Como a Netflix maratona a própria queda.

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
11 min readMay 14, 2021

Existem uma série de diferenças entre o rap e o trap. Mesmo sendo filhos da grande mãe que é a cultura hip hop, as letras, melodias, beats e até a questão estética são diversas. O que ajuda as pessoas a saberem diferenciar cada um.

Basta olhar pra Emicida e Dfideliz, por exemplo. Você sabe quem entre eles canta rap e trap.

Para além disso, fica a mudança, também, do formato de produção. O rap veio de um modelo mais clássico, com mixtapes feitas por selos — às vezes idependentes, às vezes de gravadoras — com divulgação mais nichada presença em eventos undergrounds e um público que curtia esse formato. O trap também, já que nasceu no início dos anos 2000. Mas com “booms” em momentos distintos.

Enquanto o grande momento do rap foi o final dos anos 80 e início dos 90, dando nomes como NWA, Snoop Dogg, Tupac, RUN DMC, Mos Def, De La Soul e tantos outros, o trap passou a colar, mesmo, no final da década de 2010. É verdade que, antes disso, Lil Wayne, TIP e outros já faziam trap, mas, pense: quando você realmente descobriu o que era o trap?

A internet possibilitou aos trappers um novo formato de publicação de seus negócios e gestão de carreira. Você não precisa de um home studio completo, ou guardar uma grana por meses pra pagar horas em um, se tiver… um celular. Ou de um diretor experiente pra fazer um clipe se também tiver um celular.

O fato é: as novas tecnologias são tão práticas que possibilitam qualquer pessoa a fazer o que quiser. E, por ter tanta, tanta gente, fazendo coisas, o consumo aumenta exponencialmente. Junto com ele, a fugacidade. Alguém produz, a galera curte e parte pra outra. Um mês ou menos, até, depois, mesmo ciclo.

Mas é importante notar que esse formato de músicas e clipes (ou, agora, visualizers), vem mostrando um outro problema: a pasteurização. Se você grava tudo muito rápido, edita e solta, automaticamente o espaço de tempo necessário pra digerir o trabalho anterior é menor. O que é bom pros números, é ruim artisticamente; você não pode evitar das pessoas perceberem repetições de ideias, flows, beats e até roupas.

Se tu escuta trap, já deve ter percebido que o flow do Dfideliz é sempre o mesmo. E que os números da Recayd Mob já não são tão bons quanto antes.

O capital é uma grande mão invisível apontando uma Glock na sua cara. Mas eu não sou Marx, então não vou esmigalhar isso por aqui. O que quero elucidar, porém, é o quanto esse sistema pode ser inteligente a ponto de criar ferramentas e tendências e as destruir quando bem quiser.

Os filmes existem a pelo menos dois séculos. Mas foi o hábito de ir ao cinema que possibilitou noventa e três edições quase que consecutivas do Oscar. Nem uma pandemia global que colocou a humanidade em quarentena parou a indústria (ao menos, não completamente) — indústria essa que briga pela reabertura dos cinemas justamente para faturar com a manutenção do hábito.

Hábito — e aqui desculpem por repetir palavras em tão poucas linhas — é a chave do entretenimento. Quem diz isso não sou só eu, mas Boni — pai do Boninho, diretor do BBB que está aí há, vejam só, 21 anos! Lá atrás o velho já dizia: as pessoas gostam de ver as mesmas pessoas sempre na TV. Isso as torna mais próximas, não só do aparelho, mas de quem produz aquilo.

William Bonner está há 26 anos na bancada do Jornal Nacional. Tony Ramos figura em novelas desde 1965. Faustão está há 33 anos no ar, quase sempre no mesmo horário e dia da semana. Percebe um padrão? No momento que se estabelece um conjunto de ações e posturas repetitivas, a engrenagem do capital passa a operar em favor disso. E o hábito — de novo — é implantado.

TV’s, smartphones, notebooks, qualquer aparelho eletrônico vai se adaptar — e também as pessoas — ao seu modus operandi. Conteúdo sempre existiu, mas a forma e velocidade fazem parte da receita de bolo. Por isso que filmes blockbusters vão pro cinema, telefilmes pros DVD’s e séries, TV.

Hoje em dia você não precisa de televisão para assistir algo em casa. Nos anos 60, sim. Parar por quarenta, cinquenta minutos uma vez por semana e acompanhar determinada história, além de diminuir a percepção de tempo que uma realidade corrida oferece, se torna um hábito.

A forma de escrever uma série é diferente da de um filme. Se trata de um storytelling que necessita de linhas de diálogos mais espertas, elementos em cena bem posicionados, cliffhangers que mantenham atenção, plot twists mais bem pensados — tudo isso porque a audiência está esperando semanas por esses momentos. Em um filme, esses elementos também aparecem, mas num espaço de tempo menor, te dando uma história completa duma só vez.

Imagine, por exemplo, Interestelar, do Christopher Nolan, que é famoso pelos filmes cheios de elementos, pontos de viradas, etc. São três horas daquela história e, ainda que tenha lá suas teorias, tudo é dito nesse tempo. Agora, e se fosse uma série: você queria ver semanalmente ou de uma vez?

Agora entramos no assunto do título.

A Netflix ofereceu um modelo de consumo bastante interessante no início: você não precisa esperar uma semana inteira pra assistir o próximo episódio de sua série preferida. Basta ter internet, uma tela, pagar a mensalidade e, em dez horas (!) você vê tudo de uma vez, sem propagandas interrompendo os episódios.

Foi tão bom no início que tornou até substantivo em verbo: maratonar. Quando se vê tudo numa tacada só, você não perde tempo (?) e pode aproveitar mais com seus amigos e contatos falando sobre o grande lançamento da semana.

O problema está em não poder maratonar.

Alguém que não possui Netflix depende de quem tem pra acompanhar algumas produções. Sempre dá pra ver na conta de um amigo, claro. Mas quanto tempo livre por dia se tem pra ver uma temporada completa? Em um mundo onde pessoas adultas ficam presas no trânsito, trabalham, estudam, cuidam da própria casa e resolvem contas no fim do mês, se dorme pouco e mal. É à noite que mais se tem tempo pro entretenimento.

Você senta no sofá, liga a TV pra assistir algo na Netflix, passa algum tempo no catálogo que toda semana tem novidade — mas você não tem nada pra assistir — dá o play e… mensagem no Whatsapp. Outra, no Instagram. Seu amigo compartilhou outra imagem da página “arrombadinhos fofos do caralho” e, quem era mesmo aquele personagem? Nada de celulares. Volta, assiste tudo.

O episódio termina e a Netflix te diz que, em cinco segundos, já vai começar o próximo. Você assiste. E de novo. No quarto, já sonolento, são duas da madrugada. Tem mais pro dia seguinte. Quando você chega no trabalho e vê seus colegas conversando sobre a série, tenta entrar no assunto e recebe um spoiler do quinto episódio porque eles maratonaram tudo durante a noite e você não.

A conversa dá uma esfriada porque você odeia spoilers e a galera não pode falar demais das coisas que vão acontecer — ao menos, não perto de você. Uma semana se passa, assiste aos quatro últimos episódios, se empolga e, no dia seguinte, quando vai conversar sobre, o assunto esfriou. A série da semana é outra.

Não existe espaço pra criar teorias, reunir os amigos, se preparar pro episódio da semana. É você, sua TV e só.

Esse é o FOMO (fear of missing out, ou medo de ficar de fora). Uma dessas síndromes dos tempos modernos em que você precisa estar sempre atualizado e antenado com tudo, ou você não é muita coisa. O FOMO aparece quando você vê todo mundo fazendo dancinha no Tik Tok e você não, quando seus amigos do trabalho não param de falar em Clubhouse (ainda existe?) e tu não foi convidado ou quando você não assistiu ao último maior lançamento de todos os tempos da última semana.

FOMO é o medo do ser humano em se sentir isolado. Agir em grupo e compartilhar experiências e histórias é o que faz de nós quem somos. O isolamento que estar desatualizado de algo que simplesmente não é sua praia ou você não teve tempo te priva no cárcere do eu; no início não parece tanto, mas, ao longo do tempo, você percebe que tu e seus amigos não estão na mesma vibe porque… você não viu a série da Sabrina. Entende onde quero chegar?

“Mas Alan, é só não assistir os episódios todos de uma vez ou baixar e ver depois”, ok. Você já fez isso? Já tentou assistir uma série da Netflix, lançada toda de uma vez, um episódio por semana? Não dá. Primeiro porque o modelo de negócio deles te força a ver tudo de uma vez e manter o hype semanal; segundo, seus amigos já terão assistido tudo; terceiro, a plataforma — e os criadores de conteúdo — vai te induzir à maratona.

Agora, voltemos ao capitalismo.

No início do serviço de streaming, fazia sentido para a Netflix estimular o consumo excessivo. Afinal de contas, a maior parte do seu catálogo era de grandes estúdios, sem nada muito novo. Quando uma temporada de Vikings entrava, já haviam se passado meses desde o final na TV; por que não levar o público a ver tudo, como um box de DVD?

Mas alguém, bem mais inteligente que eu, você e o CEO da Netflix, teve a ideia de fazer um streaming, só que com lançamentos semanais. Duas pessoas, na verdade. Uma na Amazon, outra na Disney.

Sabe quando você está jogando futebol na infância e faz uma falta no seu amigo, mas ele é o dono da bola, então fica puto, leva a bola pra casa e acabou a brincadeira? Exatamente isso. A Disney saiu, levou toda a sua produção (inclusive o que era em parceria com a própria Netflix), fez seu próprio streaming, investiu um oceano de dinheiro e… lançamentos semanais. A Amazon é o amiguinho que incentivou.

Estamos no meio do caminho e essa é a bifurcação: de um lado a Netflix viu todos os canais de TV e estúdios tirarem suas produções da plataforma e prepararem os próprios serviços, forçando a empresa a financiar estúdios em todo o planeta pra produção relâmpago de conteúdo original, mantendo um ritmo semanal de publicações sem se preocupar com a qualidade do produto.

Do outro, um mercado até então centralizado que se dividiu, tornando os custos de vários serviços idênticos altos demais pra população comum, que se viu obrigada a recorrer à pirataria novamente para acompanhar suas séries favoritas.

Todos os lados levam pro mesmo caminho: a queda da Netflix. Amazon Prime Video e Disney+ vêm provando que, ironicamente, o modelo antigo de publicação das séries (pasmem, chamam de serialização) é mais lucrativo e agrada ao público. Basta ver os resultados dos grandes lançamentos recentes de cada serviço.

Pesquisas no Google sobre Sombra e Ossos, da Netflix.
Pesquisas no Google sobre Falcão e o Soldado Invernal, do Disney+.
Pesquisas no Google sobre The Boys, da Amazon Prime Video.

À título de comparação, resolvi focar em séries com formatos de publicação diferentes e com grande investimento em publicidade das plataformas, além do tempo (no caso da Amazon Prime Video, nenhuma série além The Boys atendia os mesmos parâmetros das outras duas).

Reparem na velocidade que as pesquisas caem nos três casos. Sombra e Ossos possui uma queda vertical bem mais acentuada que as demais e seu pico de interesse é somente na semana de lançamento. Não dá pra negar que o formato de maratona influenciou nisso.

Essa pesquisa não leva em consideração a qualidade de cada obra, a questão não é essa; é do interesse que tô falando. E se eu, que só tenho o Google Trends como forma de olhar isso, percebo essas alterações, imagina toda a equipe da Netflix vendo números ainda mais precisos.

O modelo de publicação também influencia na forma que a série é recepcionada pelas pessoas e em suas avaliações.

Nota no IMDb de O Legado de Júpiter, da Netflix.
Nota no IMDb de WandaVision, do Disney+.
Nota no IMDb de Invencível, do Amazon Prime Video.

Já pra essa análise priorizei, além do IMDb (que mede a opinião popular), a temporariedade e temática das obras (todas sobre super-heróis com pegada 16+ pelo menos).

Tanto WandaVision quanto Invencível tiveram um formato de publicação parecido: alguns episódios na primeira semana, o restante semanalmente. Já O Legado de Júpiter, mais novo grande lançamento da Netflix, seguiu o formato clássico da plataforma. Todas as três obras possuem problemas narrativos e defeitos. Mas a diferença nas avaliações é gritante.

Quando se tem um ritmo de produção e distribuição tão insano quanto o da Netflix, não dá pra pensar em qualidade de conteúdo. São muitos estúdios e equipes trabalhando ao mesmo tempo para manter a agenda de grandes estreias em dia. Ao estimular o consumo imediato de todo conteúdo, os problemas narrativos são maiores, já que as pessoas acabaram de assistir aos episódios e sabem bem quando algo está ou não fazendo sentido — o que acontece com uma frequência menor em uma série semanal.

Imagine comigo: Lost teve seis temporadas. Todos nós sabemos como a série terminou e que não foi lá a melhor das resoluções. E se Lost fosse exibida hoje, com seus 25 episódios por temporada? Teria sido um grande sucesso? Independentemente da qualidade da história, diluir dá tempo para trabalhar, consertar rotas e maquiar os erros. Se Lost fosse uma série original da Netflix, com o mesmo roteiro, seria cancelada na segunda ou terceira temporada, porque todas as pessoas perceberiam as falhas graves de narrativa.

Perderíamos uma história, pouparíamos tempo. Cada um escolhe o seu.

Do outro lado, tem a pirataria. Diluir o mercado aumentou os custos para o consumidor, que se viu obrigado a assinar mais de um serviço de streaming para acompanhar seus programas favoritos ou novas tendências — não importa o ritmo. Só no Brasil, um terço dos lares com internet consumiu pirataria em 2020.

Sempre fomos campeões nisso, mas não dá para negar que dificultar o acesso e elevar o gasto são fatores determinantes. Cada um se vira como pode: a Disney+ patenteou uma tecnologia de blockchain pra evitar pirataria no serviço; Netflix e Amazon Prime Video seguem um caminho parecido em suas ações.

Se o mercado informal está com tudo, já dá pra imaginar o quanto a Netflix vem sofrendo tendo suas séries pirateadas com todos os episódios ao mesmo tempo, em alta qualidade e usando a tecnologia de downloads que a própria empresa disponibilizou justamente porque, vejam só, percebeu que os hábitos do consumidor não seguem o mesmo ritmo do que ela quer.

Hábitos. De novo.

A Netflix vem presenciando a própria queda toda de uma vez. Não é caso de falência ou fim do serviço, longe disso. Mas é um ponto para se observar, sobretudo internamente: como ter qualidade e engajamento mantendo lançamentos semanais? Snowpiercer não é um bom exemplo aqui.

Enquanto você ainda não sabe se prefere ver uma série de Interestelar maratonando ou uma vez por semana, se prepare: daqui até lá você pode perder o maior lançamento de todos os tempos da última semana.

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Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.