Palavras do isolamento: Presença

Um exercício de presença em dois prefácios e dois primeiros capítulos

Graziele Shimizu
agenciacamelia
4 min readJul 7, 2020

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…e foi incrível passar o fim de semana assim, visitando um lugar desconhecido, ouvindo e pensando sobre o que todas aquelas pessoas conversavam, realmente me senti em uma viagem”. Sentou na cama lembrando das palavras da amiga, cobriu as pernas, inspirou por 4 segundos, segurou por 7, soltou o ar por 8, abriu o livro.

Prefácio
“Será que alguém lê o prefácio antes de começar a história?” De alguma forma sentia aquilo como uma barreira entre ela e toda a jornada que estava nas páginas logo à frente. Sempre meio informativo, meio opinativo, meio histórico… qual o ponto de saber todas essas informações antes de mergulhar em uma nova viagem? Se bem que pesquisar um pouco mais sobre o destino tornava as viagens de fato melhores. Mas o prefácio não, não era preparação nenhuma, viajar em uma história contada não era como uma ao vivo e a cores. Aliás, era bem diferente. Ninguém senta no chão do quarto dobrando as peças de roupa cuidadosamente e colocando na mala antes de viajar pelo Grande Sertão Veredas ou pela Tetralogia Napolitana. Decidiu-se: o prefácio seria como um posfácio, leria depois de terminar a grande aventura que estava prestes a começar.

Capítulo 1
Pensando bem, ela mesma não sentava no chão ou dobrava cuidadosamente nada antes de viajar. Desde que saiu da cidade dos pais, arrumar a mala para encontrá-los era quase uma gincana, só que não divertida. Chegava do trabalho correndo, enfiava tudo na mala, de qualquer jeito, uma jaqueta, duas calças, quatro blusinhas, as calcinhas que estivessem limpas, um sapato pra sair, um pra ficar em casa — que nunca usava -, fechava a mala, enfiava carregador, maquiagem e remédios na bolsa de mão, apagava as luzes e saia correndo de novo. No caminho pra rodoviária, toda vez o mesmo enredo: ia rezando pro ônibus ser aqueles com entrada pro carregador, celular estava sempre sem bateria e, obviamente, nunca pegava o livro que havia prometido pra si mesma que leria no caminho. Aliás, onde estava mesmo no livro? Leu quatro páginas e absolutamente nenhuma palavra se fixou em sua memória. Recomeçou.

Capítulo 1
Talvez fosse a poeira que a atrapalhava. Já fazia 10 meses que esse livro estava ali, na cabeceira da sua cama. Toda vez que limpava a casa era a mesma dúvida: como que tira poeira de livro? Pano úmido no papel? A capa é um pouco plastificada, mas e a parte de cima? Pano úmido direto nas páginas? Acabava deixando pra lá, a poeira e o livro. Mas aquele tanto de poeira, 10 meses talvez fosse pouco. Fazia mais de um ano, tinha certeza. Ou fazia 3 meses? A passagem do tempo parecia fazer cada vez menos sentido. Há quanto tempo não socava tudo na mala para ver seus pais? Lembrou: fazia mais de um ano que o livro estava ali, comprou junto com o presente da mãe no Natal retrasado, um livro com perguntas para a mãe responder, contar a própria história, e depois devolver para ela. Aquele livro tinha certeza que leria. O que estava em suas mãos também, havia se comprometido consigo mesma. Talvez fizesse sentido ler o prefácio antes, entrar na história de quem contou a história, no contexto da autora. Voltou algumas páginas.

Prefácio
Talvez se fizesse algum dos exercícios de presença que recebeu do amigo todo espiritualizado conseguisse entrar nessa história. Fechou os olhos, prestou atenção na respiração, voltou a atenção para o corpo, tentou perceber cada parte, o couro cabeludo, o rosto, pescoço, costas, bunda, pernas, pés. Qual o sentido de estar presente nos pés se a viagem que faria aconteceria na imaginação? Aliás, aconteceu na imaginação da autora, mas e nela, onde a viagem se daria? Na mente? Na cabeça? Toda a realidade atualmente parecia acontecer ali, entre o couro cabeludo e o pescoço, ao mesmo tempo em que o corpo doía como nunca. O corpo sentia mais falta de estar presente na realidade ou de sentir ela mesma presente no próprio corpo? Talvez a série de alongamentos que viu alguém indicar ajudasse a voltar pro presente e, enfim, entrar na história do livro. Levanta, devolve o livro pro móvel onde fica há mais de um ano, senta no chão, inspira por 4 segundos, segura por 7, solta o ar por 8, “estou pronta”. Como que era mesmo a sequência? Primeiro alonga pescoço ou braços? Quem foi mesmo que indicou essa série? Se estica, alcança o celular, abre o Instagram. Quatro mensagens não lidas. “Melhor responder depois para não perder o foco”. Mal piscou, cinco mensagens não lidas. “Bom, melhor responder agora, depois faço o alongamento. Me viram online, sabem que tô aqui, presente”.

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