Eu conheço quem planta o que está no meu prato

A Horta
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10 min readJul 21, 2021

O projeto de extensão “Quem produz comida de verdade: histórias de vida na agricultura familiar na região serrana do Vale do Paraíba” começa na feira do município de Miguel Pereira, na região serrana do Rio de Janeiro. O projeto é realizado por docentes e estudantes do curso de jornalismo da UFRRJ que recolhem histórias de vida e de trabalho dos agricultores e agricultoras do município e transformam esses relatos em perfis jornalísticos. O objetivo é criar um acervo de memória das pessoas que têm a vida rural como um modo de vida, talvez o único possível para muitos deles. O relato que compartilhamos aqui é fruto do olhar extensionista, do olhar jornalístico e da nossa vivência enquanto consumidoras e frequentadoras da feira.

A vivência na feira nos mostra que este espaço é o início de um vasto repertório de histórias de vida, posto que não é só um lugar que se vai para comprar a comida. A feira é um lugar de cultivo de amizades através do alimento onde a comida vira um laço entre quem produz e vende e quem compra e consome. Na relação gestada, semanalmente, entre consumidores e agricultores, aprendemos que o alimento que chega nas nossas mesas é fruto do trabalho de alguém que acordou cedo, botou a mão na terra, plantou, cuidou, colheu. Quando a gente pode apertar a mão e olhar nos olhos de quem produz o alimento que comemos, a mágica se faz e temos a oportunidade de mudar nossa relação com o que consumimos. Tem um encanto especial trocar algumas ideias, saber como são produzidos os queijos, quando foram plantadas as verduras que estão sendo vendidas, saber se é época disso ou daquilo, perguntar o que é algo que nunca vimos, pra que serve e como se faz, trocar uma receita de preparo daquele alimento. A feira não tem a monotonia e a frieza estética de um supermercado onde tudo está onde sempre esteve. A feira é colorida e ensolarada, cada dia tem uma novidade, tem prova de doce, tem negociação de preço, tem piada e provocações; tem fofoca boa e tem cobrança, tem vida circulando.

-Acabou a banana ouro?

- Acabou. Você chegou muito tarde.

Da antiga Estação a feira atravessou a rua e foi para o Espaço do Agricultor em julho de 2021. A mudança se torna evidente quando observamos o conforto do novo espaço, no entanto, incorporamos no trabalho de extensão a observação das mudanças deste novo espaço nas relações entre feirantes e consumidores.

Maíra e Matheus moram no município vizinho de Paty do Alferes e frequentam a Feira de Miguel Pereira em busca de produtos produzidos localmente e sem venenos, mas também gostam do ambiente da feira, pois lá eles cultivam outras relações para além do consumo. Matheus destaca que a relação com os agricultores vai além dos produtos que compram, eles trocam mudas e sementes e dicas de cultivo que levam direto para o sítio onde moram. Segundo Maíra é importante entender os desafios do dia a dia dos agricultores “porque às vezes a gente compra algo que gosta e no outro dia não tem mais, aí já abre espaço pra entender como funcionam os processos de produção. É uma troca muito rica porque muitas vezes a gente não faz ideia de tudo que está envolvido na produção de um alimento.”

O casal também ficou bastante animado com o convite que recebeu para visitar o sítio de Cleusa que é agricultora e mora em Paty, assim como eles.

Agricultura Familiar e família na feira

Cleusa

Nem a máscara esconde o sorriso de quem ama o seu trabalho. Cleusa leva seus produtos para a feira aos sábados e domingos, mas para que tudo esteja perfeito ela passa a semana trabalhando no sítio e na cozinha.

Cleusa levanta cedo para cuidar dos canteiros de hortaliças, tira os matinhos, molha as plantas e quando colhe já separa algumas mais vistosas para clientes que tem gosto especial. Essa história quem me contou foi o Geraldo, companheiro dela enquanto eu tirava algumas fotos da banca que ela mantém aos sábados no espaço do agricultor em Miguel Pereira. Esse tratamento especial é uma forma de agradecer pela preferência, de cultivar uma amizade que é construída aos sábados e domingos. Se engana quem pensa que todos os clientes são iguais. Não são. Tem cliente que compra e segue em frente e tem cliente que gosta de compartilhar uma boa conversa, que elogia e valoriza tanto o produto quanto a amizade.

Um casal se aproxima da banca de Cleusa e pergunta se o conteúdo dos vidros é goiabada. Se espantam quando ela diz que é molho de tomate. Eles estão impressionados com a cor do produto e perguntam como ela faz. Cleusa aproveita para contar um pouco do processo e para enfatizar que não tem nenhum tempero artificial e que o molho leva muito tempo cozinhando e encorpando no fogão à lenha.

Além das verduras e dos molhos, ela vende bolos e doces. Os molhos feitos por Cleusa são produzidos com os tomates tipo italiano que são colhidos na região e se tornaram uma marca da agricultura local. Se a lida com as verduras e legumes ela faz entre segunda e quarta-feira, às quintas e sextas são reservadas para fazer, molhos, temperos, pães e bolos e para colher as verduras para que cheguem bem frescas na feira. Como se vê, a produção dos agricultores é bem mais variada e a feira é um espaço onde toda essa diversidade é visível. Quando os clientes se afastam, Cleusa me conta que em uma ocasião tentou uma nova receita de molho incorporando as sementes e as cascas do tomate, mas como não ficou satisfeita com o resultado preferiu não levar o produto para a feira pois preza pelo padrão dos alimentos que oferece aos consumidores.

Aurelino e Patrícia

O casal Aurelino e Patrícia vende as melhores bananas e dá os abraços mais apertados, que em tempos de pandemia são trocados por cumprimentos alternativos.

Na banca de Aurelino e Patrícia sempre podemos compartilhar uma boa conversa sobre o mel, a colheita do palmito amargo e o feijão vermelho que está bem fresquinho. Segundo Patrícia, nem carece de panela de pressão. Ela segue dando a receita de um tempero caprichado no alho e um pedacinho de linguiça refogados na banha de porco. Patrícia, que só cozinha com banha, sempre me leva de presente um vidro de gordura fresca quando eles abatem um porco. Patrícia e Aurelino valorizam cada alimento que cultivam, aproveitam tudo o que plantam e consomem muito pouco de fora de seu sítio. Gostam da roça, de preparar o café com caldo de cana e broa de milho no fogão à lenha. Aurelino gosta de conversar e contar as histórias sobre o “tempo dos antigos”. Aproveita para valorizar seus produtos por serem produzidos de forma tradicional, sem veneno, com adubo natural de esterco dos bichos e compostagem. Patrícia é a mulher das receitas e sempre ensina com dedicação a sua forma de preparar cada produto que vende. Mas o casal também conta muito sobre a dureza do trabalho na roça e destaca que com o preço do combustível fica cada vez mais caro se deslocar entre o distrito de Vera Cruz e o centro da cidade, onde está localizada a feira. Eles passam a semana no sítio ocupados com os cuidados com as criações e com as plantações. Quinta e sexta são os dias de colher e organizar os produtos nas caixas para levar para a Feira que eles fazem no sábado e no domingo. A variedade de produtos na banca deles é impressionante e mostra o tanto de trabalho que é necessário dedicar para que estes alimentos cheguem nas nossas mesas.

Um senhor se aproxima já com o celular na mão mostrando que conseguiu colher algumas batatas doces. A conversa se desenrola e percebo que eles trocaram algumas ramas de batata doce roxa, mas enquanto Aurelino colheu sacos e mais sacos, o senhor só conseguiu fazer vingar um punhado de batatas.
Patricia compartilha sua receita de preparo de fava com uma cliente.

Família Pimenta — Três gerações de feira

Seu Manoel

Seu Manoel só faz feira aos domingos e tem clientes cativos. Alguns fregueses são veranistas e compram os produtos para levar para suas casas no Rio de Janeiro.

Ele tem lugar cativo há 24 anos na feira com os produtos de sua plantação: verduras, bananas, queijos, frutas variadas. A relação dele com a terra é desde sempre, com sete anos ajudava os pais no sítio localizado no Vale das Princesas, em Miguel Pereira, onde vive até hoje. Seu Manoel é um dos filhos que continuou com a agricultura. A família é numerosa e ele, que carrega o nome do pai, tem nove irmãos e irmãs. Uma parte deles vive da agricultura. Manoel e sua esposa plantam banana, verduras e frutas, criam gado de onde tiram o leite para fazer o queijo, com uma receita de família. O cultivo é feito apenas para ser vendido na feira aos domingos. Seu Manoel é um dos poucos feirantes que só vai aos domingos. Perguntei porque escolheu esse dia e ele responde que tem clientes que só vão aos domingos em busca dos seus produtos.

O dia começa cedo: entre 4h30 e 5 horas já está de pé. A primeira parada é o curral, depois, os cuidados com a chácara e o capim que serve de alimento para as vacas. O segredo para dar conta de tudo, nas palavras de seu Manoel é “ter boa cabeça, boa vontade e trabalhar, arregaçar as mangas e trabalhar”.

No domingo, muita gente para pra conversar com ele. Marília Danon, por exemplo, conhece a família Pimenta desde que era criança, seus pais, médicos na cidade, já compravam com os Pimenta desde quando a família tinha uma venda na Praça da Ponte. Hoje, os irmãos Maria de Fátima, Armindo, Tereza e Manoel se revezam na feira aos sábados e domingos. Com eles, Marília troca receitas, pega produtos que seriam jogados fora, como a casca de cebola que pegou com seu Manoel e transformou em tintura para pintar tecidos. “No Natal levei biscoitos pra ele e ele me contou de uma cliente que fez biscoito de casca de limão com os limões que ele cultiva”.

Fatinha

A banca de flores da Fatinha colore e enfeita os sábados da feira.

Fatinha traz mudas, flores de várias espécies, ensina como manter as flores em casa, dá dicas para as plantas, sabe o gosto dos clientes assíduos e sempre enfeita o buquê com um algo mais. Aprendeu com o pai e com a prática, como ela diz. As mãos ágeis vão compondo os buquês enquanto ela dá dicas de como fazer os arranjos durarem mais tempo. Quando a banca de flores está muito movimentada, o irmão, Armindo, se aproxima para ajudar com a feitura dos arranjos. Quando a banca de seu Armindo está muito movimentada, Fatinha o ajuda também.

As três bancas da família ficam uma ao lado da outras e eles se apoiam no trabalho um do outro e agora contam com os braços jovens e o sorriso alegre do sobrinho que ajuda os três tios com a agilidade da juventude e a vontade de aprender.

O padrão da família é plantar de tudo um pouco, desde a época em que os pais conduziam as vendas. Chegaram a plantar flores durante um tempo, mas atualmente associam o cultivo de flores com o de alimentos. Hoje, cada filho tem seu sítio e sua plantação para cuidar durante a semana e levar para a feira aos sábados e domingos. Fatinha tem uma loja de flores no centro de Paty do Alferes em sociedade com uma irmã, além da banca no Espaço do Agricultor em Miguel Pereira. Algumas flores são cultivadas nos sítios dos irmãos e outras vem de Holambra.

Seu Armindo

Na banca de seu Armindo tem cheiro verde, banana, couve, cenoura, alface, rúcula e o que tiver na estação.

Seu Armindo conta que cada irmão planta uma coisa diferente, trabalham juntos, mas as plantações são separadas, pois cada um tem seu lugar. Seu Armindo está na feira há 20 anos, começou jovem como os outros irmãos, acompanhando os pais nos dias de feira. No sábado, fica lado a lado das bancas de suas irmãs, dona Teresa e Fatinha. Naquele miolo do novo espaço, sempre sobra uma conversa para ensinar uma receita, incentivar a consumir algo que nunca se provou e descobrir novos sabores. Armindo gosta de contar as histórias da infância no sítio com todos os irmãos juntos misturando brincadeiras com aprendizado de trabalho, mas se ressente das novas gerações não demonstrarem interesse em trabalhar na roça. Durante a semana, cuida do sítio e das plantações. Ele tem uma única filha que mora com a mãe desde que se separou e tem outros interesses, da mesma forma que seu Manoel, também uma filha única que trabalha na área da saúde.

Dona Tereza

A mais velha dos 10 irmãos, Tereza se orgulha de ter começado a trabalhar na roça aos sete anos, além de ter ajudado a criar os irmãos e os três filhos que teve. Trabalha há 30 na feira de Miguel Pereira e acompanhou as várias mudanças de local.

Dona Tereza lembra que antes de terem barracas para vender os produtos, a venda era realizada de porta em porta. Aos poucos, os cenários mudaram. A feira já funcionou em frente à igreja de Santo Antônio, ao lado do supermercado, ao lado do Fórum da cidade, no antigo espaço do artesão, na estação de Miguel Pereira e hoje se assenta em espaço próprio.

Embora se queixe de cansaço, aos 63 anos, dona Teresa não abre mão de estar aos sábados na feira: “Aqui eu converso, faço amizades boas”. Seu dia começa entre 5h ou 6 horas da manhã, com os cuidados na plantação e dando comida para as galinhas e os porcos; depois faz o trabalho da casa. Às sete horas da noite, encerra o dia. A semana é organizada para que no sábado cedo, ela vá vender seus produtos na feira. Como os irmãos, tem de tudo um pouco. Umas das iguarias é o famoso queijo que faz desde os 10 anos, tendo aprendido a receita com a mãe. Ela conta que há atenção com o que se planta: “Se você plantar e não vender, estraga tudo, aí precisa um cuidado maior”. As sobras da feira, ela diz que dá para os bichos. Não joga fora, pois assim aprendeu com a mãe.

E muitas outras histórias compõem a feira que se recria nos espaços que a ela destinam. São feirantes que inauguraram as vendas e acompanharam cada mudança proposta; e tem quem chegou há pouco tempo. Cada um carregando sua própria jornada, junto a consumidores fiéis ou que estão de passagem. No final de uma das idas à feira, um senhor se despede de seu Manoel e diz: “vir aqui é melhor que ir ao supermercado, os produtos são frescos e a conversa é boa”. Ele sai sorrindo, satisfeito de ter passado por ali.

Reportagem por Cecília Figueiredo e Sandra Garcia — Professoras do curso de jornalismo da UFRRJ

Colaboração dos alunos do curso de jornalismo: Felipe Teles e Rommel Pugas

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O Coletivo Solidário pela Alimentação é uma iniciativa da comunidade acadêmica do curso de Jornalismo da UFRRJ em apoio à rede de combate à fome.