Religiosidade afrobrasileira e a criação de imagem em suas representações

Alan de Sá
Explico melhor escrevendo
16 min readOct 7, 2019
Yemonjá, personagem do game Smite. Disponível para PC, PS4, Xbox One e Nintendo Switch

Conheci a música da Xênia França em 2016. A primeira vez que escutei sua voz foi na faixa Laranja Mecânica, do álbum A Coragem da Luz do rapper Rashid. Na canção, ela traz no refrão um lirismo que me fez adotar aquela como a minha música preferida do álbum — e uma das que mais gosto de Rashid.

Depois, veio um salto no tempo. Era 2018, a primeira vez que usava o Spotify. Em minhas buscas por música regional, encontrei Pra que me chamas? na playlist da plataforma Nova Bahia. Me apaixonei novamente por Xênia — um pouco mais, desta vez.

Pra que me chamas?, pra mim, não é só uma bela canção pela qualidade musical de Xênia França, mas pelas analogias que faz, na letra e no clipe, com a ancestralidade africana. A encruzilhada, as gêmeas, pipoca no chão, os relâmpagos cortando o céu. Xênia fala sobre procurar o desconhecido quando não se está preparado e as consequências disto.

E esse é o mote do texto de hoje.

Desde que coloquei o artigo "Porque fazer o Nordeste sertãopunk" no ar aqui no Medium que eu senti, junto com Alec Silva, a necessidade de falar sobre um dos temas citados dentro da estrutura do movimento. Tema esse que é de fundamental importância para entender o uso do afrofuturismo no sertãopunk.

Eu, além de escritor e nordestino, sou filho de santo de um terreiro de candomblé da Bahia (ainda que eu more em São Paulo — sim, é difícil fazer muita coisa com a distância) e, se tem uma coisa que sou verdadeiramente apaixonado — e crítico — é a religiosidade do povo preto brasileiro. Eu posso passar horas a fio conversando sobre o assunto, mas também não deixo de apontar o dedo pra equívocos e boatos.

Neste artigo, eu quero iluminar algumas pautas sobre o tema, não como cagação de regra (teve muita gente dizendo que o sertãopunk era isso, né, mas cada um com seu cada qual), mas trazer possibilidades e tirar dúvidas sobre o assunto. E, talvez, seja uma prepotência minha mas, quando eu trago esse assunto, é com um objetivo bastante claro: impedir que a fé do meu povo seja usada por mãos desconhecidas de forma problemática, do mesmo jeito que o Nordeste foi usado no cyberagreste.

Se você já tem o mínimo de experiência com as diferentes religiosidades de matriz africana, sugiro que pule toda a explicação abaixo e vá direto para o tópico "A criação de imagens com divindades afrobrasileiras". Se não é, vai ser importante ler sobre os assuntos abaixo.

Religiões de matriz africana

Antes de mais nada é preciso se ter em mente que a raiz dos cultos nasceu na África, mas a ritualística mudou através dos anos aqui no Brasil. E isso por uma série de questões: geográficas, linguísticas, sociais, econômicas e culturais — também entre os negros escravizados.

Logo, o que se tem espalhado em nosso país não é de todo semelhante com o que ainda existe na África. Vou começar fazendo uma lista de algumas religiões de matriz africanas e, depois, vou me aprofundar especificamente na Umbanda e no Candomblé, por conta da popularidade das duas no país e no imaginário popular.

Candomblé

Religião afrobrasileira nascida através da mescla de cultos de diversas partes do oeste africano. No Brasil, é dividido por nações: ketu, bantu (ou banto) e nagô, grupo de nações de regiões como Congo, Sudão, Sudão do Sul, Benim (que formam o povo iorubá) e Angola. Outras nações, como mina, ashanti e éwé fazem parte da grande nação jejê (ou do Reino de Daomé, também no atual Benim). A religião cultua divindades que, no Brasil, possuem ligação com elementos da natureza (montanhas, rios, mar, florestas, etc.). Na África, alguns dos grupos cultuavam ancestrais como orixás — esse é um ponto importante, pois muitos acreditam que os espíritos incorporados nos rituais sejam desses ancestrais e não das reais divindades. Essas divindades podem ser chamadas de orixás, nkisis ou voduns, a depender da nação. Em alguns casos, há uma similaridade entre as figuras, mas não equivalência.

Umbanda

Religião nascida no Brasil entre os anos de 1907 e 1908 (existem algumas divergências quanto a data exata) depois que o Caboclo das Sete Encruzilhadas incorporou em Zélio Fernandino de Morais, médium anunciador da Umbanda. Nasce através da mescla de cristianismo católico apostólico-romano, religiosidade africana, pajelança (ou religiosidade indígena brasileira) e espiritismo kardecista. Em kibundo, "umbanda" significa "arte de curar".

Vodum

Popularmente conhecida como voodoo, apareceu na cultura pop através dos "bonecos que controlam uma pessoa". Acontece que ela também é uma religião de matriz africana (e uma das mais estereotipadas). Nasce do povo jejê, assim como a Santeria cubana. O culto da religião é centrado nos voduns (assim como no candomblé jejê). É bastante popular na América Central, sobretudo no Haiti.

Omoloko

Nascida na Bahia, mas popularizada sobretudo no Rio de Janeiro, é erroneamente chamada de Candomblé de Caboclo ou Cabula — ainda que também cultue entidades de Umbanda em sua ritualística e tenha, sim, sua parcela de influência nestes dois últimos. Acontece que o Omoloko é quase que uma mescla do candomblé com a umbanda, sendo tão popular que, em alguns casos, confunde-se tanto com uma quanto com outra. Ainda assim, existem diferenças significativas, sobretudo na hierarquia dos terreiros Omolokos para os de candomblé, por exemplo.

Egunegun

Culto nascido em Oyó, região do Império Nagô (também no atual Benim). Dentro do candomblé, foi criado por Xangô, rei de Oyó, mas também coexiste como religiosidade à parte. Egunegun são espíritos de ancestrais poderosos masculinos. Já os femininos são chamados de Geledes. Tanto de forma independente quanto integrado ao candomblé, existem restrições de quem pode participar da ritualística aos egunseguns.

Não vou adicionar algumas religiões ou cultos, como o Batuque, Xambá Pernambucano e Kimbanda por serem muito semelhantes as já citadas ou serem muito pouco difundidas em território nacional. E, também, pra não tornar o texto quilométrico.

Candomblé x Umbanda

A partir daqui, quero focar bastante nestas duas religiões e explicar diferenças entre as duas — e que podem ser significativas na hora de escrever uma história afrocentrada.

O que é cultuado no candomblé?

Primariamente, orixás. Isso é, dentro dos iorubás (ketu e nagô). Etimologicamente, orixá significa pai de cabeça (ori = cabeça e xá = pai, em iorubá), ainda que mais de um acompanhe as pessoas ao longo da vida. A este conjunto de orixás é dado o nome de enredo.

Dentro do culto, existem de 12 a 16 orixás cultuados (nem todos os terreiros tocam para todos, ou tocam todos os anos — como é o caso de Obá, que só aparece em anos bissextos), mas alguns estudiosos falam da existência de mais de 400. Divindades como Olorum/Olorunmaré, Oduduá e Ifá não são trabalhados no culto por serem de uma energia muito superior (fazem parte do grupo de orixás que nasceram junto com a criação do universo). Vou deixar uma lista com algumas informações importantes sobre cada um dos orixás iorubás:

  • Oxalá/Olalufã/Oxaguiã/Obatalá: o pai de todos os orixás, criador dos seres humanos e nascido junto com a criação do universo, junto a Olorum, Oduoduá, Ifá e Exu. Pode aparecer de duas formas: Oxaguiã (Oxalá Jovem, relacionado à guerra com objetivos pacifistas) e Oxalufã (Oxalá Velho, relacionado ao conhecimento e ancestralidade). Tem domínio sobre os céus, vida, morte e a criação. Veste branco, usa um opaxoró (cajado que representa o plano terreno, a energia espiritual e a energia da criação) e seu dia na semana é a sexta-feira.
  • Yemanjá/Yemonjá: a mãe da maioria dos orixás e rainha dos mares (em alguns lugares da África, é associada aos rios). Domina a maternidade e a saúde mental. É a segunda esposa de Oxalá. Na umbanda, tanto ela quanto Oxalá estão em todas as pessoas, não possuindo filhos individuais. Veste tons de azul e branco, usa um abebé (espelho) prateado e seu dia na semana é o sábado.
  • Nanã Burukê: a yabá (orixá feminina) mais velha de todas, mãe de Omolu, Oxumarê e Ewá. O culto a Nanã nasce no Banto e se mescla com o iorubá. Domina a vida, a morte, a maternidade e os mangues. Veste branco, roxo e anil, usa um ibiri (bastão de hastes de palmeira); seu dia na semana é a terça-feira.
  • Ogum: orixá popularmente ligado a guerra (ogum significa guerra, em iorubá), mas que também age na agricultura e na forja. É irmão de Oxóssi e, em algumas lendas, também de Exu. Além da guerra e da metalurgia, domina o progresso pessoal e financeiro e as estradas de ferro. Veste azul escuro e pode usar idá (espada), bigorna ou martelo; seu dia na semana é a terça-feira.
  • Oxóssi: filho de Oxalá com Yemanjá, é o orixá ligado a caça (ainda que não seja o único caçador entre os orixás), além de marido de Oxum. Seu culto nasceu na cidade de Ketu, destruída em meados do século XVIII por colonizadores europeus. Na África, quase não é mais cultuado. É o patrono da nação Ketu. Domina a caça, fartura, matas e flerta com o conhecimento. Veste verde e branco e usa um ofá (arco com uma flecha) e um elukerê (penacho feito com rabo de cavalo, usado para abrir caminhos); seu dia na semana é a quinta-feira.
  • Ossain: orixá ligado a medicina através das ervas. Em algumas lendas, possui apenas uma perna. Além da medicina, também possui domínio sobre as matas. Veste verde e branco e usa uma haste de ferro com sete pontas e uma pomba no centro (uma árvore estilizada); seu dia na semana é a quinta-feira
  • Oxum: filha de Oxalá com Yemanjá (em algumas lendas nasce junto com a criação do universo), é a esposa de Oxóssi e mãe de Logun Edé e Ibeji, além de rainha das águas doces e dona do jogo de búzios (vale ressaltar que Exu é o mensageiro do jogo, não seu proprietário). Domina o amor, a fertilidade e a maternidade. Veste amarelo e usa um abebé dourado; seu dia na semana é o sábado.
  • Iansã: também chamada de Oyá ou Bela Oyá, é a senhora dos ventos e uma das yabás guerreiras do culto. É esposa de Xangô e domina os raios, tempestades e conduz os espíritos para o mundo dos mortos. Veste vermelho e branco e usa idá e elukerê; seu dia na semana é a quarta-feira.
  • Xangô: rei de Oyó, criador do culto de egunegun e patrono dos iorubás, sendo um dos orixás mais importantes do culto (em algumas lendas é filho de Oxalá, em outras, são apenas grandes amigos), além de esposo de Iansã. Domina o fogo e a justiça. Veste vermelho, usa dois oxés (machados) e seu dia na semana é a quarta-feira.
  • Ibeji: filhos de Oxóssi e Oxum, são duas crianças gêmeas. Dominam a infância e o nascimento, além da pureza. Vestem azul, rosa e verde e não possuem instrumentos; seu dia na semana é o domingo.
  • Obaluaê/Omolu: filho de Nanã Burukê com Oxalá, é um dos mais enigmáticos e importantes orixás do culto. Nasce, também, no Banto. É irmão de Oxumarê e domina a cura de doenças epidêmicas e a saúde, além de ser o rei do plano terreno e possuir poder sobre o mundo dos mortos. Veste um azé (vestimenta feita inteiramente em palha da costa) e xaxará (cetro feito de palha de dendezeiro); seu dia na semana é a segunda-feira.
  • Oxumarê: filho de Nanã Burukê com Oxalá, é irmão de Omolú e seu culto também nasce no Banto. Domina o arco-íris e tudo o que é cíclico (dia e noite, chuvas, anos, etc.), vive metade do ano no céu e metade do ano na terra. Veste todas as cores do arco-íris e usa duas ebiris (serpentes); seu dia na semana é a terça-feira.
  • Obá: uma das yabás guerreiras do culto, somente aparece em anos bissextos (por isso não é cultuada em todos os terreiros). Venceu todos os orixás em combate individual (com excessão de Ogum, que preparou o terreno da luta com quiabo para vencê-la), tem uma história amorosa complicada com Xangô e uma grande rivalidade com Oxum. Domina o amor e o sucesso profissional. Veste marrom, vermelho, dourado e branco, usa idá e abó (escudo), mas também pode usar ofá; seu dia na semana é a quarta-feira.
  • Ewá: outra das yabás guerreiras, filha de Nanã Burukê e Oxalá. Também possui tretas amorosas com Xangô. É pouco cultuada no Brasil. Domina as matas inalcançáveis, a inteligência e as probabilidades. Veste rosa, vermelho e amarelo, usa idá (mas também pode aparecer com lira ou harpa); seu dia na semana é o sábado.
  • Logun Edé: filho de Oxóssi com Oxum. Há quem diga que Logun Edé é transsexual, passando metade do ano como homem e a outra metade como mulher, mas é preciso explicar que a dualidade de Logun Edé está no comportamento e não no corpo. Possui domínio sobre a pesca e a caça, além de ser considerado um dos mais bonitos orixás do culto. Veste verde, azul e amarelo, usa um abebé dourado e um ofá; seu dia na semana é a quinta-feira.
  • Irokô/Tempo: dentro do culto, o tempo assume a forma de um orixá. Nascido no Banto, Irokô é a primeira árvore a nascer na terra e será a última a cair — a representação física do tempo. No Brasil, a árvore que representa Irokô é a gameleira-branca. Possui domínio sobre a ancestralidade. Veste branco e seu dia na semana é a terça-feira.
  • Exu: propositalmente o deixei por último, justamente por ser aquele que sofre a maior carga de preconceitos dentro do candomblé. Exu nasceu junto com a criação do universo, foi o orixá que por mais tempo acompanhou Oxalá criar os humanos (dezesseis anos, sem dizer uma única palavra durante todo esse tempo), sendo o mais próximo dos humanos de todo o culto. Além disto, é o mensageiro dos orixás e o tradutor do jogo de búzios e do ifá (outro oráculo africano, exclusivo dos homens). Domina a sexualidade, a união e as transformações do dia-a-dia, além de possuir domínio sobre as ruas e encruzilhadas. Veste vermelho e preto e usa um ogó (bastão) em forma de pênis; seu dia na semana é a segunda-feira.

Estes são os orixás cultuados pelos iorubás. No Banto, nkisis possuem personalidades e domínios próprios (vocês podem conhecer mais sobre eles aqui), assim como os voduns (que vocês podem se aprofundar aqui). Notem que existem, sim, similaridades entre os três tipos de divindades mas isso não as coloca em condição de equivalência. São naturezas e cultos diferentes.

O que é cultuado na umbanda?

A umbanda também cultua orixás, mas não da mesma forma que o candomblé. Isto porque a forma como a ritualística é feita não cede exclusividade aos orixás, como no candomblé. O foco da religião brasileira são os atendimentos espirituais através de entidades. E é aí que a coisa muda de figura.

Entidades

Na umbanda, além do "orixá de cabeça", como é conhecido aquele que interage energeticamente com maior intensidade em nossa vida, somos acompanhados por entidades — espíritos evoluídos de pessoas que são incorporados pelos médiuns para realizar atendimentos espirituais ou fazer trabalhos específicos (os famosos passes).

Além disto, os orixás são organizados em linhas, que irradiam de Oxalá:

  • Linha religiosa, liderada por Oxalá seguida por espíritos de povos do oriente;
  • Linha do povo d'água, liderada por Yemanjá e acompanhada por marinheiros e encantados (quando há mescla com Tambor de Mina);
  • Linha da justiça, liderada por Xangô e Iansã e acompanhada por caboclos e baianos;
  • Linha das Matas, liderada por Oxóssi e acompanhada por caboclos e caboclas, além de boiadeiros;
  • Linha das demandas, liderada por Ogum e acompanhada por boiadeiros, baianos e militares;
  • Linha das crianças, liderada por Oxum e acompanhada por Ibeji e erês;
  • Linha das almas, liderada pelos pretos velhos.

Exus e Pombagiras

Muita coisa é diferente na umbanda: Oxalá não tem regência individual de cabeça, Yemanjá também mas, a mais significativa, sem sombra de dúvidas é a da natureza de Exu.

Dentro da religião, Exu deixa de ser um orixá (divindade) e passa a ser uma entidade, o que muda completamente a forma como ele aparece. Exus são entidades de esquerda, seres que acompanham as linhas de trabalho da umbanda e tratam de assuntos voltados para o cotidiano. Os exus da umbanda, também, possuem uma representação visual diferente: ao invés do ogó, eles são marcados por pontos musicais próprios, nomes distintos e pontos riscados, que em muito se assemelham a tridentes, em alguns casos.

A natureza dessas entidades são, em alguns casos, de grandes feiticeiros ou pessoas poderosas espiritualmente do passado que, ao morrerem, evoluíram ao ponto de se tornarem entidades e viverem em Aruanda junto com as outras entidades e os orixás. A umbanda, especificamente, trabalha com atendimentos espirituais gratuitos. Pode ser um passe (a defumação e limpeza feita por uma entidade) ou com orientações mais complexas. Dentro da religiosidade, as entidades são doutrinadas a atender todas as pessoas.

No Candomblé de Catiço, porém, as entidades são escravos dos orixás e agem única e exclusivamente em função dos trabalhos e bem-estar da própria pessoa e não de outrem.

Já as Pombagiras, entidades femininas de esquerda, são outro rolê. Ao que parece, a natureza delas é semelhante as das bombogiras (ou Pambu Njila) do banto, um nkinsi urbano e responsável pela comunicação das divindades e os humanos. Dentro da umbanda, são voltadas para a área emocional, sobretudo relacionamentos amorosos.

A criação de imagens com divindades afrobrasileiras

Aqui, enfim, chegamos no texto.

Por ser uma forma de religiosidade sem escritos de base, como as religiões cristãs, o islamismo ou o judaísmo, todo o conhecimento do candomblé é passado de forma oral e presencial (na umbanda ainda é possível encontrar livros que explicam mais sobre a natureza das entidades e outros assuntos). E, ainda que existam artigos acadêmicos sobre o assunto, como Antropologia dos Orixás, (Ivan da Silva Poli), Ifá e a prática do jogo de búzios (Prof. Dr. Síkírù Sàlámi) e Pensar Nagô (Muniz Sodré), o formato mais "gnóstico" da religiosidade africana cria mitos na cultura popular. E, quando estes não são desmistificados, transcendem para as artes.

Na novela Segundo Sol, da qual eu tenho várias e várias críticas — e muito por se passar em Salvador — , uma cena representou bastante a criação do mito sobre as religiosidades de matrizes africanas.

Em um momento, Laureta (Adriana Esteves), realiza um "ritual" em sua casa, com sete velas vermelhas-e-pretas, uma carteira de cigarro, uma garrafa de champagne e uma rosa vermelha.

Quando vi essa cena, eu me incomodei mais do que somente pelos erros gritantes na ritualística candomblecista ou umbandista (porque, no final das contas, o rito, ali, não diz nada com nada pra ninguém), mas o que me deixou puto, à época, é que a personagem — uma das vilãs da novela — o fez depois de encomendar um assassinato. É fácil ligar os pontos.

Qualquer novela das nove da Globo, por mais que esteja em baixa, possui uma audiência enorme. São cerca de vinte milhões de televisores ligados em dias de baixa (10% da população nacional). Qual seriado da atualidade possui esses números? Nenhum. Agora imagine: falta de estudo, preconceito velado (a Bahia não era chamada de "Velha Bruxa" à toa) e um impacto cultural gigante no povo brasileiro.

Na literatura, porém, busco me alinhar mais com as coisas que eu sei que vão conter poucos deslizes. A Cartola Editora trouxe esse ano a coletânea Orixás: histórias dos nossos ancestrais, que, além de apoiar, me gerou uma curiosidade enorme — e por saberem que existem pessoas "do santo" no cast. Outro material que também quero ter o quanto antes em minhas mãos é a HQ Conto dos Orixás, do soteropolitano Hugo Canuto, que traz os itans (lendas) do candomblé de forma ilustrada (e com um traço magnífico).

Essa semana, a Hi-Rez Studios, dona do game Smite (o qual já joguei por um tempo) anunciou que a personagem Yemonjá, isso meses depois de adicionar Olorum ao "panteão de campeões" do game. É um material muito mais comercial, e com um público maior — e bastante diferente — dos dois últimos citados. É um jogo de estratégia e de combate, o que pode dar a sensação, sim, de que as divindades africanas só servem para ser usadas neste contexto (ainda que existam outras no game — nenhuma cristã ou islâmica). Particularmente, fiquei feliz por ver os orixás iorubás ganhando mais espaço na cultura pop, mas ainda não tenho uma opinião 100% formada sobre. Quero experimentar as reações e a receptividade de Yemonjá ao game.

Só pode escrever sobre candomblé e umbanda quem é da religião?

Visto que esse foi um assunto que surgiu bastante quando falei da criação de imagem de Nordeste em "Estão inventando o Nordeste. De novo", acho um ponto válido a se adicionar aqui.

Não. Não é uma obrigatoriedade. Não é uma exclusividade ou algo do tipo.

Mas aí eu te pergunto: você, artista fora do núcleo religioso, possui o mesmo cuidado com as divindades do povo preto que possui quando vai falar sobre cristianismo em sua arte?

Nós, que somos do candomblé ou da umbanda, possuímos uma relação ancestral antes mesmo da religiosa, com "o santo". E seguimos um pouco mais a rigorosidade na forma como tratamos nossa religiosidade dentro das produções artísticas. Por isso este texto não é uma monografia de mestrado ou um estudo aprofundado: porque, por mais que eu entenda além do que está aqui, ainda possuo uma relação hierárquica e de respeito; sou abiyã, não yawo ou babá. Quando você, escritor, for pôr no papel uma ideia usando entidades da umbanda ou divindades do candomblé, vai pensar o quanto aquilo pode magoar pessoas como o faria se fosse algo de uma fé socialmente aceita?

Esse é o ponto.

É muito simples tratar tudo como macumba, desviar de um ebó na esquina ou na cachoeira, fazer um sinal da cruz quando se passa numa casa de ervas com uma imagem de Exu na porta ou perguntar pro amigo candomblecista porque ele não corta o cabelo em qualquer lugar. O foda está em entender. Nada no candomblé é linear: existem diferenças de terreiro pra terreiro que, por cima, são sutis, mas que fazem toda a diferença. Tem lugar que não corta bode pra comer; tem lugar que corta. Em um terreiro, o bode pode ser cortado estando no chão; no outro, o bode é suspenso. Por que? Aí entram as diferenças. A mão que trata não é única. Não existe um Papa no candomblé (a umbanda tradicional é mais rigorosa com a ritualística de Zélio Fernandino de Moraes), o que, sim, gera diferenças no fazer do culto.

Da mesma forma que as igrejas anglicanas e ortodoxas possuem quanto ao culto a Cristo.

Daí eu pergunto novamente: você, artista fora do núcleo religioso, possui o mesmo cuidado com as divindades do povo preto que possui quando vai falar sobre cristianismo em sua arte?

É isso que tem que nortear uma obra centrada no candomblé, umbanda, xambá, candomblé de catiço ou seja qualquer outra religiosidade de matriz africana. Não posso falar por todos os meus irmãos e irmãs mas, eu, acho super válido que as religiões pretas sejam inclusas na cultura pop. Até porquê, ninguém teria crush no Thor se ele não estivesse no Universo Marvel. O problema real não está na intenção de usar, mas na forma como se faz.

Este, obviamente, não é um texto de base. Também não é um material acadêmico. Mas também não é o último material sobre o assunto que penso em trazer aqui pro Medium.

Vejo muito mais como um conjunto de preocupações pessoais, com a religiosidade que escolhi para seguir e com suas representações. Porque já passamos por isso antes: a criação da imagem dos orixás do candomblé e das entidades da umbanda nos levou a um estado de preconceito religioso que nos mata todos os dias, viola nossos templos e suprime as nossas vozes. E, enquanto abiyã, eu sou um dos responsáveis por manter a fé viva para o futuro. E, se puder fazer isso através da literatura, é muito melhor.

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Alan de Sá
Explico melhor escrevendo

Journalist, writer, copywriter and co-creator of sertãopunk.