Leonardo Pareja, 365 Dni, síndrome de Estocolmo e o papel da literatura nessa porra toda

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
6 min readJun 14, 2020

Jay-Z, para além de marido da Beyoncé, é um dos rappers mais talentosos e relevantes de sua geração. E não por não existirem nomes melhores: Nas, 50 Cent, Tip, Fat Joe e outros grandes nomes do cenário estadunidense do hip hop surgiram também nos anos de transição para o século XXI. O grande diferencial de Shawn Carter (seu nome de nascimento) para seus contemporâneos não está na capacidade de nunca escrever uma letra sequer, gravando tudo em freestyles sem cortes nos estúdios. Ou a amizade com Obama, a conta bilionária, etc. Jay-Z é um ótimo contador de histórias.

4:44 (2017), seu trabalho mais recente, é uma das grandes provas disso. Em contraponto com American Gangsta (2007) ou The Blueprint (2001), dá pra perceber o quanto ele se transformou musicalmente. E não só por isso a faixa-título do seu último álbum, ter um clipe com uma série de enigmas, mas, sobretudo, por The Story of O.J., uma faixa em que, além de falar sobre as relações de dinheiro e negritudes nos EUA e a falácia do american dream.

Financial freedom my only hope

Fuck livin’ rich and dyin’ broke

e

Y’all out here still takin’ advances, huh?

Me and my niggas takin’ real Chances, uh

Y’all on the ‘Gram holdin’ money to your ear

There’s a disconnect, we don’t call that money over here, yeah

Ele cria um subtexto onde consegue, também, se posicionar sobre um caso extremamente complexo e problemático — não só na comunidade negra estadunidense, mas em todo o país — que foi o julgamento de O. J. Simpson.

Light nigga, dark nigga, faux nigga, real nigga

Rich nigga, poor nigga, house nigga, field nigga

Still nigga, still niggaO.J. like: I’m not black, I’m O.J., okay

House nigga, don’t fuck with me

I’m a field nigga with shined cutlery

e

I’ma play the corners where the hustlers be

I told him: Please don’t die over the neighborhood

That your momma rent in

Take your drug money and buy the neighborhood

That’s how you rinse it

Não é como se ele não soubesse o tamanho da encrenca que é falar sobre "o julgamento do século". Mas existe uma enorme diferença entre ser realmente bom em uma coisa e representar aquilo que você quer de forma inteligente e fazer merda.

O título dá muito na cara. Desculpem, venho perdendo minha capacidade de fazer textões nos últimos meses. Principalmente porque trabalho e sertãopunk vêm ocupando muito espaço na minha mente.

Hoje o texto é sobre fazer merda.

Poderia ser "manual prático de romance hot que bomba em qualquer lugar: não siga nenhuma dessas dicas", mas quero trabalhar isso de subtextos também no Medium.

365 desgraças nesse istopô

Fui impactado pelos debates na internet sobre o lançamento de um filme na Netflix, 365 Dni (sem título em português, mas "365 dias" em tradução livre). Algo como "o 50 tons de cinza" da plataforma, pelo o que vi. E, obviamente, no meio de tanta coisa, sabia do que, minimamente, o filme se tratava.

Resolvi assistir. Talvez por não ter o menor amor pelo dinheiro que gasto mensalmente com esse serviço. Ou por uma Síndrome de Estocolmo que nunca tratei na psicoterapia.

Coincidentemente, o filme também falava sobre isso: Síndrome de Estocolmo.

Não vou perder tempo explicando o que é isso sobretudo pela quantidade gigante de materiais bem melhores do que qualquer informação que poderia servir. Também vou tentar não racializar esse artigo (porque vocês vão perceber como nenhum dos dois casos que quero falar aconteceriam se o cara fosse negro, por motivos de racismo, mesmo).

Para quem não viu ainda a obra, se trata da adaptação do livro-honônimo de Blanka Lipinska, autora polonesa. É um puta best-seller, vendendo mais de 500 mil cópias e rendendo duas continuações (já que o primeiro livro não cobre um ano inteiro de putaria). Se trata do seguinte: uma mulher, executiva cheia da grana e espirituosa, mas que vive um relacionamento de merda com o namorado, é sequestrada por um chefe da máfia de 1,90 de altura, tatuado, malhado e cheio da grana, que a "convence" de que ela tem 365 dias pra se apaixonar por ele.

Spoiler: ela se apaixona.

Só por isso já existem uma série de problemas. Não é uma obra que fala sobre o romance de duas pessoas e, no meio, tem putaria. É, mais uma, romantização de abusos sexuais e psicológicos. Neste sentido, não é diferente de qualquer outra coisa que bomba na Amazon ou no Wattpad. E, não: não estou generalizando o gênero hot, porque nem toda obra é abusiva. Lembro de várias obras assim em bancas de jornais em versões pocket e não faz muito tempo (9, 10 anos atrás). Mas percebo que existe uma diferença, sobretudo no teor das histórias.

Uma coisa é algo sobre uma mina que vive uma paixão avassaladora com um cara que é quase um acrobata da putaria com uma superrola e músculos de aço (e que não deixa de ter suas problematizações). Outra é quando o principal da história é um abuso completo (CEOs abusando de funcionárias, mafiosos abusando de mulheres e o que mais a criatividade de quem romantiza esse tipo de coisa possa criar).

Não li, obviamente, o livro de 365 Dni. E não vou ler. Mas o que mais me deixa puto com a Netflix (responsável por mais títulos complicados, como 13 Reason Why e Insatiable) é a falta de capacidade de exigir das produções com temáticas sensíveis (que nem deveriam existir, na verdade) o mínimo de criticismo ou a porra de um alerta de gatilho, que fosse.

A própria OMS fala sobre o Efeito Werther (baseado na obra de Goethe) numa obra, neste caso, o suicídio. Esse nome é sobre o contágio do suicídio, mas quero acreditar, também, que problemas mais complexos (como a síndrome de Estocolmo, por exemplo) também possam ser "transmitidas" com a romantização de abusos e outros crimes.

Sim, sequestrar mulheres e força-las a se apaixonar é crime. E não é porque isso faz seu pau subir ou sua buceta molhar que é menos problemático.

Leonardo Pareja, o Massimo tupiniquim

Em Feira de Santana, minha cidade, ocorreu algo quase semelhante. Leonardo Pareja, jovem criminoso famoso dos anos 90, sequestrou Fernanda Viana, sobrinha de Antônio Carlos Magalhães (um dos maiores coronéis do Nordeste), a manteve por cárcere por 60 horas, trocou a garota (na época com apenas 13 anos) por um carro, fugiu pra Goiás parando em diversas cidades no caminho (dando uma série de olés na polícia e até entrevistas desaforadas em rádios) e morrendo meses depois no presídio.

O que nem todo mundo sabe é que a garota "se apaixonou" (com grandes aspas) por Leonardo. E isso é um tabu até hoje, quase que uma proibição dentro da redação do Correio da Bahia (maior jornal impresso do estado, que pertence à família de Fernanda, onde ela trabalhava — ao menos, até 2018, quando saí da faculdade de jornalismo*). Porque, no mundo real, Síndrome de Estocolmo não é mote de romance.

Leonardo Pareja foi endeusado pela mídia. Nos anos 90, tinha minha que achava ele "gato", o cara anunciava as cidades que iria fugir, ia pessoalmente para rádios dar entrevistas (Sônia Abrão não foi a única a dar voz pra bandido branco em troca de audiênica) e até ganhou documentário: Vida Bandida, pela TV Brasil. Por Fernanda, ninguém se interessou.

*Essa informação foi compartilhada por uma professora minha na faculdade, que trabalha na Rede Bahia (afiliada da Rede Globo, que também pertence à família Magalhães e a qual o jornal Correio da Bahia faz parte.

Fazer merda intencionalmente é muito pior que só fazer merda

Assim como quando falei sobre a invenção do Nordeste cyberagreste por parte do Sul e Sudeste, digo sobre essa situação: literatura cria realidade. Escrever bem não é só fazer uma história que bombe, mas entender e contextualizar sua realidade numa obra. Quando esse exercício é feito antes da escrita da obra, fazer esse tipo de merda é quase impossível.

Falar sobre temas delicados na literatura é impossível? Não. Muito pelo contrário: é papel da arte expor esses dramas e contextualiza-los. Mas não é por uma falsa liberdade criativa que você tem com seus escritos ou o que quer se seja que tenha que ser irresponsável com coisas sérias.

Basicamente, quero dizer duas coisas: a) seja mais Jay-Z e menos E. L. James na hora de falar sobre coisas complexas e polêmicas; b) se seu livro romantiza abuso, de qualquer forma ou qualquer ele que seja, eu não gosto de você e não quero ler seu satanás — seja você de onde for.

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Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.