"Não queremos sentar na mesa rosa e só falar das dificuldades de ser mulher": mercado, ABERST e literatura com Cláudia Lemes.

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
21 min readDec 2, 2019
Cláudia Lemes, ex-presidente da ABERST e escritora de romances policiais

Se encontra de tudo na cena do rap nacional, mas, principalmente, aqueles que dizem que a organização da cena gringa é maior do que a nossa. Falam, por exemplo, que desentendimentos não existem, que o apoio é maior lá do que aqui — geralmente, estas pessoas se esquecem dos problemas de relacionamento entre Ice Cube e Eazy E dentro do N.W.A justamente no ápice do grupo de Compton; ou, por exemplo, desconhecem quais os motivos que levaram Tupac Shakur e Notorius B.I.G à morte precoce.

Recentemente, Akon — que está construíndo uma "Wakanda" real em uma área gigante cedida pelo governo do Senegal — deu uma declaração sobre a postura do rapper 6ix9ine, preso este ano, sobre a "caguetagem" dele sobre os líderes da gang Bloods, a qual ele fazia (ou dizia fazer) parte. O que, pra alguns, soou como uma "passação de pano" foi a mais dura das críticas à postura de 69 — e, isso, muita gente não entendeu.

O fato é: a cena musical da cultura hip hop é recheada de desentendimentos, encontros e desencontros. Como Eminem, que fez grandes participações com Rhianna, mas que, recentemente, virou a bola da vez após versos excluídos de sua participação com B.o.B. — que ganhou destaque ao dizer, em uma track, que a terra era, sim, plana — citarem que ele apoiava Chris Brown durante as agressões que ele cometeu a Rhianna. Ou como The Game que, recentemente, afirmou em outra música que havia tido relações com Kim e Kloe Kardashian (ao mesmo tempo) — e isso enquanto a primeira já era esposa de Kanye West — que também deu declarações estúpidas sobre a questão racial estadunidense.

O rolê do rap é fechado. Segmentadíssimo. E longe de ser idôneo. Dificilmente alguém está certo. Provavelmente todo mundo está errado. Mas, entre mortos e feridos, salvam-se as pérolas — e é esse o ponto importante.

A cena do rap estadunidense não é mais organizado ou menos propenso a brigas assim. Mas é uma cena que identifica problemas, os bane e não sente medo em abrir a boca pra falar e fazer o que têm que ser feito — o que, dentro do nosso cenário, não é feito com tanta frequência. Como Mano Brown, que foi firme em falar que não gostava do som de grupos como Haikaiss e Costa Gold e Edi Rock, também do Racionais Mc's, que não deixou por baixo quando o criticaram por ir em um programa da Globo ou quando gravou com Haikaiss, por exemplo.

Estamos em 2019. O ano mal tinha acabado e, puta merda, quanta coisa aconteceu no Brasil. Brumadinho, Amazônia, discurso do presidente na ONU, sertãopunk… Nesse meio tempo, falei sobre muita, muita coisa. Aqui no blog, principalmente.

E assuntos como democratização da literatura precisam de apontamentos nos mais diversos momentos, pessoas, lugares e situações. Por isso, no texto Pra quem escrevemos o quê, não deixei de falar sobre as coisas que percebia que poderiam ser melhores.

Obviamente que nem todo mundo leu o texto todo com o mesmo afinco que leu trechos do texto.

Por conta disso, na última quarta-feira de novembro (27), Cláudia Lemes fez uma resposta pública às críticas que fiz sobre a ABERST (Associação Brasileira de Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror) no texto já citado e linkado aqui.

Isso levantou um outro debate, fora do tema do texto e foi o assunto de uma longuíssima conversa que tive com Cláudia Lemes. E, entre mortos e feridos, salvaram-se as surpresas: concordamos em muitas coisas — que a maioria das pessoas que falaram de mim por tecer críticas à ABERST nem imaginavam.

E, se na metáfora do rap desse texto, rappers morrem pela língua, no mercado independente, a literatura morre por falta de consenso e espaço. Consenso em entender quem são os inimigos, quais são as críticas e como criar pontes entre literatura e pessoas que precisam dela. Espaço pra quem precisa dele nessa missão de contar suas próprias narrativas: mulheres, pretos, nordestinos, nortistas, indígenas e outras minorias.

Ainda assim, eu poderia não ter conversado com Cláudia Lemes. Muito menos sugerido uma entrevista direto no meu blog. Esse segundo ponto parece com menos sentido ainda: "ela foi super agressiva com você e destruiu as suas críticas, por que você a entrevistaria"? Por um motivo: as coisas que não estão, nem aqui, nem na resposta dela — mas que só poderia entrar em pauta com esse espaço.

Porque, aparentemente, existe uma dificuldade das pessoas em concordar comigo — mesmo quando estou certo. Não sei se por um bloqueio natural ou se é por essas pessoas não estarem acostumadas com o seu cotidiano sendo criticado por alguém — e alguém como eu, que não amanso com o errado. Então, já que é assim, eu prefiro trazer outras pessoas com influência pra expor as veias abertas do mercado literário.

Bem, sem mais enrolações. A primeira entrevista do Explico Melhor Escrevendo é com Cláudia Lemes. Aproveitem cada linha.

Nenhum trecho, parte ou vírgula foi alterado. Tanto as perguntas (em negrito) quanto as respostas (logo abaixo) estão na íntegra.

Fale um pouco sobre você: uma biografia do seu trampo e trajetória na escrita.

Sou apaixonada por literatura desde criança, mas nunca tive percepção disso da forma como as pessoas têm hoje. Hoje, ser leitor faz parte de como a pessoa se identifica; ela faz “book haul”, “bookshelf tour” e atualiza seu “paginômetro” no Skoob. Ela tem uma relação quase fetichista com o livro impresso: capa dura, enobrecimentos gráficos, fitilho. O leitor de hoje se recusa a ler se o livro não foi impresso em papel pólen e chama pessoas que dobram os cantos das páginas de “monstros”. Quando eu era mais nova, o livro mais precioso era aquele rabiscado por mais de uma geração da família, o “paperback” grosso, barato, leve e impresso em papel cinza com letras minúsculas. Isso não é uma retórica do tipo “na minha época tudo isso era mato”, mas são mudanças que não deixam de me surpreender. Sou apaixonada por e-books justamente pelo desapego ao livro como objeto de consumo: estou aqui pelas palavras e histórias e apenas isso.

Cresci numa família onde as mulheres liam como segunda natureza, com a mesma naturalidade com que comiam, dormiam, viam televisão. Minha mãe era professora de português, redação e literatura numa escola do Rio de Janeiro, e lá havia uma pequena livraria, que visitávamos semanalmente. Se eu tivesse lido os livros adquiridos na semana anterior, eu podia escolher até três novos livros. Para uma criança excessivamente tímida, era um refúgio e um vício. Foi só na adolescência que percebi que nem todo mundo da minha idade tinha o hábito da leitura por prazer. Comecei a escrever ficção aos treze anos, mas sem preocupações com trama, personagens e forma — isso só aconteceu quando eu tinha 18 anos e comecei a escrever meu primeiro romance, um drama familiar violento e erótico que acabou crescendo e se transformando em 3 volumes.

Eu nunca tive pretensões de me tornar escritora por profissão. Em parte, porque era um mundo distante de mim, aparentemente impenetrável. Além disso, morei 6 anos fora do Brasil e isso prejudicou muito a minha percepção e aquisição da língua portuguesa. Por mais que minha mãe insistisse em falar o português em casa, a família acabou criando um dialeto próprio que misturava inglês e português e, em algumas frases, até um pouco de árabe. Observei que os outros expatriados com quem convivia faziam o mesmo. O que mais me prejudicou foi ter parado de ler e escrever em português. Isso pode parecer charme da minha parte, mas pense no quanto da sua língua você aprendeu — principalmente em termos de vocabulário e gramática — entre os dez e dezesseis anos. Foi o que eu perdi. Dessa forma, já mais velha e morando em São Paulo, eu sabia que tinha deficiências com a língua portuguesa que eram obstáculos seríssimos para uma possível carreira de escritora.

Por isso meus primeiros quatro livros foram escritos em inglês. Covardia total, admito. E sei que falar sobre morar fora parece elitista. Mas a verdade é que a oportunidade de trabalhar no oriente médio salvou minha família, que estava bem mal de grana na época. Não deixou de ser um privilégio enorme pelo qual sou grata até hoje — mas não foi fácil, também. A estabilidade financeira veio com um preço; morar num país muçulmano em plena Guerra do Golfo forneceu experiências que variaram entre o fascínio e o mais puro medo. Em mais de uma ocasião tivemos que dormir vestidos, com nossos documentos e passaportes na mesa de cabeceira, caso tivéssemos que fugir no meio da noite. Isso aconteceu mais tarde quando os terremotos abalaram o Cairo, também.

Quando entrei no mercado literário, foi apenas por divertimento. Minha carreira começou mesmo com a publicação de Eu Vejo Kate, em 2014, de forma independente, e, depois, pela editora Empíreo, que um ano depois também publicou Um Martini com o Diabo. Decidi abraçar o caminho independente depois de aprender um pouco mais sobre o mercado e as editoras, e fora algumas publicações mais experimentais com pequenas editoras nas quais confio — Cartas no Corredor da Morte, pela Monomito Editorial e Santa Adrenalina, pela Lendari são alguns exemplos — eu gostei muito da carreira independente. Em 2017, entrei no mundo dos financiamentos coletivos com Inferno no Ártico, depois publiquei a primeira versão brasileira do clássico O Crime da Quinta Avenida; reimprimi Eu Vejo Kate e lancei o vol. 2 da duologia este ano, e também publiquei a coletânea Mulheres vs. Monstros agora no segundo semestre.

A ABERST nasceu há pouco mais de dois anos. Em tão pouco tempo, você acha que as pessoas já entenderam qual o papel dela no mercado?

Eu acho que não. Não apenas as pessoas não entenderam o papel dela no mercado, como a grande maioria dos nossos associados não entenderam a dinâmica de uma associação. Isso poderia ser corrigido com um volume grande de textos curtos e informativos, como newsletters e um blog da associação, por exemplo. Mas aí vem outro problema, que enfrentamos desde que a associação foi fundada: o conselho está sempre sobrecarregado. Precisamos priorizar os associados e serviços que oferecemos a eles. A comunicação institucional não foi negligenciada — comunicamos muito sobre a ABERST pelas nossas redes sociais e pelo nosso site. Poderia ter sido melhor? Não com o tempo e pessoal que tínhamos à nossa disposição. Vai melhorar? Muito.

Dentro da ABERST temos um problema cultural, que o conselho tentou remediar de diversas formas, sem sucesso: a concepção do que é uma associação e de que ela é uma organização de pessoas que trabalham em conjunto para cumprir missões. Com a exceção de um grupo de cerca de 40 associados mais ativos, os outros tendem a enxergar a ABERST como uma entidade criada para servi-los, e o conselho como seus funcionários. Para ser justa, não existe maldade aí; essa concepção vem da sociedade. A lógica é simples: se eu faço uma contribuição mensal (R$ 20), eu tenho direito a tudo que a ABERST oferece, e tenho o direito de exigir isso do conselho às 2h da manhã num sábado; e tenho direito de reclamar quando o e-mail que mandei domingo não foi respondido em quinze minutos. Parece exagero, mas isso acontece sempre. A maioria dos associados não percebe que o conselho existe para organizar prioridades e trabalhar para cumprir as missões do seu estatuto.

Há pelo menos dois anos, estou implorando aos associados que se organizem em comitês regionais, por exemplo, para organizar eventos locais para os quais nos disponibilizamos a dar total suporte. Nunca houve nenhum tipo de mobilização para isso acontecer. Também sempre pedimos ajuda: alguém quer colocar em prática nossa ideia do clube do livro? Alguém quer criar um comitê de apoio a isso ou aquilo? A resposta até hoje foi o silêncio. Nas nossas eleições, em agosto, só tivemos uma chapa.

É claro que eu não posso obrigar os associados a trabalharem em prol da ABERST; essa vontade precisa nascer dentro deles. Entendo que todos têm seus trabalhos, famílias, estudos. Só que o conselho também tem. A questão aqui é a visão estrutural da ABERST. Ela é mais parecida com uma ONG do que uma empresa: a contribuição financeira dos associados não vai para o bolso de ninguém: ela banca contador e documentação, site, e-mails, custos eventuais de frete, transporte e estacionamento, realização e patrocínio de eventos, remuneração quando cursos e workshops são oferecidos gratuitamente aos associados etc. Todo o trabalho feito pelo conselho é voluntário. No entanto, exige-se da ABERST um tipo de agilidade, abrangência e eficiência que não se exigiria nem de uma multinacional.

Fora da associação, o problema é semelhante. Poucas pessoas conhecem o que oferecemos para nossos associados. Poucas pessoas conhecem nossas missões. O mais curioso é que essa informação sempre esteve disponível nas nossas redes sociais e website (que agora está passando por mudanças e será atualizado em breve).

Eu me lembro de um escritor famoso dizendo que a associação deveria focar menos na divulgação dos associados e suas obras, e mais em profissionalizá-los. Curioso, porque eu pessoalmente escrevi: “a profissionalização dos escritores de gênero” no nosso estatuto. A ABERST, em dois anos, ofereceu gratuitamente: webinários de especialistas em marketing editorial, agentes literários, crowdfunding e funcionários de gráficas, além de um grupo de estudo sobre assuntos diversos, que será reformulado em 2020. Nos nossos grupos de Whatsapp temos debates diários sobre o processo criativo, técnicas de escrita, publicação, edição, etapas do processo editorial e carreira de escritor. O conhecimento e experiências trocados entre mais de uma centena de pessoas já me ensinou mais sobre ser escritora do que todos os cursos que fiz e livros que li. Nosso evento anual, o Ghost Story Challenge, tem como objetivo fazer o escritor conhecer todo o processo “end-to-end” da publicação de um livro, desde a inspiração (além da ambientação, o evento oferece cursos intensivos) até a edição profissional, revisão e impressão da obra. Não existe nada que levamos mais a sério na ABERST do que a profissionalização de escritores. No entanto, qualquer pessoa que passou mais de um dia no mercado editorial sabe que poucos escritores acham que precisam se profissionalizar. Como atraímos essa pessoa para a nossa comunidade? Oferecendo outras coisas que os interessam: parcerias com blogs, divulgação de livros, promoções, pré-vendas, lançamentos e campanhas de crowdfunding. Participação em mesas de eventos. Descontos em serviços editoriais fornecidos pelos nossos parceiros. Isenção da taxa de Inscrição no prêmio ABERST. Visibilidade.

Então como está a associação, atualmente, de acordo com suas missões? As missões da ABERST sempre foram: fortalecer a literatura dos gêneros policial, suspense e terror; criar uma premiação anual que visa dar destaque às melhores obras produzidas dentro desse nicho; aproximar escritores; fazer parcerias com gráficas, editoras, blogs e outros prestadores de serviços para facilitar a inserção de escritores no mercado editorial e combater a pirataria digital de livros. Se dependesse apenas de mim e do conselho, e não das circunstâncias, teríamos pegado mais pesado na questão contra a pirataria. Fora isso, cumprimos nossos outros objetivos com ética, transparência, competência e em muitos casos, excelência. Considerando que só estamos atuando há dois anos e que todo o trabalho é feito no nosso tempo livre, estou bem satisfeita com o que conseguimos alcançar.

Uma última nota: a ABERST acabou de mudar de diretoria e cresceu muito nos últimos meses, fruto do nosso empenho desde o início. Esse crescimento teve um impacto na associação: as interações ficaram menos íntimas. Por outro lado, estamos mais consolidados e com mais expertise e recursos para continuarmos sendo agentes de transformação no mercado editorial. Os processos que, até quatro meses atrás eram artesanais, ficaram automatizados. O volume de trabalho está melhor distribuído. Quando começamos, eu era presidente de uma associação sem saber que seria exigido de mim uma quantidade de tempo que eu não poderia dar e um tipo de postura — focada em diplomacia e tato — que era incompatível com a minha personalidade. Patinamos um pouco para entender como tudo funcionava, mas nos recuperamos rápido dos nossos deslizes, sem nos eximir da responsabilidade por eles. Eu realmente acredito que poucas pessoas fizeram para os escritores de gênero tanto quanto a ABERST nos últimos dois anos. Hoje as partes mais interessadas em formar leitores, as livrarias e editoras, não fazem tantos eventos literários quanto blogueiros, escritores independentes e grupos como a Coesão Independente e a ABERST. A ABERST influenciou diretamente a criação, por parte de uma das nossas associadas, de uma Associação de Escritores LGBTQ.

Mesmo com mais de 160 associados — e alguns deles nordestinos — , a maior parte dos eventos criados ou patrocinados pela ABERST acontecem no eixo Sul-Sudeste. Enquanto uma das fundadoras e ex-presidente da associação, você percebe alguma movimentação dos associados pra deslocar mesas e lançamentos dessas duas regiões?

Não, eu não vejo. Para ser justa, nos últimos dois dias requentamos o debate sobre isso lá dentro com os associados e a Lia Cavaliera se ofereceu para organizar eventos na cidade dela. Isso foi o máximo que conseguimos em dois anos. Mas tem mais coisa envolvida aí:

Cinco dos seis membros do conselho estão em São Paulo e no Rio de Janeiro. Uma está no Ceará. Imagine, por exemplo, que desejemos fazer uma feira literária no Ceará, para levar os livros dos nossos associados e, com sorte, ainda organizar um bate-papo com autores. Temos duas alternativas; deixar a Valquíria, nossa diretora de social media que mora lá, encarregada, sozinha, do evento. Ou deslocar um dos outros diretores para dar uma força. Primeiro, precisamos partir do pressuposto que essas duas pessoas têm tempo de sobra para isso. Segundo, se formos deslocar uma pessoa para ajudar, temos o custo de passagem, hospedagem e alimentação (sendo ridiculamente otimista, cerca de R$ 2.000). Como vamos levar centenas de livros dos associados (que precisam, em primeiro lugar, ser enviados para nós a um custo absurdo que eles nunca vão recuperar em vendas) até esse evento? Quantos autores temos no Ceará? Quantos desses autores poderão participar do evento? Quantas pessoas conseguimos levar para lá?

Pela nossa experiência (e só temos nosso conhecimento empírico para fazer essa estimativa), teríamos no máximo 2 autores num evento para cerca de 30 pessoas e venderíamos uns 15 livros. No final, nossos associados teriam gastado uma fortuna de frete para colocar os livros lá, e não teriam chegado nem perto de recuperar isso por meio das vendas. É por isso que a cultura de enxergar a ABERST como uma empresa não funciona. É por isso que quem precisa se mobilizar para organizar esses eventos são os próprios escritores, com a ABERST dando suporte de criação de público, envio de brindes ou livros para sorteio e assistência no seu planejamento.

Pense numa coisa supostamente simples: eu me deslocar de Santos para São Paulo para um evento como a HorrorExpo. Tranquilo, certo? Na verdade, para fazer essa viagem, que fiz incontáveis vezes desde 2017, eu preciso fazer malas para cinco pessoas, fazer meus filhos perderem aula (no caso da Expo, até provas), pedir para minha sogra deixar de trabalhar nos dias do evento para poder ficar com eles, pegar um táxi ou Uber (atividade que gera em mim verdadeiras crises de ansiedade devido a algumas situações pelas quais passei), carregando caixas de livros. Essas viagens “simples” que nossos associados de Minas, Goiás, Paraná e Santa Catarina fazem diversas vezes por ano, têm custos altos para eles, tanto financeiros quanto pessoais. E eles são os sortudos que moram “perto” do Rio ou de São Paulo. No quinto maior país do mundo, com custos astronômicos de viagem e frete e jornada de trabalho alucinada, é claro que promover eventos no norte e nordeste fica inviável para quem mora tão longe dessas regiões. Achar que não temos interesse nesses eventos já é uma dedução triste. Como eu disse, eu já implorei aos associados para se mobilizarem.

Eu acho que o interesse vai aumentar, mas é uma mudança que ainda leva um tempo para dar frutos.

Existe uma espiral do silêncio (e que não gira somente pra autores nordestinos e sim pra autores de minorias representativas) no mercado literário. Isso afeta a produção e distribuição das narrativas dessas vozes. Você percebe que o mercado independente vem pensando em lidar com esse problema?

Vamos falar de distribuição: eu vejo o mercado independente dar vozes para todas as minorias, umas mais do que outras. Já existem editais exclusivos para autores de minorias e histórias que abordam temáticas específicas que até dez anos atrás eram tabu. O problema é que o mercado independente ainda não se estabeleceu como um mercado de produção corajosa, inovadora e competente. No geral, e incluo os autores nisso, a percepção do brasileiro é que um trabalho só tem qualidade quando chancelado por uma autoridade. Nesse caso, seriam as editoras. O problema desse pensamento é que de acordo com ele, os autores que não estão em grandes editoras ainda não são bons. E a realidade é bem distante disso.

Nem todo escritor independente é independente porque não conseguiu um contrato. Às vezes ele não quis se adaptar às exigências de estar numa editora. E não é de surpreender; o autor independente tem mais liberdade criativa, pode publicar quantos livros quiser — e quando quiser — por ano. Ele pode escolher os profissionais que vão trabalhar no livro, desde revisores a capistas, e quando fazem um trabalho bem feito, o retorno financeiro vale o esforço. A possibilidade de publicar gratuitamente na Amazon e em outras plataformas, assim como o financiamento coletivo, contribuíram para essa democratização. Dentro dessa realidade, dentro dessa cultura de que o que é independente não é bom, as obras de autores independentes, de minorias — negros, lésbicas, trans, gays, queers, pessoas com deficiências e outros — que abordam temas como homofobia, racismo, machismo, religiões afro-brasileiras, vida na periferia, política, relacionamentos abusivos, depressão, entre outros, se perdem no funil do mercado editorial. O alcance dessas obras é muito baixo. Poucos desses autores vão parar nas grandes casas editoriais. Se estamos falando em ficção, e, em especial, ficção especulativa, das centenas de autores e obras, vamos ter um ou dois chegando às massas — lembrando que “massas” é uma palavra generosa para quantificar os leitores no país.

Você também levantou a questão da “produção”. Há muito mais gente — cada vez mais jovem e mais politizada — produzindo ficção. Tem muita minoria engajada em produzir ficção. Mas também precisamos pensar nas condições nas quais essa produção é feita. Uma mulher periférica com cinco filhos pode produzir literatura nas mesmas condições que um jornalista branco de classe média? Não estou falando de qualidade, veja bem. Estou falando que quando você tem que trabalhar, cuidar de filhos e de uma casa, você só pode escrever de madrugada, quando todo mundo já dormiu, e é no sofá e é exausta. Isso afeta a produção.

Eu sento em eventos literários, quase sempre, cercada por homens brancos e solteiros com doutorados. É intimidador. Estou no mercado há apenas seis anos. Estou fazendo pós-graduação EAD numa micro universidade, porque é o que dá para fazer em termos de tempo e grana. Eu vejo esses caras produzindo literatura em escritórios nos fins de semana e dizendo que o escritor de verdade cria uma rotina de escrita e escreve todo dia. Eu não escrevo há semanas. Quando escrevo, é com o notebook numa coxa e o Dudu na outra, embalada pelo som de PJ Masks e tendo que parar a cada três minutos para apartar uma briga, cobrar uma lição de casa e pegar suco de uva. Isso porque sou uma das sortudas.

Se eu, branca e de classe média, tenho que escolher entre dormir e escrever, quais são os obstáculos das mães que não têm parceiros ou parceiras, participativos, que topam ficar com as crianças no sábado para que ela escreva? Qual é a situação de um rapaz periférico de vinte anos que trabalha durante o dia e faz faculdade a noite? Cada vez que mudamos o foco para determinada região, grau de escolaridade, gênero e etnia temos um novo cenário de obstáculos. A discrepância na proporção de autores negros e brancos nas premiações e mesas de eventos reflete esses obstáculos. A proporção de homens e mulheres nesses mesmos ambientes, também.

Eu me lembro de que num dos dias da HorrorExpo os autores combinaram de ir beber no Madame Satã. Eram meus amigos, aqueles que eu raramente vejo e com quem adoraria passar a noite conversando. Mas meu marido estava com as crianças para eu poder trabalhar no evento, e estava com o carro. Isso significava que eu sairia da casa noturna de madrugada e teria que pegar um Uber para voltar à casa da minha sogra, onde eu estava hospedada. Era um risco que eu não estava disposta a correr. E não fui a única escritora a não ir ao encontro por motivos de segurança, a Larissa Brasil me confidenciou o mesmo receio. Pega esse exemplo idiota e dimensiona: quanto networking é feito em restaurantes e bares após eventos? Quantas oportunidades nós, mulheres, perdemos no mercado por não estar nesses ambientes? E mais uma vez: isso porque eu ainda sou uma das privilegiadas. Outras mulheres encaram obstáculos ainda maiores.

Assim como ser mulher e mãe limita minha produção, meu alcance e meu poder no mercado editorial, pertencer a uma ou muitas minorias tem um impacto inegável na expressão literária, criando aquilo que você chamou de espiral de silêncio. Muito está sendo dito, mas quem escolhe quantos escutam ainda são os detentores do poder, e o poder é quase sempre branco e elitista.

Você foi uma das responsáveis por trazer O crime da Quinta Avenida, de Anna Katherine Green, pro Brasil — uma obra importante da autora que foi pioneira nos romances investigativos. Mas, assim como outros gêneros literários, o de romances policiais também é um ambiente excludente. Como você lidou com esses problemas?

Eu tive obstáculos para entrar no mercado, mas sou completamente ciente de que esses obstáculos foram amenizados pela minha condição social e cor de pele. É complicado falar de obstáculos sem soar reclamona. É delicado tentar contextualizar as pessoas sobre suas dificuldades sem fazer parecer que você está pedindo pena ou atenção. Por outro lado, eu prefiro errar por um excesso de honestidade do que por medo de ser xingada.

Se por um lado eu tive a sorte de me tornar bilíngue aos 11 anos, por outro fui ridicularizada por ambientar histórias em Las Vegas, no Alasca, na Flórida e pelo fato de que meus romances não são “100% nacionais”. O fato de ser bissexual me possibilitou dar voz a personagens bissexuais, mas por estar numa relação heterossexual, minha bissexualidade foi ignorada, apagada da minha identidade. E ser mulher teve um peso, que já ilustrei nas respostas anteriores.

Recentemente fui convidada para um evento e como a mesa só tinha homens, indiquei que a Juliana Daglio participasse. A pauta sugerida? “Mulheres na literatura”. Não teve jeito, precisei respirar fundo e responder: “queremos discutir a produção de horror e suspense no Brasil, junto com os homens. Não queremos sentar na mesa rosa e só falar das dificuldades de ser mulher. Essa pauta é importante, mas somos maiores do que isso.” Eu fui ouvida. Mas teria sido ouvida quatro anos atrás, antes da ABERST, antes de tudo o que produzi, antes de todas as portas que chutei e inimigos que, infelizmente, fiz?

Eu precisei criar minhas próprias oportunidades quando vi que o mercado estava fechado para mim. Não me convidavam para eventos, então criei meus próprios eventos. Não premiavam obras de ficção policial e horror, então eu criei uma premiação que escolhe com base em qualidade, e não votos de popularidade. Não havia mesas para mim, então eu criei mesas e aproveitei para colocar mulheres nelas. Eu aprendi a fazer meu próprio site, eu coordeno minha própria loja de livros, alimento meu blog com conteúdo relevante para minha comunidade, atuo na associação, produzo meus próprios livros, sou editora de um selo, sou tradutora há 23 anos, tenho um grupo de estudos próprio que alimento diariamente com conteúdo e vídeos, me sustento com meu trabalho num app, com freelas e leituras críticas e faço pós graduação e três outros cursos enquanto cuido de um filho pequeno, uma pré-adolescente e um adolescente. E já ouvi de escritores que “é fácil ser feminista quando se é sustentada pelo marido” e que “sem a associação ela não tem nada para fazer”. O machismo do mercado editorial é nojento, passivo-agressivo e visível apenas para quem sente ele na pele.

O projeto da Anna foi isso. Eu vi uma mulher que criou três filhos e usou sua escrita para colocar comida na mesa. Eu vi uma escritora que mudou para sempre a trajetória dos romances policiais e influenciou diretamente Agatha Christie e Arthur Conan Doyle. Uma mulher cujo best-seller de 140 anos atrás criou a base para os thrillers que eu escrevo hoje. E foi esquecida. Era questão de honra, para mim e para a Adriana Chaves, recuperar essa obra.

Em seu artigo Mulheres que sonham com monstros, na obra Mulheres vs. Monstros, você fala sobre violências sofridas por mulheres e como isso as afeta, o que também pode ser visto no seu livro Inferno no Ártico. Esse é um tema recorrente pra você, enquanto autora de romances policiais?

Eu preciso falar sobre violência sexual para me curar. É egoísta, mas é verdade. Em relação a obrigatoriedade, por parte das escritoras, de falar sobre isso, acho que não deve haver nenhum tipo de pressão para que bandeiras sejam levantadas na ficção. Por outro lado, acho bem complicado o estabelecimento de “regras” em relação a isso. Por um tempo rolou uma vibe de que nossas protagonistas não deveriam ser retratadas como vítimas de estupro. Mas espera aí, praticamente todas as minhas amigas sofreram violência sexual. Eu não vou conseguir isentar todas as minhas personagens disso. E não quero. Como eu disse, eu escrevo para me curar das violências que sofri — físicas, sexuais e psicológicas.

O que podemos esperar da Cláudia Lemes pra 2020?

Meu próximo lançamento, um romance policial “100% nacional”, A Segunda Morte de Suellen Rocha, deve ser lançado no começo de abril. Dessa vez não vou publicá-lo de forma independente por motivos diversos, que incluem: exaustão, desejo de maior distribuição e vontade de trabalhar com um editor. Eu adoro ser editada. E como não consigo pagar um editor para minhas obras independentes, acabo editando meu próprio trabalho, o que acho que faço com competência, mas também aprendo muito pouco. O anúncio que vai esclarecer mais sobre a publicação da obra deve sair em breve.

Minha atuação na ABERST será limitada. Eu acho que já contribuí com tudo o que tinha, e minha dedicação à associação me trouxe frutos, mas também me ofuscou como escritora, amputou minhas relações com colegas e desgastou a mim e à minha família. Continuo atuando na parte que lida com eventos, com a meta de atingir as regiões apontadas como problemáticas, mas vou dar espaço para o Tito Prates fazer sua contribuição.

Meu maior motivo de orgulho para 2020 é poder lançar pela Morgue, selo policial da editora Lendari, o romance noir da talentosíssima Fabiana Ferraz, Se Eu Morresse Amanhã, que tive a honra de editar. Fabiana é uma escritora de Sorocaba, que sem dúvidas será uma das maiores autoras de ficção policial do Brasil daqui a alguns anos. O trabalho dela tem voz própria e qualidade e ela ainda vai dar o que falar. Também vamos ter a honra de publicar o thriller de espionagem da Vivianne Geber, uma militar e escritora, que teve seu trabalho anterior, Missão Pré-Sal, publicado pela Record, em 2015.

Minha meta pessoal para 2020 é produzir mais, estreitar laços com as pessoas que respeito e admiro no mercado editorial, compensar minha família pelo tempo que o serviço na ABERST tirou da gente, escolher minhas batalhas com sabedoria e me manter longe da toxicidade de alguns ambientes em que atuo. Se tudo der certo, vou ter minha lua de mel em janeiro (sou casada há 16 anos, mas nunca tivemos uma lua de mel de verdade), terminar minha pós, terminar meu curso de necropsia e, quem sabe, ver até um impeachment.

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Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.