Todo desenho é o registro de um gesto

Uma entrevista com Helena Obersteiner sobre seu curso de Desenhos Feios

Julia Coppa
agenciacamelia
6 min readJun 7, 2019

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A palavra “desenho” parece carregar o peso de uma construção fechada: ideia, rascunho e projeto final. Mas nós, Camélias, gostamos de olhar tudo um pouco mais de perto e se possível com a cabeça inclinada ou em alguma outra perspectiva inusitada — e foi isso que eu, Julia, encontrei no curso “Desenhos Feios” da Helena Obersteiner.

Exercícios como desenhos cegos (sem olhar para o papel), autorretrato a partir apenas do toque, experimentar novas posições corporais, desenhar de pé, desenhar com um cabo de vassoura, desenhar segurando o lápis com a mão esquerda — para quem é destro, como eu, — com as duas mãos, com um lápis em cada mão — esses são alguns dos exercícios que Helena apresenta no curso, todos baseados em desenho de observação.

Poder olhar para arte como algo presente na vida de toda e qualquer pessoa é primordial para iniciar esse processo de desconstrução. “Meu pai pintava, eu tenho uma relação com a pintura bastante familiar, de casa, de chegar em casa e ter gente desenhando, modelo vivo, gente pelada na sala, eu morria de vergonha” conta Andrea Pizzutiello, uma das alunas da turma, “depois cheguei a estudar cerâmica, escultura. Porém, durante muitos anos isso ficou adormecido na minha vida”. Foi a partir da oficina de modelo vivo que Helena ministrava no CCSP que Andrea conheceu seu trabalho. “Eu fui em uma das oficinas e foi muito legal, era parte da proposta e da visão de trabalho dela, ter desenho cego, esses desafios da percepção e da expressão”.

Exercícios desenvolvidos durante o curso

Com a proposta de reeducar nosso olhar para o que nós realmente enxergamos e aprender a entender como cada um de nós filtra a imagem de uma forma única e original, o curso nos desafia a desapegar dos conceitos formais de belo ou correto e a destruir padrões que criamos dentro do nosso processo de criação. Para entender um pouco mais sobre toda essa abordagem, conversei com a Helena para que ela apresentasse ainda mais o curso e o que a guiou até aqui.

“Talento é uma das palavras que precisamos tomar super cuidado, igual a palavra inspiração […] São palavras que acabam colocando a criação num patamar mágico” — Helena Obersteiner

Julia: O que você acha do conceito “talento”?

Helena: Talento é uma das palavras que precisamos tomar super cuidado quando estamos falando de algo relacionado à criação. Igual a palavra inspiração, eu acredito que elas acabam servindo mais para idealizar um tipo de trabalho e camuflar toda a pesquisa e o esforço que está por trás do que a gente produz. São palavras que acabam colocando a criação num patamar mágico do “nasci com talento”, “estou inspirada hoje” — isso produz muito mais uma paralisação no criador, porque ele acredita nisso, que ele pode alcançar isso algum dia, e também serve pra colocar a criação criativa num lugar de não-trabalho, de não-esforço, como se fosse algo divino, um dom.

Isso é uma pegadinha porque faz as pessoas que estão buscando esse caminho se sentirem frustradas por não alcançarem o que interessa a elas logo de cara e faz os outros não considerarem trabalho, um trabalho diário, uma construção de uma identidade.

J.: Como surgiu a ideia pro curso?

H.: Veio muito de uma vontade de dividir a minha pesquisa, quando a gente dá aula a gente aprende muito. Eu queria trocar esse conhecimento e transformar isso num trabalho. Mas a ideia do curso em si também veio dessa parada dos haters no instagram. Tem muito tempo que desenho é o ponto central da minha pesquisa, e compartilhando ele para um grande número de pessoas nas redes sociais eu comecei a perceber que tinha um tom provocador, porque as pessoas estavam ficando muito incomodadas e muito bravas com o tipo de registro visual que eu estava propondo e que isso começou a ganhar reconhecimento, então percebi que nesse lugar existe uma potência de discussão.

J.: Fale um pouco sobre o feio ser considerado uma tendência hoje

H.: Eu acredito em tendência não como um conceito relacionado a um produto final, mas sim um vetor. Ela funciona como uma direção de comportamento, então pra gente entender porque que existem pessoas que estão se interessando por um tipo de registro diferente, como no caso da matéria do Nexo, é preciso olhar para uma macro estrutura e entender quais são as movimentação sociais que estão fazendo com que as pessoas busquem esse tipo de estética — pensar que o desenho em si é uma tendência acredito que seja um entendimento raso, a gente precisa ir além disso, entender porque as pessoas estão buscando esse tipo de de registo visual e também porque isso causa um transtorno. Isso reflete bastante o que está acontecendo socialmente, esses embates, por um lado eu acredito em uma movimentação muito grande que extrapola essa questão do desenho e que diz respeito à identidade única de cada um — valorizar as características particulares que não correspondem à idealização que cada um traz, seja no seu corpo, no seu trabalho, a gente está num momento de ruptura com esses paradigmas e ao mesmo tempo temos uma grande resistência a isso — como quando eu conto pra você essa história dos haters no Instagram. Então é um movimento muito maior, existe uma movimentação que tá começando a valorizar o particular, o que não é idealizado, o que é de cada um e é isso que eu tento trazer no curso.

J.: Durante o curso você abordou várias teorias que embasam as atividades e também falou um pouco sobre a pesquisa que tem feito. Como foi relacionar essas duas coisas em aula, teoria e prática?

H.: Propor um curso de desenho prático e ainda um desenho de observação é um método para buscar essa autonomia, é um método humilde, muito transformador, mas humilde em relação a esses conceitos que são tão amplos, tão grandes e tão potentes. Acredito muito na importância de concretizar, trazer pra materialidade esse tipo de discussão, porque é dentro dessa vivência do pensamento e do corpo que a gente interioriza, que a gente se transforma.

Isso acaba voltando na questão do porque as pessoas buscam o feio — o feio nada mais é do que a ruptura de uma idealização e de um paradigma que foi estabelecido e que é provocador.

Ilustração: Helena Obersteiner

Entender o lugar do feio pode ser o primeiro passo para iniciar essa jornada de desconstrução, e essa movimentação se estende para diversas esferas, inclusive dentro do design, uma área tão facilmente conectada somente a função. Para entender mais sobre isso, vocês podem ouvir o podcast do Polígono sobre “O Feio no Design”.

“Ter uma sensação de desconforto com a produção […] abre espaço pra mente” — Andrea Pizzutiello

“Esse foi o maior desafio, sair do padrão, sair e se permitir estar fora do padrão. De repente ter uma sensação de desconforto com a produção, com o não-controle da produção, não poder olhar pro papel. Essas coisas todas foram muito incríveis e abrem espaço pra mente, pra percepção, acho sensacional” complementa Andrea.

O curso inteiro carrega essa mensagem de autoconhecimento, tem uma ênfase bem psicológica e nos faz refletir como tudo, tudo o que a gente faz é resultado da nossa vida inteira, de todos os tipos de cargas e de todos os contextos que nos inserimos e isso, sim, é um processo extremamente individual e rico que vale a pena ser explorado.

Convido todas a criar esse olhar não só generoso, mas também atencioso com cada gesto nosso — seja ele aplicado a um desenho ou não.

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