tudo bem?’ que tanta gente insistia em colocar no começo de suas mensagens em meio a um isolamento interminável.

Se nunca antes havia mandado um foda-se, não era agora que começaria, ainda que desejasse profundamente ser outra pessoa, ser aquela que enviaria a figurinha sem pensar duas vezes. Naquele apartamento cercado de tanto e preenchido por tão pouco, diferenciar os sonhos da realidade, o tédio da solidão, o desejo de mudar completamente quem era da simples vontade de mandar todo mundo se foder vinha sendo tarefa custosa demais. Quatro dias antes havia lido no Twitter que o som que te acorda pode mudar o seu humor, e quis muito isso, mudar o humor, transformar seus dias, transmutar-se por completo. Disse sim aos 140 caracteres, ouviu as mais de 30 opções disponíveis em seu celular, uma a uma, até que escolheu aquele toque que converteria seus pesadelos motociclísticos em um grande terror cinematográfico. Não se arrependia: grandes mudanças começam com pequenas atitudes, e trocar o alarme pelo som dos pássaros haveria de, em algum momento, se mostrar uma imensa transformação.

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